O Brasil deverá ter 600 mil novos casos de câncer em 2016, segundo estimativa do Instituto Nacional do Câncer (Inca). Como o diagnóstico precoce é uma das principais armas para combater a doença, duas equipes de pesquisa de São Paulo desenvolveram um novo dispositivo para a detecção de tumores no estágio inicial. Um grupo do Instituto de Física de São Carlos da Universidade de São Paulo (IFSC-USP), em colaboração com o Hospital de Câncer de Barretos, no interior paulista, criou um biossensor para diagnóstico do câncer de pâncreas. Em Araraquara, pesquisadores do Centro de Desenvolvimento de Materiais Funcionais (CDMF), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) financiados pela FAPESP, desenvolveram outro biossensor capaz de detectar tumores de ovário e hepatite C, outra enfermidade prevalente no país. Os dois dispositivos estão em fase de protótipo e ainda precisam da aprovação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para serem usados em hospitais, laboratórios de análises clínicas e consultórios médicos.
Os biossensor são dispositivos que utilizam em sua estrutura um elemento biológico de reconhecimento, como uma enzima, um anticorpo ou um antígeno, para medir de modo seletivo determinadas substâncias relacionadas ao câncer e outras enfermidades presentes em amostras de sangue. A ideia dos dois grupos que pesquisam biossensores e trabalham de forma independente, é criar também aparelhos portáteis, similares aos glicosímetros usados hoje para medição das taxas de glicose no sangue, que façam a leitura do resultado do teste e indiquem se o paciente é ou não portador de câncer (ver infográfico).
Um dos métodos mais conhecidos para diagnóstico de câncer, já implementado em grande escala, é o teste Elisa. Trata-se de um exame de sangue que se baseia também na interação específica entre antígenos e anticorpos e a detecção é feita por meio de reagentes e reações enzimáticas. Nos biossensores não há necessidade de enzimas intermediárias, mas apenas a interação entre moléculas do antígeno e do anticorpo. O tempo de duração do teste Elisa é de 1h30 a 2 horas, enquanto no biossensor o tempo pode ser reduzido para 30 minutos. Outras vantagens são o uso de sangue no biossensor, cerca de quatro vezes menor em relação ao Elisa, e a sensibilidade maior, em mil vezes, do novo tipo de exame.
“O objetivo do nosso trabalho é criar um método mais barato e simples”, explica o físico Andrey Soares, doutorando do Grupo de Polímeros Bernhard Gross do IFSC e responsável pela criação do biodispositivo para detecção de câncer de pâncreas. “Na literatura científica, há relatos de diferentes biossensores para essa doença utilizando técnicas eletroquímicas ou ópticas. O nosso é baseado em medidas elétricas.” O estudo foi feito sob a orientação de Osvaldo Novais de Oliveira Junior, professor no IFSC, com a participação de pesquisadores do Hospital de Câncer de Barretos. Na análise dos dados colhidos pelo biossensor foram empregados métodos computacionais para visualização, desenvolvidos pelos professores Fernando Vieira Paulovich e Maria Cristina Ferreira de Oliveira, do Instituto de Ciências Matemáticas e da Computação (ICMC) da USP de São Carlos.
O dispositivo eletrônico criado na USP é formado por duas finas películas: uma contendo quitosana (polissacarídeo retirado da casca do camarão) e concanavalina A (proteína extraída das sementes de feijão-de-porco) e outra com uma camada ativa de anticorpos capazes de reconhecer o antígeno CA19-9. Presente no organismo humano, esse antígeno tem sua concentração aumentada em pessoas acometidas de câncer de pâncreas. Essas duas películas em escala nanométrica repousam sobre um eletrodo (material condutor de eletricidade) impresso em uma fita, parecida com as usadas em testes rápidos de índice glicêmico. “Ao colocarmos a amostra de sangue do paciente sobre o biossensor, há uma interação com a camada ativa de anticorpos, gerando um sinal elétrico que nos permite saber se existe ou não uma quantidade excessiva de CA19-9 no material coletado”, diz Soares.
Um dos principais desafios na produção de um biossensor, explica Osvaldo, é preservar a função das biomoléculas que servem como elementos ativos do dispositivo. Para tanto, empregam-se matrizes feitas com materiais que ajudam na preservação da atividade da biomolécula. “Em nosso biossensor, o papel de matriz é desempenhado pela quitosana e concanavalina A, dois materiais de baixo custo e que podem ser obtidos de fontes naturais. A concanavalina A interage com a quitosana formando um filme fino estável na superfície do eletrodo”, diz o físico Osvaldo, eleito em janeiro deste ano presidente da Sociedade Brasileira de Pesquisa em Materiais (SBPMat). “A estabilidade é importante para a imobilização mecânica da camada ativa, permitindo a construção de dispositivos com alta sensibilidade e seletividade.” A pesquisa conta com financiamento da FAPESP e parceria com o Hospital de Câncer de Barretos. “Até o momento, nossos ensaios foram feitos com células cancerosas produzidas em laboratório. O próximo passo será a realização de testes com amostras reais de sangue de pacientes”, conta Andrey Soares. Segundo ele, ainda não foi definido o número de amostras de pacientes.
