Em 1847, o médico inglês Henry Bence Jones encontrou na urina de pessoas com mieloma múltiplo uma proteína característica desse câncer que atinge a medula dos ossos. De lá para cá, cerca de duas dezenas de proteínas mensuráveis no sangue vêm sendo usadas como indicadores de surgimento, crescimento ou regressão de tumores. Algumas delas se tornaram bastante conhecidas, como o antígeno prostático específico (PSA), sinalizador de tumores na próstata. São ferramentas úteis, embora não tenham a precisão desejada: em alguns casos, seus níveis podem estar elevados e não haver tumor; em outros, a doença pode existir e a proteína não estar detectável. Nos últimos anos, médicos e pesquisadores em centros de oncologia dos Estados Unidos, da Europa e do Brasil começaram a investigar formas de prever a evolução de certos tipos de câncer e o modo como respondem a alguns tratamentos por meio da detecção de fragmentos de DNA, de células e até de vesículas que o tumor libera no sangue.
Essa estratégia é a biópsia líquida, assim chamada por exigir apenas a coleta de sangue ou outros fluidos corporais, como saliva e urina. Ainda em fase de desenvolvimento, essa técnica é oferecida desde meados de 2016 em alguns hospitais de São Paulo e do Rio de Janeiro e desperta o interesse de médicos e pacientes, além do entusiasmo de empresas de biotecnologia, interessadas em um mercado de venda de equipamentos e insumos e de realização de testes que movimentou US$ 580 milhões nos Estados Unidos no ano passado e deve alcançar US$ 1,7 bilhão em 2021, segundo previsão da empresa de pesquisa de mercado MarketsandMarkets. É que a biópsia líquida promete vantagens em relação à biópsia tradicional, na qual se extraem, por punção com agulha ou por cirurgia, amostras do tecido doente.
Exames de imagem ajudam a identificar um provável câncer, mas é a análise que o médico patologista faz do material da biópsia que permite definir se um tumor é maligno e quais as suas características, informações fundamentais para se definir o tratamento. Apesar de mais informativa, a biópsia de um tecido é um procedimento invasivo que pode exigir internação e uso de anestesia. Em certos casos, opta-se por não fazê-la porque o tumor está perigosamente próximo de uma artéria importante ou um órgão vital. Outro complicador é que os tumores são formados por diferentes populações de células, que mudam com o tempo. Por causa dessa heterogeneidade e da variabilidade, a informação de que a biópsia tradicional oferece sobre o tumor pode não ser a mais completa nem a mais atualizada. Essas dificuldades têm impulsionado a busca de alternativas que sejam mais confiáveis do que a biópsia de tecido e mais simples de realizar, como a biópsia líquida. Por poder ser repetida com mais frequência, médicos e pesquisadores começam a ver essa técnica como possível opção para acompanhar a evolução de certos tipos de câncer, monitorar a resposta ao tratamento e identificar o reaparecimento de tumores antes que se tornem detectáveis nos exames de imagem.
A versão da biópsia líquida que detecta o material genético tumoral na corrente sanguínea – o DNA tumoral – já é adotada em alguns centros oncológicos do exterior e também em São Paulo e no Rio de Janeiro. A favor de seu uso, há evidências de que o DNA tumoral encontrado no sangue reflete melhor do que a biópsia tradicional ou os marcadores proteicos a atividade das células neoplásicas e as transformações pelas quais o câncer passa ao longo do tempo e do tratamento.
No final dos anos 1990, pesquisadores na França e nos Estados Unidos observaram que o sangue de pessoas com câncer continha mais DNA. Pouco depois, a bióloga brasileira Diana Nunes comprovou que a origem desse material era, de fato, o tumor. Ela fazia mestrado sob a orientação do bioquímico inglês Andrew Simpson no Instituto Ludwig de Pesquisa sobre o Câncer, em São Paulo, e, em parceria com o oncologista Luiz Paulo Kowalski, do A.C.Camargo Cancer Center, analisou o material genético extraído da saliva e do sangue de pessoas com câncer de boca. Em um artigo de 2001 no International Journal of Cancer, o trio provou que parte do DNA encontrado nesses fluidos apresentava o mesmo defeito que o das células do tumor, portanto, só poderia ter vindo dele. “Foi o primórdio da biópsia líquida”, lembra o biólogo Emmanuel Dias-Neto, coordenador do Laboratório de Genômica Médica do A.C.Camargo, onde Diana trabalha.
