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ENTREVISTA

Regina Maria Prosperi Meyer: Estudos para uma cidade em movimento

Urbanista que criou novas disciplinas na FAU-USP dedica-se a pensar a macrometrópole paulistana

LÉO RAMOS CHAVESRegina Meyer gostava tanto de dar aulas na graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP) que se empenhou em “negar a realidade” – de tal forma que a chegada da aposentadoria aos 70 anos, em 2011, foi sentida como uma brusca interrupção. “Eu estava em pleno voo”, diz. “Continuava pesquisando e buscando criar novas disciplinas.” O entusiasmo dos alunos a contagiava, e vice-versa. Hoje Regina investe sua energia em novos projetos de pesquisa e na orientação de alunos de pós-graduação.

Nascida em Guaxupé (MG), a urbanista veio nos primeiros anos de vida para São Paulo, cidade que se tornou o objeto de estudo prioritário em sua carreira. Casou-se aos 22 anos e foi com o marido, o psicanalista Luiz Meyer, estudar na França e depois em Genebra, Suíça, onde, na impossibilidade de enfrentar um labiríntico processo de seleção para a faculdade de arquitetura, encaminhou-se para a psicologia. “Fui aprovada em 1968. O curso de psicologia da Universidade de Genebra estava em grande evidência internacional graças ao trabalho inovador de Jean Piaget. Tive de interromper o curso ao fim do segundo ano para voltar ao Brasil.” Ao chegar a Brasília, para onde se mudou para acompanhar o marido, que havia aceitado o convite para criar o Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de Brasília (UnB), deparou-se com o predomínio da tendência behaviorista, oposta a Piaget, nos cursos de psicologia locais. Desapontada, retomou seu antigo interesse pela arquitetura, dando início a uma carreira que se dirigiu para o urbanismo e o planejamento urbano.

Regina Meyer, casada e mãe de dois filhos, Diogo (biólogo) e Ana Elisa (produtora na área editorial), concedeu esta entrevista em seu apartamento num edifício projetado pelo arquiteto Rino Levi nos anos 1940 e decorado com azulejos do paisagista e artista plástico Burle Marx em um bairro da região central de São Paulo.

Idade
75 anos
Especialidade
Planejamento e urbanismo
Formação
Graduação em arquitetura e urbanismo pela Universidade de Brasília (1974); mestrado pela University of London (1977); doutorado pela USP (1991)
Instituição
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP
Produção científica
53 artigos, 22 capítulos de livros, 9 trabalhos técnicos, 41 orientações de alunos de pós-graduação

Seus estudos sobre as metrópoles, São Paulo em particular, sempre se caracterizaram por um diálogo intenso com as mudanças no terreno prático. A que se dedica atualmente?
Com colegas da FAU estou dando prosseguimento a um projeto que, no meu caso, cumpre um itinerário iniciado no doutorado, quando estudei a São Paulo dos anos 1950, e que prosseguiu com a observação das mudanças que estavam ocorrendo na metrópole nos anos 1990. No começo dos anos 2010, já estávamos fazendo uma pesquisa que avançava para uma escala urbana ampliada, a da macrometrópole, um conceito que, embora não fosse novo, ganhou mais evidência nas últimas décadas que assistiram à enorme expansão territorial das cidades e metrópoles. No nosso caso, é a conjugação das metrópoles paulistas que estão situadas num grande território de 53 mil quilômetros quadrados, com uma população de 30 milhões de habitantes distribuídos em 173 municípios. Esse imenso conjunto de cidades que gravita no entorno das metrópoles cria um território de ocupação quase contínuo que se irradia em eixos a partir de São Paulo. O trabalho teve muitos desdobramentos. Paralelamente, o governo do estado de São Paulo produziu um ambicioso Plano de Ação da Macrometrópole. Ainda não há resultados práticos porque o planejamento demora a criar raízes. Mas a definição desse poderoso território onde se concentra 73% do total da população paulista, 83% do Produto Interno Bruto (PIB) estadual e quase 30% do PIB nacional, ganhou visibilidade, diria até que ganhou presença nas políticas públicas. Nesse momento, o objetivo é escrever artigos cujo foco são as dinâmicas urbanas inseridas nessa escala macrometropolitana. Dar visibilidade para essa organização territorial pós-metropolitana é uma contribuição para as políticas públicas nessa escala.