No CDMF, instalado no Instituto de Química da Universidade Estadual Paulista (IQ-Unesp) de Araraquara, a investigação para desenvolvimento do biossensor para detecção de câncer de ovário e hepatite C foi coordenada pela professora Maria Aparecida Zaghete Bertochi, com a colaboração do mestrando João Paulo de Campos da Costa e das doutorandas Gisane Gasparotto e Glenda Biasotto. O professor Paulo Inácio da Costa, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Unesp, e a pesquisadora Talita Mazon, do Centro de Tecnologia da Informação Renato Archer (CTI), também colaboraram com o trabalho.
O biossensor tem uma arquitetura similar à do dispositivo da USP: uma camada ativa com biomoléculas, uma matriz estabilizadora – nesse caso, formada por cistamina e glutaraldeído – e um eletrodo de trabalho, responsável por converter o sinal gerado pela interação química entre as biomoléculas e os marcadores das doenças-alvo em um sinal elétrico. “Nosso biossensor é um dispositivo analítico que converte a resposta de uma reação imunoquímica, bioquímica ou biológica em um sinal mensurável. Ele é descartável e seu método de medida eletroquímica faz com que o diagnóstico tenha um custo reduzido quando comparado aos sistemas atuais”, explica o engenheiro eletricista João Paulo. Hoje, o resultado no biossensor é dado em uma hora e os pesquisadores trabalham em modificações para reduzir esse tempo para 10 minutos. Os testes atuais para detecção de hepatite são o Elisa e outros, que servem para confirmar o resultado positivo, baseados em proteínas do vírus. Ao todo demoram mais de duas horas.
Por enquanto, o biossensor é capaz de diagnosticar o câncer de ovário e a hepatite C de forma individual – ou seja, uma doença por vez. O objetivo é aprimorá-lo para a detecção conjunta de mais doenças. No caso do câncer de ovário, o dispositivo permite a detecção de uma glicoproteína de alto peso molecular, denominada antígeno CA 125, que é associada ao aparecimento do câncer. Estudos apontam que 90% das mulheres que apresentaram elevada concentração dessa glicoproteína no sangue desenvolveram a doença. “Um anticorpo monoclonal foi ligado à superfície do eletrodo de trabalho com a finalidade de, na presença do antígeno CA 125, ligar-se especificamente a essa glicoproteína e promover uma interferência na corrente elétrica do dispositivo”, explica João Paulo.
Para diagnóstico de infecções virais da hepatite C, o mesmo sensor possibilita a detecção de anticorpos específicos para uma proteína presente no vírus. “Se a proteína de interesse estiver presente no sangue, a ligação entre ela e o anticorpo incubado no eletrodo produz um sinal que altera o potencial elétrico do eletrodo. Um software interpreta esse sinal e o diagnóstico é realizado”, diz o pesquisador da Unesp. O Ministério da Saúde estima que entre 1,4 milhão e 1,7 milhão de pessoas no país podem ter tido contato com o vírus causador da hepatite C, sendo que parte desse contingente desenvolverá a infecção crônica.
De acordo com os pesquisadores da Unesp, um pedido de patente do biodispositivo será submetido em breve ao Instituto Nacional da Propriedade Industrial (Inpi). O projeto para desenvolver um equipamento portátil para a leitura do biossensor já está em andamento em colaboração com a área de Processamento de Sinais e Instrumentação do Programa de Pós-graduação em Engenharia Elétrica da USP de São Carlos. Quando tudo estiver pronto, os pesquisadores da Unesp pensam em criar uma empresa para produzir e comercializar o aparelho.
Segundo o professor Emanuel Carrilho, do Instituto de Química da USP de São Carlos e membro do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Bioanalítica (INCT Bioanalítica), os biossensores para detecção de câncer constituem uma linha de pesquisa que teve forte desenvolvimento nos últimos anos. “O maior desafio hoje é identificarmos as moléculas que indiquem que o câncer está em seu estágio inicial”, diz Carrilho. “Uma vez que tenhamos, de fato, esses biomarcadores preditivos, os biossensores serão ferramentas importantes para o diagnóstico precoce da doença.”
Projetos
1. CDMF – Centro de Desenvolvimento de Materiais Funcionais (n° 2013/07296-2); Modalidade Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid); Pesquisador responsável Elson Longo (Unesp); Investimento: R$ 20.965.210,37 (durante cinco anos).
2. Filmes nanoestruturados de materiais de interesse biológico (nº 2013/14262-7); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Osvaldo Novais de Oliveira Junior (USP); Investimento R$ 2.539.907,03.
3. Desenvolvimento de nanoestruturas e filmes de ZnO para aplicação em sensores e nanogeradores (nº 2011/19561-7); Modalidade Bolsa no País – Regular – Doutorado; Bolsista Glenda Biasotto (IQ-Unesp); Pesquisadora responsável Maria Aparecida Zaghete Bertochi (IQ-Unesp); Investimento R$ 31.239,12.
4. Desenvolvimento de nanoestruturas e filmes de ZnO para extração de energia: nanogeradores e piezotrônicos (nº 2012/11979-5); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisadora responsável Maria Aparecida Zaghete Bertochi (Unesp); Investimento R$ 296.813,67.
Artigo científico
SOARES, A.C. et al. Controlled film architectures to detect a biomarker for pancreatic cancer using impedance spectroscopy. ACS Applied Materials & Interfaces. v. 7, n. 46, p. 25930-7. nov. 2015.