Podcast: Fernando Roig
Um trabalho recente dos cientistas planetários Fernando Roig e Sandro Ricardo de Souza, do Observatório Nacional (ON), no Rio de Janeiro, e do checo David Nesvorný, do Instituto de Pesquisa do Sudoeste, no Colorado, Estados Unidos, defende uma nova hipótese para justificar a estranha localização de Mercúrio, cuja órbita se encontra 7 graus inclinada em relação ao plano orbital médio dos outros planetas. Baseados em simulações em computador de como teria sido a dinâmica do Sistema Solar há mais de 4 bilhões de anos, os pesquisadores sugerem que a órbita do planeta se alongou e inclinou demais em razão de um grande evento. Em algum momento durante os primeiros 500 milhões de anos do Sistema Solar, a interação gravitacional entre um hipotético planeta gasoso e gigante, do tamanho de Urano, e Júpiter, também gasoso e gigante, teria alterado as condições locais. O planeta desconhecido teria sido ejetado do sistema e feito Júpiter se deslocar bruscamente em direção ao Sol. O “pulo” de Júpiter teria empurrado Mercúrio para sua posição atual (ver infográfico).
Esse suposto evento é conhecido como Júpiter Saltitante. Segundo essa teoria, o pulo de Júpiter teria sido capaz de dar origem à atual órbita de Mercúrio e também garantir a estabilidade da trajetória de todos os planetas rochosos, incluindo a Terra, em torno da estrela. “Parece um contrassenso”, reconhece Roig, “mas tudo indica que os planetas gigantes gasosos precisaram passar por uma fase de instabilidade para que os rochosos permanecessem estáveis”. Nas simulações, o salto na órbita de Júpiter provocado pela expulsão do planeta hipotético quase não altera as órbitas dos planetas rochosos, com exceção de Mercúrio. Roig explica que, caso Júpiter tivesse percorrido seu caminho mais lentamente em vez de ter dado um pulo na direção do Sol, a órbita de Mercúrio poderia ter se tornado ainda mais alongada e inclinada do que é hoje. Se isso tivesse ocorrido, Mercúrio poderia ter sido ejetado do Sistema Solar ou colidido com seu vizinho, Vênus. Segundo o astrofísico, tal choque provocaria um efeito em cascata que destruiria todos os planetas rochosos. Júpiter precisou dar um pulo para que os planetas rochosos sobrevivessem”, sugere Roig.
Há pouco mais de 20 anos, a maioria dos pesquisadores acreditava que os planetas do Sistema Solar teriam se formado, grosso modo, na mesma posição ocupada atualmente, por meio de um processo lento e suave de acréscimo de gás e poeira. Esses modelos previam que outras estrelas deveriam dar origem a sistemas planetários parecidos com o solar, com duas populações distintas de planetas: os rochosos, de tamanho parecido com o da Terra, próximos da estrela; e os gigantes gasosos, como Júpiter ou Saturno, mais afastados. “A descoberta de exoplanetas mudou radicalmente essa ideia”, explica Roig. “Vimos que há uma variedade de configurações planetárias muito diferentes do nosso Sistema Solar.”
Análises estatísticas das características de todos os sistemas de exoplanetas descobertos até hoje sugerem que estrelas parecidas com o Sol tendem a ter sistemas planetários bem diferentes, muitos deles compostos de planetas rochosos duas a três vezes maiores que a Terra, com órbitas mais próximas de suas estrelas do que a de Mercúrio está do Sol. A órbita de Júpiter, quase circular e bem afastada do Sol, também destoa do que é observado em muitos sistemas exoplanetários.
Nuvem primordial de gás e poeira
É consenso entre os astrônomos que o Sol e seus planetas começaram a se formar há 4,6 bilhões de anos, quando uma nuvem gigantesca de gás e poeira no espaço interestelar colapsou pela ação da força gravitacional de sua própria massa. Havia então um núcleo esférico de gás, que deu origem ao Sol, cercado por um disco de matéria a partir do qual tomaram corpo os planetas. Os primeiros mundos a se formar teriam sido os gigantes gasosos, Júpiter, Saturno, Urano e Netuno, e algumas dezenas de milhões de anos mais tarde os planetas rochosos, Mercúrio, Venus, Terra e Marte. Alguns pesquisadores especulam que Mercúrio teria se originado a partir dos fragmentos de uma primeira geração de planetas rochosos maiores, com massas semelhantes à da Terra, e mais próximos do Sol do que Mercúrio está atualmente.
O processo de formação dos gigantes gasosos teria durado menos de 10 milhões de anos. Nessa época ainda havia no espaço entre os planetas uma quantidade razoável de gás remanescente da matéria do disco a partir do qual eles se originaram. O arrasto do gás fez com que os planetas tendessem a migrar para perto do Sol. Em algum momento, porém, a atração gravitacional mútua entre Júpiter e Saturno teria invertido o sentido de migração dos dois gigantes gasosos, afastando-os do Sol. Esse movimento de ida e volta dos gigantes gasosos é chamado pelos pesquisadores de grand tack, uma alusão a uma manobra dos barcos a vela, o tacking, quando seu curso é revertido em relação à direção do vento. Logo após o grand tack, os planetas rochosos atuais já teriam se formado ou estariam perto de se formar mais ou menos em suas posições atuais.