O avanço das técnicas de sequenciamento genético na última década tornou mais fácil identificar as alterações que caracterizam os diferentes tumores e rastreá-las no sangue. O primeiro teste de biópsia líquida disponível comercialmente foi desenvolvido por uma empresa farmacêutica multinacional, a Roche, e liberado para uso nos Estados Unidos no início de 2015. Em junho do ano passado, um laboratório do Rio de Janeiro especializado em testes moleculares, o Progenética, passou a fazer biópsia líquida usando o kit importado.
O teste detecta no sangue fragmentos de DNA contendo uma alteração no gene EGFR específica do adenocarcinoma de pulmão, o tipo de câncer mais comum nesse órgão e o mais frequente entre os não fumantes. Conhecida pela sigla T790M, essa mutação indica que o tumor se tornou resistente ao tratamento com inibidores de tirosina-quinase de primeira e segunda gerações, medicamentos que agem sobre as células do tumor e poupam as sadias.
Em São Paulo, o A.C.Camargo Cancer Center oferece desde agosto de 2016 uma versão própria e mais abrangente desse teste. Desenvolvida pela equipe da bioquímica Dirce Carraro, ela detecta, além da T790M, outras três mutações no gene EGFR que tornam o adenocarcinoma sensível aos inibidores de tirosina-quinase. Antes mesmo de o teste se tornar disponível para os médicos do hospital, o oncologista Helano Freitas o utilizou para orientar o tratamento de algumas pessoas com adenocarcinoma sob seus cuidados. Os inibidores de tirosina-quinase haviam deixado de fazer efeito para 15 de seus pacientes e o tumor tinha voltado a crescer. Freitas queria saber quais dessas pessoas apresentavam a mutação de resistência e poderiam se beneficiar do uso de um inibidor de terceira geração. Na época ele participava de um estudo internacional para avaliar a segurança e a eficácia dessa nova geração do medicamento, já comercializada nos Estados Unidos, e podia incluir novos participantes. Das 15 pessoas, sete tinham a mutação e começaram a receber a terceira geração do inibidor de tirosina-quinase.
Em dezembro passado, com o fim da possibilidade de incluir novos participantes no estudo, Freitas parou, por ora, de pedir a biópsia líquida para esses casos. É que a indicação de uso do medicamento de terceira geração foi aprovada no Brasil em janeiro deste ano, mas ele ainda não pode ser comercializado no país porque não está definido o seu preço, que deve ser mais elevado do que o dos inibidores de primeira e segunda gerações, que custam entre R$ 5 mil e R$ 8 mil por mês. “De que adiantaria para a pessoa fazer o teste e saber que pode se beneficiar do medicamento se não pode ter acesso a ele?”, questiona o médico.
Além de alterações no gene EGFR, a biópsia líquida que o grupo de Dirce Carraro tornou disponível no A.C.Camargo avalia mutações em outros 13 genes. Alguns estão frequentemente alterados no câncer de pulmão, outros nos tumores de intestino (cólon e reto) e outros ainda no melanoma, a forma mais agressiva de câncer de pele. Assim como no adenocarcinoma pulmonar, nesses casos a biópsia líquida ajuda a orientar o tratamento ao permitir detectar mutações de sensibilidade ou resistência aos medicamentos.
“Os médicos que se interessarem também podem solicitar esse teste para outros tumores que tenham algum desses genes alterados”, sugere Dirce, coordenadora do Laboratório de Genômica e Biologia Molecular do A.C.Camargo. Há três anos ela trabalha para desenvolver uma biópsia líquida que auxilie no monitoramento de resposta à quimioterapia para pessoas com tumor de Wilms, um câncer raro nos rins, que costuma ser detectado entre os 2 e os 5 anos de idade e afeta uma em cada 10 mil crianças. O objetivo é que, no longo prazo, também se possa usar o teste para realizar o diagnóstico do problema. “Se um dia conseguirmos fazer o diagnóstico precoce por meio do DNA tumoral na urina, pode se tornar viável iniciar o tratamento antes de surgirem os sintomas”, propõe Dirce.
No Hospital Sírio-Libanês (HSL), biópsias líquidas são usadas experimentalmente pelo grupo da pesquisadora Anamaria Camargo para monitorar a sensibilidade de três tipos de tumor (pulmão, mama e cólon e reto) a medicamentos e detectar de forma precoce o desenvolvimento de resistência ao tratamento. Atualmente, os pesquisadores monitoram 30 pessoas de cada um desses grupos por meio de exames de sangue realizados mensalmente. “Estamos quantificando moléculas de DNA que carregam mutações associadas à resistência ao tratamento em cada um desses tipos de câncer e verificando se existe uma associação entre a quantidade de DNA com alterações, a resposta ao tratamento e a progressão clínica da doença”, conta Anamaria, coordenadora do Centro de Oncologia Molecular do HSL.
