Em novembro do ano passado a física teórica Marcela Carena tornou-se a primeira titular de um posto recém-criado: o de diretora de relações internacionais do Fermilab, o principal laboratório de física de partículas dos Estados Unidos, situado em Batavia, nos arredores de Chicago. Predicados acadêmicos que qualifiquem essa simpática argentina de 53 anos para o cargo de embaixadora da instituição não faltam. Ela é chefe do Departamento de Física Teórica do Fermilab e professora na Universidade de Chicago. Já trabalhou em três continentes e fala seis idiomas. “Me lembro da primeira viagem a São Paulo, quando tinha 25 anos, e aprendi a perguntar, em português, se a rodoviária ficava perto ou longe”, diz Carena, que acumula as cidadanias italiana e norte-americana, além da argentina.
Em suas frequentes viagens ao exterior, a física dedica atualmente boa parte de seu tempo para procurar parceiros internacionais dispostos a participar de um megaprojeto científico que está sendo gestado no Fermilab: o Deep Underground Neutrino Experiment (Dune), experimento bilionário que tentará descobrir novas propriedades dos neutrinos, uma das partículas elementares mais difíceis de serem detectadas (ver entrevista com Nigel Lockyer, diretor do Fermilab, no número 235 de Pesquisa FAPESP). Mas sempre há espaço em sua agenda para eventos em que a pesquisadora fala mais alto do que a diretora de relações internacionais. Uma dessas ocasiões foi no início de fevereiro, quando esteve na capital paulista para participar de um seminário no Instituto Sul-americano para Pesquisa Fundamental (ICTP-SAIFR), sediado no Instituto de Física Teórica da Universidade Estadual Paulista (IFT-Unesp).
No evento, Carena falou das perspectivas da física que tenta preencher os buracos não cobertos pelo chamado Modelo Padrão, teoria que, desde os anos 1960, vem sendo refinada e tenta explicar como as partículas e as forças interagem desde o início do Universo. O Modelo Padrão prevê a existência de dois grandes tipos de partículas, os férmions e os bósons. Os férmions são as partículas de matéria (elétron, múon, tau, três tipos de neutrino e seis de quark). Os bósons são as partículas transmissoras das forças eletromagnéticas, nuclear forte e nuclear fraca, que são absorvidas ou emitidas pelos férmions. Eles incluem o fóton, o glúon e os bósons Z e W. Em 2012, foi descoberta a última partícula prevista pelo modelo, o bóson de Higgs, que dá massa para as demais partículas elementares. O modelo estava completo, mas era, e ainda é, insuficiente para explicar o Cosmo. Nesta entrevista, Carena aborda algumas das limitações do modelo e menciona teorias, como as baseadas no conceito de supersimetria, que tentam fornecer pistas sobre questões ainda não respondidas.
Por que há essa procura por teorias para reformar ou estender o Modelo Padrão?
O modelo funciona incrivelmente bem. Agora que conhecemos o bóson de Higgs e sua massa vemos que essa partícula se encaixa adequadamente nele. Mas isso não quer dizer que não temos mais nada a fazer. O modelo explica tudo muito bem até os níveis de energias que conseguimos acessar. Mas há algumas coisas para as quais não fornece respostas satisfatórias. Ele não explica, por exemplo, a matéria escura [na verdade, o modelo fornece respostas para apenas 4% da composição do Universo conhecido e nada diz sobre a origem de seus 23% de matéria escura e 73% de energia escura]. Também não dá conta da assimetria entre a quantidade de matéria e antimatéria observada no Universo [em tese, depois do Big Bang havia a mesma quantidade de matéria e antimatéria, mas, até agora, os astrofísicos praticamente só encontraram partículas e pouquíssimas antipartículas].
Mas quando o modelo foi proposto a matéria escura ainda não havia sido descoberta.
Sim, claro. No Modelo Padrão, os neutrinos são parte da matéria escura, mas uma parte mínima. Deve haver algo mais. Na verdade, não temos uma ideia clara de qual pode ser a composição da matéria escura. Ela pode ser formada por uma partícula, por muitas partículas, por partículas massivas que interagem fracamente, as Wimps [sigla em inglês para weakly interacting massive particles, por ora uma proposta teórica]. Pode ser formada pelos áxions [hipotéticas partículas elementares], que existiriam para explicar alguns problemas de cromodinâmica quântica dentro do Modelo Padrão. Enfim, não sabemos do que é feita a matéria escura. Apenas sabemos que ela está aí. Se não estivesse, não saberíamos explicar muito do que vemos na astrofísica.
Os neutrinos são um problema grande para o Modelo Padrão?
Podemos dizer que eles estão mais ou menos dentro do Modelo Padrão. Estão previstos, mas sem massa. Como hoje sabemos que eles têm uma massa muito pequena, é possível que essa massa, e somente a dos neutrinos, não venha totalmente do bóson de Higgs. A massa de todas as partículas vem do Higgs, mas é possível que outro mecanismo contribua para dar a massa dos neutrinos. Além disso, de acordo com o Modelo Padrão, os neutrinos só poderiam ser de mão esquerda. Mas hoje sabemos que os neutrinos têm massa e, para que suas oscilações ocorram, também devem existir os de mão direita. Os neutrinos são chamados de mão esquerda quando a direção de seu spin e a de sua propagação são opostas e de mão direita se a direção do spin e a da propagação são iguais.
Essa ideia de que poderia haver outras formas de dar massa às partículas valeria para todos os tipos de neutrinos?
