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Química

Iluminação natural

Processo químico da bioluminescência de fungos é reciclável e flexível

Cassius Stevani / IQ-USP A luz verde emitida por Neonothopanus gardneri é visível em noites escuras. Imagens alteradas digitalmente ilustram como seria se o fungo produzisse substratos alternativosCassius Stevani / IQ-USP

Uma rua iluminada por árvores brilhantes, em vez de postes e lâmpadas. A imagem parece um sonho, mas não chega a ser impossível para o químico Cassius Stevani, professor no Instituto de Química da Universidade de São Paulo (IQ-USP). “Mas é preciso tomar cuidado, não queremos que a floresta natural emita luz à noite”, alerta. Mesmo fora do horizonte da realidade, o cenário de ficção científica está enraizado na pesquisa de Stevani com fungos bioluminescentes, principalmente da espécie Neonothopanus gardneri, da Mata dos Cocais, no Piauí (ver Pesquisa FAPESP nº 168). Ele e uma série de colaboradores, sobretudo russos e brasileiros, acabam de desvendar uma parte importante das reações químicas que iluminam cogumelos de verde, conforme mostra artigo publicado no dia 26 de abril no site da revista Science Advances.

Um ponto importante do estudo foi descobrir que a hispidina, uma molécula com propriedades farmacológicas presente em boa parte das plantas, é precursora da luciferina, substrato essencial à produção de luz nos fungos. A hispidina também está em cogumelos não luminescentes, nos quais é responsável por uma cor alaranjada e por protegê-los contra os danos causados pela luz solar.

De acordo com a sequência de reações químicas revelada pelo grupo de pesquisadores, a luciferina reage com oxigênio por ação da enzima luciferase e dá origem à oxiluciferina excitada, que, ao decair para o estado fundamental, emite um fóton – e, portanto, luz. Depois disso, a oxiluciferina sofre ação de outra enzima e dá origem ao ácido cafeico. Essa é outra descoberta importante porque o ácido cafeico já era conhecido como precursor da hispidina. Assim, Stevani explica que o ciclo se fecha. “Há uma reciclagem das moléculas envolvidas na bioluminescência, o que explica a pequena quantidade de hispidina existente nos fungos: ela é constantemente formada, em seguida reage e o ciclo da bioluminescência continua.” Como esse processo consome oxigênio, pode ser uma maneira de o organismo combater danos por estresse oxidativo.

Árvores e outras plantas também produzem ácido cafeico, e vem daí a brincadeira de sugerir a manipulação genética de modo que produzam as enzimas necessárias para completar a reação e brilhar. “Também seria possível produzir orquídeas luminescentes para o comércio de plantas ornamentais”, imagina o químico. O bioquímico norte-americano Hans Waldenmaier, que no ano passado terminou o doutorado sob orientação de Stevani, está justamente com planos de montar uma empresa para produzir plantas bioluminescentes em seu país natal. O intuito não é apenas decorativo. “Talvez um dia seja possível usar esse sistema como repórter para seguir processos biológicos de plantas e aplicar a problemas de saúde humana”, diz o professor do IQ-USP. Proteínas fluorescentes usadas como marcador genético luminoso, ou repórter, renderam a Osamu Shimomura, Roger Tsien e Martin Chalfie o prêmio Nobel de Química em 2008, exatamente pela importância na visualização de processos bioquímicos. Naquele caso se tratava de uma proteína fluorescente produzida por medusas, amplamente usada em laboratórios do mundo todo.

Química produtiva
Os resultados obtidos no artigo da Science Advances nasceram da colaboração entre Stevani e o químico russo Ilia Yampolsky, do Instituto de Química Bio-orgânica, em Moscou, uma parceria que surgiu de maneira inusitada. Quando soube, por relato de alunos que voltavam de um congresso internacional, que Yampolsky buscava caracterizar moléculas responsáveis pela bioluminescência de fungos, o brasileiro entrou em contato para propor unir esforços. Mas chegou tarde demais: os resultados já estavam submetidos para publicação, a partir de culturas de um fungo muito semelhante ao brasileiro: era Neonothopanus nambi, originário do Vietnã. Na disputada corrida acadêmica, a derrota para um pesquisador com um histórico mais recente de pesquisa nesse tema poderia ser motivo para despeito e inimizade. Aconteceu o contrário. Para chegar aos resultados apresentados na Science Advances, cada um contribuiu com sua especialidade – o russo em síntese de compostos orgânicos e o brasileiro em mecanismos químicos. Em São Paulo, também participaram os químicos Erick Bastos e Paolo di Mascio, do IQ, e Anderson Oliveira, do Instituto Oceanográfico, além dos farmacêuticos Felipe Dörr e Ernani Pinto, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas, todos da USP.

Além de elucidarem as moléculas presentes na reação de bioluminescência, eles viram que a luciferase é versátil. Yampolski sintetizou variações da luciferina, que, ao reagirem com a luciferase, também geram luz. Como essas moléculas não são produzidas pelos fungos, a reação foi produzida dentro de um aparelho, o luminômetro, que acusou a presença de luz. A diferença é que ela teria um comprimento de onda distinto do verde observado na natureza e, caso a reação acontecesse na natureza, seria possível ver cogumelos brilhando em outras cores, como as imagens alteradas que ilustram esta reportagem: uma “licença poética”, nas palavras do químico brasileiro.

Entre a química pura, a ficção e aplicações tecnológicas, Stevani ainda passeia pela biologia ao investigar o significado ecológico da luminescência dos cogumelos. Os resultados obtidos por Waldenmaier em sua pesquisa de doutorado ainda estão sendo preparados para publicação, mas já dá para dizer que filmagens e experimentos em campo sugerem que o brilho atrai insetos e cria um verdadeiro ecossistema em miniatura. Os cogumelos parecem ser um ponto de encontro para vagalumes que os visitam aos pares. Baratinhas douradas comem o fungo e são caçadas por aranhas. Todos, Stevani sugere, atraídos pela luz que se propaga bem mais do que o cheiro no ambiente da floresta. Enquanto isso tudo acontece, os animais se recobrem de esporos e ajudam a disseminá-los. Afinal, crescendo perto do chão onde há mais umidade, falta vento para soprar as partículas reprodutivas. Na colaboração, todos parecem sair ganhando.

Projeto
Bioluminescência em fungos: Levantamento de espécies, estudo mecanístico & ensaios toxicológicos (nº 13/16885-1); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Cassius Vinicius Stevani (USP); Investimento R$ 183.183,40 + US$ 58.141,94.

Artigo científico
KASKOVA, Z. M. et al. Mechanism and color modulation of fungal bioluminescence. Science Advances. 26 abr. 2017.

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