Com a formação da macrometrópole as funções de cada cidade mudaram?
A formação macrometropolitana é um processo histórico. Trata-se de um processo de urbanização que, ao evoluir, foi criando características urbanas distintas. Nas análises da evolução urbana, à medida que se alteram as escalas se transformam também as questões com as quais temos que lidar. No caso da macrometrópole paulista, o reconhecimento da existência do potencial desse território, em termos contemporâneos, é muito importante, e, embora estivessem sempre presentes, as políticas públicas para seu fortalecimento enquanto território de funcionamento articulado são ainda novas. São Paulo é, e acredito que continuará sendo, o núcleo dessa macrometrópole, porque possui características funcionais inerentes a um centro poderoso. Assim como Paris e Londres dominam o território no seu entorno, a hegemonia regional está presente em São Paulo graças a muitos fatores, sobretudo pela capacidade de organização do capital e, de certa forma, da força de trabalho, assim como da pesquisa e do conhecimento, em razão dos grandes centros universitários, da Bolsa de Valores, das sedes de empresas etc. Isso não significa que metrópoles do porte de Campinas e São José dos Campos, que também possuem importantes centros de pesquisa, não poderão disputar no futuro tais funções. Por enquanto, é em São Paulo que estão localizadas as instituições públicas e privadas onde as decisões são tomadas, embora a força de trabalho e a inovação produtiva estejam distribuídas nas demais metrópoles.

Quais foram os marcos da trajetória que a levaram aos seus estudos atuais?
Depois do doutorado, ao longo da década de 1990, queria embarcar numa pesquisa sobre as transformações urbanas que estávamos vivenciando em São Paulo. Isso implicava, obrigatoriamente, agregar outras áreas do conhecimento. Formei, com minha colega Marta Dora Grostein, o economista Ciro Biderman, recém-chegado de seu doutorado em economia urbana no MIT [Massachusetts Institute of Technology], já professor da FGV [Fundação Getulio Vargas], com muitos alunos da graduação e da pós-graduação, um grupo de trabalho que conjugou o Cebrap [Centro Brasileiro de Análise e Planejamento] e a FAU. O resultado, após seis anos de trabalho, foi publicado em 2004 no São Paulo metrópole [Imesp/Edusp]. A ideia central da pesquisa era identificar e analisar São Paulo a partir de uma perspectiva urbana na década de 1990. Os dados e uma grande produção de cartografia analítica buscavam acompanhar um processo de mudança que vinha amadurecendo desde os anos 1970, que conduzia a metrópole a um estágio no qual a atividade industrial começava a perder sua hegemonia. Nosso interesse central era analisar o território urbano. A pesquisa teve um impulso decisivo quando da formação do Centro de Estudos da Metrópole [CEM], criado em 2000 como um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão [Cepid] financiados pela FAPESP, em conjunto com o Cebrap, a Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados [Seade], a TV Cultura e o Sesc [hoje o CEM tem sede também na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP]. Em 2005 o grupo da FAU se desligou do Cepid e montou o Laboratório de Urbanismo da Metrópole, o Lume. Foi uma das iniciativas mais importante da qual participei na FAU. A criação do Lume abriu caminho para outros trabalhos. No mesmo ano iniciamos uma nova pesquisa que resultou no segundo livro sobre a metrópole paulistana – A leste do centro: Territórios do urbanismo –, publicado em 2010 pela Edusp e Imprensa Oficial do Estado.

