Algumas estrelas não muito distantes do Sol abrigam planetas com uma cauda semelhante à dos cometas. Identificados pelos astrônomos nos últimos 13 anos, esses planetas são gigantes gasosos das dimensões de Júpiter, o maior planeta do Sistema Solar. A principal diferença é que, em geral, eles se encontram muito próximos de suas estrelas, que erodem a atmosfera planetária lançando um rastro de gás e poeira no espaço. Dois astrônomos brasileiros especialistas em química do meio interestelar resolveram investigar as reações que poderiam acontecer na cauda de alguns desses planetas e verificaram que, sob certas condições, ali podem se formar moléculas muito simples, como a de água, essencial à vida.
A astrônoma Heloísa Boechat-Roberty e seu aluno de doutorado Rafael Pinotti chegaram a essa conclusão ao simular o que ocorre na cauda do planeta Osíris, um gigante gasoso semelhante a Júpiter que orbita a estrela HD 209458, localizada na direção da constelação de Pégaso e distante 154 anos-luz do Sistema Solar. A HD 209458 tem características muito próximas às do Sol. Mas Osíris se encontra tão próximo dela que a HD 209458 aquece e erode a atmosfera do planeta, formando uma cauda gigantesca de gás e poeira no espaço.
Osíris foi descoberto em 1999 e já foi observado pelos telescópios espaciais Hubble e Spitzer, da Nasa. É um planeta como Júpiter que se encontra mais perto de sua estrela do que Mercúrio está do Sol. Em 2003 astrônomos identificaram a cauda de Osíris, uma correnteza de mais de 10 mil toneladas de gás escapando da atmosfera do planeta a cada segundo, a velocidades de até 130 quilômetros por segundo. “Achamos instigante investigar as reações químicas que poderiam acontecer ali”, diz Heloisa, professora e pesquisadora do Observatório do Valongo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Heloisa e Pinotti imaginavam que as partículas presentes na corrente de gás lançada no espaço podiam interagir e gerar moléculas estáveis. Antes deles, outros astrônomos já haviam confirmado a presença de diferentes moléculas na atmosfera de Osíris. Lá existe hidrogênio molecular (H2) em abundância na forma de gás e também moléculas simples de carbono e vapor-d’água, além de moléculas de carbeto de silício, óxido de titânio e vanádio, que formariam grãos de poeira. Mas muitos imaginavam que essas moléculas seriam destruídas à medida que fossem arrastadas para a cauda de Osíris.
Uma das razões é que, logo acima da atmosfera do planeta, na base de sua cauda, a temperatura do gás alcança 10 mil graus Celsius. Além da alta temperatura, a radiação ultravioleta da estrela seria intensa o bastante para desmanchar qualquer molécula de gás vinda da atmosfera de Osíris. “Estudos feitos por outros pesquisadores apontavam para a inexistência de moléculas ali”, diz Pinotti. “A radiação seria tão forte que o gás seria composto apenas por átomos e íons isolados.”
O pesquisador explica, entretanto, que a maioria dos estudos teóricos anteriores se concentrava em calcular as temperaturas, as velocidades e as densidades do gás da cauda a uma distância relativamente próxima do planeta. Um modelo físico criado pelo astrofísico francês Vincent Bourrier, do Observatório de Genebra, na Suíça, chamou a atenção de Pinotti por estimar densidades e velocidades em uma região da cauda bem mais afastada do planeta, onde a temperatura do gás seria baixa o suficiente para que átomos e íons pudessem se combinar novamente e formar moléculas. Tomando esse modelo como base, Heloisa e Pinotti simularam 566 reações químicas diferentes envolvendo 56 moléculas e íons que poderiam acontecer na cauda de Osíris.
Apresentados em fevereiro na revista Planetary and Space Science, os resultados dessa análise indicam que, caso uma fração do hidrogênio molecular da atmosfera de Osíris sobreviva aos efeitos da radiação, moléculas de água poderiam se formar na cauda do planeta. Segundo os cálculos da dupla, telescópios espaciais podem comprovar essa hipótese caso busquem na cauda de Osíris sinais de íons OH+, as moléculas mais abundantes ali, de acordo com as simulações.
Por enquanto, as observações feitas por meio dos telescópios espaciais só confirmaram a existência de hidrogênio, carbono e oxigênio na forma de átomos e íons isolados na cauda de Osíris. Mas evidências observacionais ainda controversas sugerem que a cauda do planeta pode arrastar consigo um pouco da poeira de Osíris, o que poderia proteger uma proporção das moléculas de hidrogênio dos efeitos da radiação.
“No caso de Osíris, as moléculas de água se desfazem logo depois de formadas, dissipando-se no meio interplanetário como íons”, explica Pinotti. Existem outros planetas com caudas, porém, atingidos por doses mais suaves de radiação ultravioleta do que Osíris. Um deles é Gliese 436b, um planeta gasoso menor, semelhante a Netuno, orbitando uma estrela anã vermelha, a 30 anos-luz da Terra, cuja cauda foi descoberta ano passado. “É pura especulação no momento”, diz o pesquisador, “mas vejo a possibilidade de que moléculas de água, ou até mesmo moléculas orgânicas simples, sobrevivam e façam uma pequena viagem interplanetária pela cauda, acabando na atmosfera de um planeta mais exterior, na zona habitável da estrela”.
Artigo científico
PINOTTI, R. e BOECHAT-ROBERTY, H. M. Molecular formation along the atmospheric mass loss of HD 209458b and similar Hot Jupiters. Planetary and Space Science. v. 121, p. 83-93. 2016.