Podcast: Anelisa Magalhães
O inventário enumera também 4.768 espécies de plantas, das quais 3.584 são nativas do município, reunidas por equipes coordenadas pelo biólogo Ricardo Garcia, curador do Herbário Municipal, que saem a campo desde meados dos anos 1980. É a primeira vez que a Secretaria Municipal do Verde e do Meio Ambiente divulga em um único documento registros de espécies animais e vegetais identificadas em 138 áreas da capital paulista. O objetivo do levantamento é fornecer subsídios para criar estratégias de conservação da biodiversidade na metrópole, servindo como ferramenta de monitoramento ambiental. “Esperamos que os dados sejam utilizados em programas de educação ambiental e em pesquisas sobre ecologia urbana, por exemplo”, sugere Anelisa.
O trabalho compila informações coletadas por levantamentos realizados em anos anteriores e também apresenta novidades. Um dos dados mais relevantes é que, do total de espécies de animais registradas, 92 constam da lista de ameaçados de extinção do estado de São Paulo. Se de um lado há perigo, de outro despontaram surpresas promissoras. Foram identificados mamíferos de grande porte que eram dados como extintos no município. É o caso da onça-pintada, localizada no Núcleo Curucutu do Parque Estadual Serra do Mar, no extremo da zona sul da cidade, registrada em janeiro de 2016 por uma equipe da organização Pró-Carnívoros. A presença do bicho sugere que a biodiversidade na região pode encontrar-se em um grau de conservação mais elevado do que no passado, comenta Anelisa. Descoberta semelhante ocorreu em 2010, quando a equipe da prefeitura identificou na área de preservação Capivari-Monos exemplares de muriqui-do-sul, um primata endêmico da Mata Atlântica.
O levantamento da flora também chamou a atenção. “Identificamos 35 espécies que nunca haviam sido documentadas”, diz Garcia. Dentre elas estão a Hypochaeris albiflora, da família Asteraceae (a mesma do girassol e da margarida), a Bulbostylis subtilis, da família Cyperaceae, e a Marlierea regeliana, da família Myrtaceae. Dezoito espécies vegetais presentes na capital são exclusivas do Cerrado, sendo que cinco delas foram recentemente registradas em ambientes naturais. A Mimosa debilis, da família das Fabaceae, é um exemplo.
A riqueza da biodiversidade na capital não é exclusividade de locais próximos do chamado cinturão verde de São Paulo, onde estão localizadas áreas de mata fechada, como a serra da Cantareira e a serra de Itapeti. O inventário mostra que, em localidades onde predomina a mancha urbana, também se nota uma grande diversidade de plantas e animais silvestres que sobrevivem em meio a prédios e asfalto. “Talvez essa seja a principal contribuição do inventário”, afirma o biólogo Carlos Joly, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “O levantamento indica que mesmo em uma grande metrópole como São Paulo é possível entrar em contato com a natureza. Muitas pessoas pensam que para ter contato com a biodiversidade precisam viajar para a Amazônia”, completa Joly, que coordena o Biota-FAPESP, programa de pesquisa em caracterização, conservação, restauração e uso sustentável da biodiversidade.
Exemplares de aves típicas de matas mais densas, como a araponga, o pavó e o tucano-de-bico-verde, podem ser observados nos parques Ibirapuera, Aclimação, Buenos Aires, Independência, Burle Marx e Villa-Lobos. Anelisa conta que, quando se graduou em 1990, os estudos de campo realizados no município eram concentrados em áreas bem protegidas e conservadas. Havia, na época, o guia de aves do campus da Universidade de São Paulo (USP), feito pela zoóloga Elizabeth Hofling, e um levantamento das aves da Cantareira. “Esses locais foram estudados por serem sedes de instituições de pesquisa, como a USP e o Instituto Florestal. A equipe da prefeitura foi a primeira a desbravar os remanescentes de matas da zona sul e também os parques urbanos municipais”, diz Anelisa. “No início tinha a impressão de que na cidade só havia pombas, urubus e ratos, ou seja, uma fauna considerada de menor importância ecológica.”