Do que se tratava?
Era um estudo com foco no crescimento urbano e nas transformações de um setor demarcado a partir da área central de São Paulo. A ênfase inicial foi o processo de transformação histórica de um território definido como “vetor leste do Centro” em direção aos tradicionais bairros industriais, tais como Bom Retiro, Brás, Mooca, Pari, até alcançar a periferia leste do município. A pesquisa teve um forte recorte transdisciplinar, no qual se destacaram os conteúdos da construção histórica, a avaliação ambiental, a estruturação urbana promovida pelo transporte público. Buscamos também avançar para uma pauta de diretrizes de projetos urbanos. Introduzimos nesse aspecto um novo instrumento de plano e projeto, a ZIM – Zona de Interesse Metropolitano. Foi possível avaliar o impacto da ligação do Centro, via transporte de massa, com sua periferia mais populosa, situada a 30 quilômetros de distância, por ter sido o maior destino de conjuntos habitacionais produzidos pelo poder público nos anos 1960 e 1970. Aliás, todos aqueles conjuntos foram erguidos sem considerar o deslocamento diário dos seus moradores para chegar aos seus postos de trabalho. O estudo reforçou a ideia de que não podemos trabalhar com as cidades como se fossem “naturezas-mortas”, mas como espaços em permanente movimento.

De que forma suas atividades mudaram depois que se aposentou?
A aposentadoria não implica desligamento da pós-graduação. Continuo com muitas atividades na universidade. Mantive as orientações de mestrado e doutorado, a pesquisa acadêmica e as aulas nos cursos de pós-graduação, algo muito presente no meu dia a dia. Minha carreira acadêmica foi um pouco sui generis. A maior parte dos professores construiu trajetórias com enfoque mais diversificado. A minha foi marcada pela grande atividade didática, com propostas de novos cursos, trabalho em equipe e muitos orientandos com trabalhos de final de graduação.

A que atribui essa peculiaridade?
Não houve um projeto deliberado. Tenho a impressão, olhando em retrospecto e até mesmo de maneira bem crítica, de que eu gostava das atividades acadêmicas associadas à sala de aula. Hoje penso que poderia ter equilibrado melhor minhas atividades e me dedicado mais a frequentar congressos, por exemplo. Eu ficava muito naquele corpo a corpo cotidiano. Também não fiz uma carreira voltada para o exterior. A ênfase na publicação em revistas estrangeiras veio um pouco tardiamente para mim. Recentemente fui editora convidada de um número temático sobre São Paulo para a Revista de Urbanismo Iberoamericano (RiUrb). É uma publicação especializada em urbanismo, muito conceituada, publicada simultaneamente em Buenos Aires e Barcelona. Esse é o tipo de trabalho que só venho fazendo agora.

Que tipo de disciplinas criou?
Busquei criar disciplinas optativas voltadas ao urbanismo contemporâneo. Até a década de 1980 nossos cursos estavam trabalhando com os marcos do Movimento Moderno. Mas, por outro lado, tornou-se importante distinguir as questões da urbanização daquelas do urbanismo com os alunos. A urbanização entendida como um processo e o urbanismo como a forma que esse processo ganha através da realização de projetos de todo tipo, do infraestrutural aos parâmetros construtivos, foi introduzida na FAU de forma muito sólida nos anos 1960 por meio de estudos e livros do professor Nestor Goulart Reis. Foi um trabalho valioso, que influenciou muito o ensino, tanto dentro da faculdade como fora dela. Mas, apesar desse acervo metodológico, permanecia em alguns cursos uma indistinção que eu considerava prejudicial. Procurei mostrar, por meio das disciplinas que ministrava, que o urbanismo é uma atividade indissociável do projeto e sempre propositiva. Essa foi a minha contribuição para os estudantes e jovens arquitetos que se formavam na faculdade nos anos 1990 e 2000.