Ela começou a trabalhar com biópsias líquidas há quase 10 anos quando, em parceria com o grupo de cirurgiões do aparelho digestivo Angelita Habr-Gama e Rodrigo Oliva Perez, do Instituto Angelita e Joaquim Gama, iniciou o desenvolvimento de um teste personalizado para verificar se o tratamento neoadjuvante com rádio e quimioterapia em tumores de reto estava surtindo o efeito esperado e detectar o reaparecimento da doença. O teste se mostrou viável, mas, em um experimento-piloto, notou-se que precisa de ajustes: ele foi capaz de detectar com 18 meses de antecedência o ressurgimento do tumor, mas nem sempre permitiu definir se a doença foi totalmente eliminada com o tratamento (ver Pesquisa FAPESP nº 237).
No sangue de uma pessoa com câncer há mais do que DNA do tumor. Em certas situações, ele pode conter células que se desprenderam do câncer original, além de pequenas bolsas (vesículas) que recebem o nome de exossomos e estão repletas de conteúdo das células tumorais.
A bioquímica Ludmilla Chinen, pesquisadora do A.C.Camargo, constatou que elas também revelam muito sobre a enfermidade. Ela e seus colaboradores já acompanharam 280 pessoas com diferentes tipos de câncer e notaram que a concentração de células tumorais no sangue pode servir como indicador dinâmico da resposta aos medicamentos. “Podemos dizer se o tratamento está tendo sucesso em dois meses, quase metade do tempo que levaria para se verificar por um exame de imagem”, conta Ludmilla.
Nos últimos anos, ela e seus colaboradores constataram também que moléculas expressas pelas células tumorais circulantes podem indicar tolerância a determinados medicamentos usados contra o câncer de cólon e reto. Os pesquisadores suspeitam ainda que a análise dessas células permita predizer o surgimento de metástase. Eles acompanharam pessoas com câncer de cabeça e pescoço de grau avançado e sem metástase e viram que, quando as células tumorais migram em pequenos grupos, os microêmbolos, há uma probabilidade maior de surgirem novos focos da doença.
Por volta de 2008, o grupo do médico David Lyden, da Universidade Cornell, nos Estados Unidos, começou a observar que os exossomos funcionariam como mensageiros celulares, carregando para outros tecidos informações necessárias para preparar novos focos do tumor. Com a colaboração dos bioquímicos brasileiros Bruno Costa Silva e Vilma Regina Martins, a equipe de Cornell criou um modelo de metástase de melanoma em camundongos. Os pesquisadores injetavam na corrente sanguínea de roedores com câncer de pele exossomos característicos do melanoma e acompanhavam o percurso das vesículas.
Em um trabalho publicado em 2012 na Nature Medicine, eles verificaram que os exossomos, encontrados em maior quantidade nas formas mais agressivas desse câncer, primeiro migravam até a medula dos ossos. Ali, as informações contidas nos exossomos reprogramavam as células-tronco formadoras de vasos sanguíneos e as orientavam a se dirigirem para os pulmões, onde, além de gerar novos vasos, despertavam uma inflamação. Essa inflamação, por sua vez, criava um ambiente pré-metastático e atraía quimicamente as células tumorais dispersas no sangue. “O tumor libera essas vesículas antes que células comecem a se desprender dele para migrar”, explica Vilma, superintendente de pesquisa do A.C.Camargo. “Isso torna os exossomos um potencial alvo de terapias que tentem bloquear a formação de metástase”, diz a bioquímica.
Alguns especialistas estimam que de 20% a 25% dos 30 mil novos casos de câncer de pulmão que surgem por ano no Brasil tenham alguma mutação no gene EGFR e possam se beneficiar das terapias alvo-dirigidas. “Do ponto de vista de saúde pública, vale a pena discutir a possibilidade de tornar a biópsia líquida e o uso desses medicamentos disponíveis no Sistema Único de Saúde (SUS)”, conta Helano Freitas.
Apesar desses números, ainda deve levar algum tempo para que a detecção de células tumorais circulantes e de exossomos por biópsia líquida se torne rotina em mais hospitais e centros oncológicos. Em uma fase inicial, mesmo a versão do teste mais consolidada, que identifica o DNA tumoral, deve permanecer restrita aos atendimentos privados ou pagos pelos planos de saúde.