Vamos supor que existam apenas os três neutrinos que hoje conhecemos, o do elétron, o do múon e o do tau. É possível que a massa desses três neutrinos venha em parte do mecanismo de Higgs e em parte de outra coisa. Há uma razão para se pensar assim. Pode ser que os neutrinos de mão direita, em vez de serem muito leves, como se acredita, sejam muito pesados. Nesse caso, seria preciso um mecanismo diferente do de Higgs para gerar essa massa. A ideia dos neutrinos de mão direita pesados já é um tema para além do Modelo Padrão.
A própria massa do bóson de Higgs também cria novos problemas?
Há um problema conceitual: a massa do Higgs [cerca de 125 gigaelétron-volt (GeV)] é muito sensível a qualquer física nova que seja relevante a escalas muito menores daquelas que temos provado. Por causa disso, temos de ajustar números gigantes para as coisas funcionarem no Modelo Padrão. Do ponto de vista teórico, essa solução é um pouco desconfortável. Não é muito elegante. Também não sabemos por que, comparativamente, uma partícula como o neutrino tem o tamanho de uma formiga enquanto outra, como o top quark, seria o equivalente a uma baleia-azul. E entre esses dois extremos estão todos os férmions. O que gera tanta diferença? Deve haver uma forma de explicar isso, algo que o Modelo Padrão não faz. Pode ser que estejamos totalmente errados, mas essas questões nos levaram a pensar em teorias supersimétricas e outras propostas que vão além do Modelo Padrão.
O que são essas teorias?
Desde o meu doutorado, há mais de 25 anos, tenho trabalhado com teorias supersimétricas. Há dois grandes ramos de teorias supersimétricas. Um deles pretende estender as simetrias entre os bósons e os férmions [cada férmion conhecido teria um hipotético bóson como parceiro supersimétrico, com a mesma massa e demais características, e cada bóson já descoberto seria complementado por um respectivo férmion]. É uma ideia muito elegante e casa bem com a teoria de cordas [essa teoria defende a ideia de que todas as partículas elementares seriam, na verdade, pequenas cordas que vibram e que poderia haver até 26 dimensões do espaço/tempo e múltiplos universos]. Mas, para que tudo funcionasse bem nela, deveríamos ter encontrado algumas partículas supersimétricas a energias não muito acima das com que trabalha o Grande Colisor de Hádrons, o LHC [situado no Centro Europeu de Pesquisas Nucleares, o Cern]. Há dez anos comecei a trabalhar com outro ramo, paralelo à supersimetria, os chamados modelos compostos. Nessas teorias, tudo funciona segundo o Modelo Padrão até um dado nível de energia. Acima de certo ponto, mil vezes maior do que a massa do bóson de Higgs, há interações fortes e tudo muda. Nes-se caso, o bóson de Higgs, em vez de ser uma partícula escalar fundamental, seria composto de outras partículas.
Haveria então mais partículas como o bóson de Higgs?
Sim, haveria partículas irmãs. Na verdade, elas são chamadas de Higgs adicionais. Nas teorias supersimétricas, pode haver vários Higgs, mas não apenas um. No momento, há muitas opções de teorias, algumas melhores que outras, algumas acomodam melhor a matéria escura, por exemplo. O importante é que hoje sabemos qual é a massa do bóson de Higgs e também como ele interage com todas as partículas conhecidas do Modelo Padrão. Com essa informação, podemos bancar o detetive e ver que teorias funcionam melhor. Em cada teoria que vai além do Modelo Padrão, a forma como o bóson de Higgs interage com essas partículas difere um pouco. Em toda essa pletora de teorias, há algumas que são mais bonitas do que outras. Algumas são muito complicadas e preveem muitas outras partículas. E algumas dessas partículas teriam que ser vistas no LHC. Ao escolher uma teoria, a forma com que o Higgs interage com as outras partículas muda e também a quantidade de novas partículas, incluindo o número de novos Higgs.
Esses novos Higgs teriam que interagir com essas partículas desconhecidas?
Sim e também com as partículas já conhecidas. Todas essas novas partículas – Higgs, férmions e bósons extras – estão sendo procuradas. O LHC já as procurou bastante e colocou muitas restrições para nossas previsões. Por exemplo, hoje se acredita que novos férmions devem estar acima de 1 teraelétron-volt (TeV) de energia. Sempre que alguém pensa em estender as teorias para explicar o Universo, acho bárbaro. Mas, como teórica, coloco tudo que gostaria no meu modelo e vejo o que teria de ser observado para sustentá-lo. Se não encontro, o modelo cai. Quando em 1999 eu estava no LEP [Grande Colisor de Elétrons e Pósitrons, o antigo acelerador do Cern que antecedeu o LHC], já se sabia que o bóson de Higgs tinha de estar entre 114 e 200 GeV.
Você é uma cientista que fez carreira em uma área dominada por homens. Hoje é mais fácil para as mulheres se destacarem na física?
Quando comecei, não havia mulheres na minha área em que poderia me espelhar. Hoje essa situação mudou. Minhas alunas já têm pesquisadoras que podem servir de modelo para elas. Sou, por exemplo, amiga da Fabiola Gianotti [física italiana que, neste ano, se tornou a nova diretora geral do Cern]. Acho importante ter mais mulheres na área, mas não se pode contratar um pesquisador somente por ser mulher. Deve-se contratar alguém por ser bom. Hoje muitos comitês científicos querem que 30% dos seus membros sejam mulheres. Isso é bom, mas, como ainda somos poucas, sempre as mesmas acabam sendo chamadas para um número muito grande de comitês.