Por que essa ênfase?
Penso que era necessário ter clareza sobre as questões pertinentes ao urbanismo e aquelas do processo de urbanização. E, para complicar, havia uma outra questão a ser enfrentada com relação ao planejamento urbano. Na FAU há um grupo de disciplinas que se ocupa exclusivamente do planejamento urbano, de professores muito atuantes e produtivos. Mas distingue-se em termos de abordagem e produção daquele que lida com o urbanismo e com a urbanização. O planejamento urbano promove uma situação processual e adequada para que o projeto urbanístico se realize. São esferas de atuação, mais do que complementares, totalmente interdependentes. É interessante lembrar que as distinções ficavam bem claras quando nos encontrávamos diante de cursos de história do urbanismo, do planejamento urbano ou da urbanização. Todo material que compõe cada uma dessas histórias é distinto, específico. E, na prática, quando estamos diante da intervenção urbana, propositiva, é importante reconhecer as dificuldades que têm origem na desarticulação entre um plano que não se concretiza devido à ausência de projetos urbanísticos ajustados ao planejado, ou projetos e planos que são elaborados sem considerar de forma correta o processo de urbanização.

Hoje, por onde se pode puxar o fio da meada para solucionar os problemas da cidade?
Essa é uma pergunta quase irrespondível. Solucionar os problemas da cidade e da metrópole é uma meta sempre presente, complexa e que só pode ser encarada de forma incremental. Não é possível indicar um caminho único, linear. O adjetivo “estratégico”, que se incorporou ao vocabulário do planejamento, dá uma ideia da necessidade de rever, permanentemente, os objetivos e, sobretudo, os instrumentos de ação. Um possível encaminhamento para entender os dilemas atuais da cidade de São Paulo está associado ao seu imenso e desgovernado crescimento territorial, à expansão sem limite e, principalmente, a um padrão de expansão periférica. Uma perspectiva esclarecedora poderá vir da própria evolução, melhor dizendo “involução”, dos transportes públicos e desse padrão de expansão urbana. Desde quando trabalhei com os temas dos anos 1950 para escrever minha tese, constatei que nos anos 1930 não escolhemos apenas um modelo de funcionamento para a cidade – escolhemos sobretudo um destino. Optando pelo caminho traçado pelo plano de construção do sistema viário proposto pelo prefeito Prestes Maia [1938-1945], caminhamos de forma inexorável para um modelo rodoviarista. Hoje já está claro que um dos grandes déficits da cidade é a insuficiência do transporte público e da circulação. Desde a chegada das vias expressas e do crescente aumento da frota de automóveis, as questões de mobilidade e de trânsito monopolizaram as propostas. O destino da cidade foi traçado quando, na década de 1930, a ideia de começarmos a construir o metrô foi rechaçada. Prestes Maia argumentava então que o metrô era uma solução correta em termos de transporte de massa, porém inadequada como proposta urbanística para São Paulo naquele momento. Na sua visão, era preciso primeiro estabelecer uma potente malha de avenidas e um sistema viário articulado para só depois introduzir uma rede de metrô. Isso foi fatal.

O fato de ter cursado a graduação em Brasília, a cidade planejada por excelência, influiu em suas concepções de urbanismo?
Fiz minha graduação naquela cidade que era um verdadeiro laboratório do funcionalismo urbano e modernismo arquitetônico. Na UnB parecia não haver outra opção para pensar as cidades. Eu estudava e morava em Brasília de uma maneira acrítica. Tinha um filho de 3 anos que ia para a escola sozinho enquanto eu o acompanhava olhando pela janela. Me vangloriava dessa vantagem diante de outras mães que viviam em São Paulo e levavam os filhos de carro para a escola. Considerava a vida na superquadra uma maravilha. Além disso, no começo dos anos 1970, a cidade ainda estava em construção e todos nós sentíamos como “construtores” daquele processo, mesmo vivendo em plena ditadura militar.

Quando começou a ver Brasília de maneira crítica?
Na medida em que vivia lá, convivia com pessoas que trabalhavam no Plano Piloto e moravam nas cidades satélites, Gama, Taguatingua, Sobradinho… As pessoas vinham diariamente de muito longe e precisavam chegar até a rodoviária, localizada no centro geométrico da cidade, para a partir dali alcançar seus lugares de trabalho nas superquadras ou em outros setores do Plano Piloto. Foi ficando claro para mim que ali existia uma questão não resolvida, um problema. Saltou aos olhos que o plano não tinha encaminhado tão bem a questão da segregação espacial-urbana.