“O Brasil não se preparou para oferecer o diagnóstico molecular no sistema único de saúde”, critica o oncologista Carlos Gil Ferreira. De 2002 a 2015, ele foi diretor de pesquisa clínica do Instituto Nacional do Câncer (Inca), no Rio de Janeiro, e no final de 2016 deixou de ser sócio do laboratório Progenética. Atualmente ele coordena a pesquisa em oncologia no Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (Idor), onde um grupo trabalha no desenvolvimento de uma forma de biópsia líquida para tumores de fígado. “Por questão de custo e de estratégia, o país não está pronto para a era da medicina de precisão.”
Roger Chammas, professor de oncologia na Faculdade de Medicina na Universidade de São Paulo (FM-USP) e coordenador do Centro de Investigação Translacional em Oncologia do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (Icesp), imagina que a incorporação da biópsia líquida no SUS só deve ocorrer depois que for ampliado o acesso às terapias alvo-dirigidas, cuja aplicação pode ser orientada por esses exames.
O biólogo português Rui Reis é mais otimista. Ele coordena o Centro de Pesquisa em Oncologia Molecular do Hospital do Câncer de Barretos, no interior de São Paulo, que atende exclusivamente pacientes do SUS, e imagina que, colocadas na ponta do lápis, as vantagens proporcionadas por esse tipo de teste podem até baratear o tratamento do câncer. “Esses testes são caros em uma fase inicial, mas o custo diminui quando começam a ser usados em larga escala”, afirma. Antes que se pense em disseminar o uso da biópsia líquida, será preciso ainda descobrir qual das técnicas funciona melhor. “Está todo mundo à procura do melhor método”, lembra Reis.
Projetos
1. Epidemiologia e genômica de adenocarcinomas gástricos no Brasil (nº 14/26897-0); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Emmanuel Dias-Neto (A.C.Camargo Cancer Center); Investimento R$ 2.632.274,23.
2. Explorando o exoma de carcinomas mucoepidermoides salivares na busca de marcadores prognósticos mais precisos (nº 14/07249-7); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Luiz Paulo Kowalski (A.C.Camargo Cancer Center); Investimento R$ 256.192,74.
3. Detecção de células tumorais circulantes e sua correlação com evolução clínica em carcinoma epidermoide de cabeça e pescoço (nº 13/08125-7); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisadora responsável Ludmilla Thomé Domingos Chinen (A.C.Camargo Cancer Center); Investimento R$ 306.452,01.
4. Aspectos moleculares envolvidos no risco, desenvolvimento e progressão do carcinoma ductal de mama: Busca de novos genes de susceptibilidade e investigação da progressão do carcinoma in situ e do papel da mutação em BRCA1 no tumor triplo negativo (nº 13/23277-8); Modalidade Projeto Temático; Pesquisadora responsável Dirce Maria Carraro (A.C.Camargo Cancer Center); Investimento R$ 2.364.609,18.
Artigos científicos
NUNES, D. N.; KOWALSKI, L. P. e SIMPSON, A. J. Circulating tumor-derived DNA may permit the early diagnosis of head and neck squamous cell carcinomas. International Journal of Cancer. 13 fev. 2001.
TORREZAN, G. T. et al. Recurrent somatic mutation in DROSHA induces microRNA profile changes in Wilms tumour. Nature Communications. 9 jun. 2014.
ABDALLA, E. A. et al. Thymidylate synthase expression in circulating tumor cells: A new tool to predict 5-fluorouracil resistance in metastatic colorectal cancer patients. International Journal of Cancer. v. 137 (6), p. 1397-405. 2015.
ABDALLA, E. A. et al. MRP1 expression in CTCs confers resistance to irinotecan-based chemotherapy in metastatic colorectal cancer. International Journal of Cancer. v. 139 (4), p. 890-8. 2016.
BUIM, M. E. et al. Detection of KRAS mutations in circulating tumor cells from patients with metastatic colorectal cancer. Cancer Biology and Therapy. v. 16 (9), p. 1289-95. 2015.
AMORIM, M. et al. The overexpression of a single oncogene (ERBB2/HER2) alter the proteomic landscape of extracellular vesicles. Proteomics. v. 14 (12), p. 1472-79. 2014.
PEINADO, H. et al. Melanoma exosomes educate bone marrow progenitor cells toward a pro-metastatic phenotype through MET. Nature Medicine. v. 18 (6), p. 883-91. 2012.