As órbitas dos gigantes gasosos deviam ser bem diferentes. Júpiter estaria um pouco mais afastado do Sol do que está atualmente, enquanto os demais gigantes gasosos estariam muito mais próximos de Júpiter e uns dos outros. É possível que os gigantes gasosos tenham permanecido nessa configuração mais compacta que a atual por até 500 milhões de anos. Muito próximos, porém, eles deveriam ser constantemente perturbados pela força gravitacional uns dos outros. Além disso, esses planetas poderiam sofrer, ainda, com a presença de muitos corpos menos massivos – planetesimais – no meio de suas órbitas.
Os gigantes foram se livrando desses planetesimais aos poucos, empurrando-os em direção aos confins do Sistema Solar, onde hoje se encontram o chamado cinturão de Kuiper, cujo corpo mais famoso é Plutão, e a nuvem de Oort. Em 2005, os astrônomos Hal Levison, Alessandro Morbidelli, Kleomentis Tsiganis e Rodney Gomes, este último também pesquisador do ON, apresentaram simulações em computador mostrando como, a partir dessa situação inicial instável, os gigantes gasosos teriam lentamente se afastado uns dos outros, migrando durante alguns milhões de anos até suas posições atuais.
Conhecida como modelo de Nice, por ter sido criada quando seus autores trabalhavam juntos no Observatório da Costa Azul, na cidade francesa, a teoria ganhou destaque por explicar a arquitetura atual dos planetas gigantes. Em 2009, porém, o astrônomo holandês Ramon Brasser notou que a lenta migração dos gigantes gasosos prevista pelo modelo de Nice teria uma grande chance de ter provocado uma série de colisões planetárias. A movimentação dos gigantes gasosos poderia ter resultado na expulsão de um deles – normalmente Urano – do Sistema Solar.
Para resolver essa inconsistência, o astrônomo David Nesvorný, do Instituto de Pesquisa do Sudoeste, que atualmente colabora com Roig como pesquisador visitante no ON, propôs, em 2011, que o Sistema Solar teria tido um quinto planeta gigante gasoso, de tamanho semelhante ao de Urano ou Netuno. Nesvorný calculou que a ejeção desse planeta hipotético teria feito com que a distância da órbita de Júpiter ao Sol passasse de 5,5 vezes a distância da Terra ao Sol para 5,2 vezes em menos de 100 mil anos. “Na escala de tempo de formação do Sistema Solar, essa mudança de órbita teria ocorrido em um tempo muito curto. Por isso a descrevemos como um salto de Júpiter”, explica Roig. “O modelo de Nice funciona bem para explicar os gigantes gasosos, mas logo se percebeu que a migração suave dos gigantes prevista por essa teoria dificultaria a formação dos planetas rochosos”, justifica o astrônomo Othon Winter, especialista em dinâmica planetária da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Guaratinguetá. “Até agora, o Júpiter Saltitante é a única solução que se conhece para esse problema.”
Mundos errantes
Em colaboração com outros pesquisadores, incluindo o astrônomo Valerio Carruba, da Unesp, Roig e Nesvorný indicaram recentemente que o cenário do Júpiter Saltitante também poderia explicar algumas características do cinturão de asteroides entre Marte e Júpiter. O resultado das simulações publicadas em março na revista Icarus oferece uma explicação de por que os astrônomos não conseguem observar no cinturão as evidências de grandes colisões anteriores a 4 bilhões de anos entre asteroides. No artigo, os autores afirmam que a presença do hipotético quinto gigante, e sua posterior expulsão do sistema, teria embaralhado as órbitas dos asteroides a ponto de apagar qualquer evidência desses choques.
A ideia de que um planeta gigante gasoso escapou do Sistema Solar e se desgarrou de sua estrela não é tão maluca quanto parece. Roig lembra que astrônomos já observaram efeitos de lente gravitacional na luz de estrelas que podem ser atribuídos à passagem de planetas gigantes vagando pelo espaço interestelar. Alguns pesquisadores estimam que haja milhares de mundos errantes na Via Láctea. “Não existe maneira de esses corpos se formarem longe de estrelas”, explica Roig. “Eles devem ter surgido em um sistema planetário e depois foram ejetados.”
Projeto
Famílias de asteroides em ressonâncias seculares (nº 2014/06762-2); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Valerio Carruba (Unesp); Investimento R$ 31.200,00.
Artigos científicos
ROIG, F. et al. Jumping Jupiter can explain Mercury’s orbit. Astrophysical Journal Letters. v. 820, n. 2. 24 mar. 2016.
BRASIL, P. I. O. et al. Dynamical dispersal of primordial asteroid families. Icarus. v. 266, p. 142-151, 1º mar. 2016.
ROIG, F. & NESVORNÝ, D. The evolution of asteroids in the jumping-Jupiter migration model. The Astrophysical Journal. v. 150, n. 6. 1º dez. 2015.