E como vê o projeto de Brasília hoje?
Penso que é uma cidade que nasceu de uma teoria, que na infância já tinha completamente definida sua imagem adulta. E, ao longo de seu desenvolvimento, não estaria apta a incorporar as transformações que ocorreriam, sendo, como era, filha da mais ortodoxa teoria do funcionalismo. Não há como negar que Brasília mostrou rapidamente suas fragilidades, isto é, a vida cotidiana deixa claro que aquela não é a forma mais adequada de se projetar a cidade do futuro. O projeto fechado, elaborado com todos os condicionantes da década de 1950, deixava poucas brechas para incorporar o novo. Acho que foi a intensa experiência vivida em Brasília que me fez buscar o urbanismo como tema de estudo e trabalho.

Como a pós-graduação em Londres influiu em sua visão?
Cheguei em 1976 na Architectural Association School of Architecture, uma escola vanguardista, e constatei que já havia uma grande quantidade de textos críticos sobre o fim dos pontos de doutrina do funcionalismo ortodoxo. E, a duras penas, fui percebendo que precisava rever posições. O que eu conhecia era um urbanismo criado para resolver os problemas da cidade industrial, construídas do zero, guiado pela organização das funções – habitar, trabalhar, recrear e circular – pensadas separadamente. Percebi que as cidades construídas a partir do zero não representavam mais os desafios das cidades contemporâneas. Não queria renegar minha formação, mas tive que me curvar às evidências. Quase como um retorno àquela fase de minha formação, início da pós-graduação, escrevi recentemente um artigo sobre o livro Los Angeles – A arquitetura de quatro ecologias (Martins Fontes), de Reyner Banham, publicado em 1971 e traduzido no Brasil há apenas quatro anos. Nesse artigo, publicado na Revista Pós, da FAU, retomo meus interesses dos anos 1970. O Banham era professor da Bartlett School of Architecture, na qual fiz a segunda parte de minha pós-graduação, depois que deixei a Architecture Association. O pensamento dele me influenciou muito naquele momento.

Ao voltar, pôde aplicar os conhecimentos que trazia?
Logo que cheguei tive oportunidade de dirigir o Departamento do Patrimônio Histórico [DPH] do município, ligado à Secretaria de Cultura, entre 1983 e 1985. Eu me empenhei muito para me enfronhar nas questões e nos temas da preservação do patrimônio histórico específicos de São Paulo. Depois de alguns meses de trabalho, quando participava da elaboração do Plano Diretor coordenado pelo arquiteto e secretário do Planejamento Jorge Wilheim, comecei a pensar que as questões de preservação do patrimônio, que o DPH tratava, seriam mais adequadas se pertencessem a um órgão de planejamento. O secretário da Cultura Gianfrancesco Guarnieri ficou muito irritado com meu posicionamento e fui demitida. A minha participação nas discussões e na elaboração do plano diretor da cidade, no início dos anos 1980, fez nascer um interesse pelas questões da área central de São Paulo que mais tarde retomei. Ao deixar o DPH fui para a Secretaria Estadual de Cultura, em que coordenei um projeto proposto pelo secretário Jorge da Cunha Lima, cujo nome era Luz Cultural. O foco era a criação de um bairro onde a cultura seria a atividade primordial. Havia uma influência de projetos em andamento na Europa, nos quais se buscava criar espaços urbanos privilegiados para as atividades culturais, que, por sua vez, promoveriam processos de renovação urbana. Na Europa, a saída dos grandes mercados de alimento das regiões centrais rumo a áreas mais distantes abriu caminho para reurbanizações radicais. Hoje penso que, apesar da intuição correta da proposta, a função cultural não sustentaria as transformações urbanas desejáveis para a região.

Quais mudanças presenciou na FAU?
O grande abalo sofrido pela arquitetura e pelo urbanismo a partir nos 1960 e 1970 centrado no Movimento Moderno, como não poderia deixar de ser, atingiu a prática e o ensino. A renovação teórica foi intensa. Isso deveria repercutir pesadamente no conteúdo dos cursos. Mas a disposição de rever convicções e, consequentemente, o próprio método de ensino mostrou-se uma tarefa bastante difícil. Houve um certo entrincheiramento contra as novas teorias, sobretudo aquelas que punham em causa aspectos do modernismo e do funcionalismo urbano. Isso atingia bastante o planejamento urbano e o urbanismo. Um exemplo bem marcante: existia em Londres um emblemático órgão de planejamento urbano, o Conselho da Grande Londres (GLC), que concentrava todas as informações necessárias para a elaboração do planejamento e do projeto urbano. Era invejado em todo mundo pelo seu pioneirismo e eficiência. Esse centro foi fechado em 1983, depois que Margaret Thatcher [1979-1990] assumiu o cargo de primeira-ministra. A ascensão do thatcherismo, no caso londrino, e do neoliberalismo, de forma mais geral, levou o planejamento urbano e o urbanismo a um grande recuo. Até os anos 1980, em São Paulo, as secretarias municipal e estadual de Planejamento eram órgãos importantes. Mas a partir dos anos 1990 elas se tornaram muito menos decisivas. Tudo isso dificultou a aceitação de críticas pertinentes que se apresentavam naquele momento.

De que forma a senhora abordou curricularmente essas mudanças? 
Em 1991 propus a disciplina chamada “Intervenção na cidade existente: O percurso do projeto urbano”. O objetivo era discutir os projetos, do exterior e os nacionais, buscando desenvolver a capacidade do aluno de fazer uma análise crítica de projetos urbanos contemporâneos. Fizemos um grande esforço para que o curso e os exercícios desenvolvidos em aula levassem os alunos a entender a complexidade da cidade contemporânea, a cidade existente, para dela retirar as possibilidades do projeto. Seus condicionantes, de toda ordem, é que deveriam ser os pontos de partida do projeto. Esse curso foi o principal responsável pelo meu engajamento na graduação.

Nessa mesma época de crise do plane-jamento no exterior o Brasil foi em direção contrária, com a definição da função social da habitação pela Constituição de 1988, a aprovação do Estatuto das Cidades (2001), a criação do Ministério das Cidades, os planos diretores…
Essa direção contrária, na verdade, se resume a importantes marcos legais. Alguns ainda incompletos no que é essencial. O próprio Ministério das Cidades é pouco efetivo. Apesar do peso do urbano no Brasil, não chega a exercer um papel importante no pensamento sobre as cidades e metrópoles nacionais. A sua única atuação forte foi a condução do programa Minha Casa, Minha Vida, que já gastou algo perto de R$ 300 bilhões, produzindo conjuntos habitacionais que guardam todas as características do triste padrão periférico disseminado dos anos 1960. O planejamento ficou numa posição quase irrelevante. Uma ação de planejamento, para valer, deveria ter cruzado o transporte com o valor da terra, por exemplo. Muitos projetos habitacionais desconhecem o impacto da construção de uma linha e estações do metrô. As contradições saltam aos olhos. A rede de transportes em São Paulo está se ampliando e logo haverá metrô em regiões que ainda são carentes de infraestrutura básica. É um descompasso grande, mas, por outro lado, é preciso defender a chegada do transporte de massa, que é essencial para melhorar a vida de seus moradores.

A senhora sempre defendeu uma ideia que já foi polêmica, do adensamento populacional do Centro de São Paulo.
A defesa do adensamento não era polêmica. Havia quase um consenso de que o Centro estava esvaziado. E isso é um desperdício, pois ali se concentra de forma muito clara uma infraestrutura capaz de abrigar muito mais gente. Houve um período em que os moradores da área central foram se deslocando para a periferia. Eu defendia a ideia, que hoje se tornou hegemônica, de que era preciso repovoar o Centro. A densidade seria uma forma de aproveitar a infraestrutura já implantada. A região central oferece a segunda maior quantidade de postos de trabalho da cidade. Hoje, os setores do município com os maiores índices de trânsito são bairros estritamente residenciais de baixíssima densidade populacional, como o Morumbi. Em contraponto, em uma área de uso misto é possível fazer praticamente tudo a pé.

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