Exemplares de aves silvestres têm conseguido sobreviver na cidade graças aos parques. Em muitos deles, a vegetação predominante é de bosques heterogêneos, caracterizados por agregar espécies de árvores nativas e exóticas. “Essas ilhas verdes funcionam como viveiros naturais para espécies que necessitam de sombreamento”, explica Garcia. Esses locais, diz ele, atuam como “trampolins” para aves, insetos e morcegos, que contribuem para a polinização e dispersão de sementes. Pedro Develey, diretor-executivo da organização não governamental BirdLife/Save Brasil, argumenta que a entrada de tucanos e arapongas na cidade é um indício de que ainda há ambientes capazes de acolher espécies silvestres, apesar do avanço da urbanização. “Essa informação deve servir de alerta à gestão pública”, sugere Develey. “Fica clara a importância de colocar em prática mais projetos de arborização conectando fragmentos de vegetação remanescente.”
No passado recente, levantamentos de fauna e flora foram úteis para elaborar políticas. Entre 1999 e 2003, foi produzido o Atlas ambiental do município de São Paulo, conduzido pelas secretarias municipais do Verde e do Meio Ambiente e do Planejamento em parceria com pesquisadores da USP e com apoio do programa Biota-FAPESP. Seus resultados foram considerados na formulação do Plano Diretor da cidade e da Política Municipal de Meio Ambiente. Anteriormente, em 1993, biólogos da prefeitura haviam participado de uma iniciativa que ajudou a ampliar o levantamento de espécies vegetais, o Projeto Flora Fanerogâmica do Estado de São Paulo, financiado pela FAPESP, que mobilizou cerca de 200 pesquisadores e resultou na descrição de cerca de 2 mil espécies fanerógamas (que produzem flores) na vegetação nativa.
Nos últimos anos, outros municípios passaram a levantar suas espécies de fauna e flora, entre eles Curitiba, Campinas e Guarulhos. “Nosso inventário foi divulgado há poucos meses. Ainda estamos na fase inicial de apresentar os dados a acadêmicos e gestores públicos”, ressalta Anelisa. Um dos primeiros pesquisadores a utilizar os dados recém-publicados é o ecólogo Jean-Paul Metzger, do Instituto de Biociências da USP. “Estou usando o inventário em aulas na graduação. Os alunos analisam os dados para identificar os fatores que influenciam a biodiversidade dentro da cidade de São Paulo”, explica Metzger.
Quando comparadas com outras classes de animais, as aves lideram em número de espécies na cidade: são 458 no total. Por essa razão, e pela facilidade com que podem ser observadas e escutadas, elas ocupam posição de destaque nas análises que a equipe de Anelisa tem feito do inventário. “As aves são bons indicadores de qualidade ambiental na cidade”, informa. Durante o período de 1993 a 2016, por exemplo, observou-se a colonização de algumas espécies que antes eram raras e se tornaram muito comuns, como é o caso da pomba-asa-branca (Patagioenas picazuro), que ocorre no Cerrado, na Caatinga e na mata de galeria, aquela que acompanha cursos d’água. Essa pomba foi registrada pela primeira vez no município em 1993, no Parque do Ibirapuera, e hoje é comum em toda a cidade. Outra pomba silvestre comum no Cerrado e na Caatinga, que acabou colonizando a cidade, é a pomba-de-bando (Zenaida auriculata).
Ajuda dos cidadãos
A equipe comandada por Anelisa aproveitou dados coletados por observadores de aves e depositados no WikiAves, uma base com registros de mais de 1.800 espécies brasileiras e 1,9 milhão de fotos, tiradas por mais de 26 mil usuários (ver Pesquisa FAPESP nº 245). “Foi a primeira vez que complementamos as nossas informações com dados fornecidos por amadores”, explica a pesquisadora. Em 2016, o programa de monitoramento do Cidadão Cientista da ONG Save Brasil ampliou suas atividades fazendo uma parceria com o Instituto Butantan e a prefeitura de São Paulo, por meio do Depave, e lançou a iniciativa Vem Passarinhar (#vempassarinhar), realizando saídas de observação de aves em parques municipais. Essas atividades são compostas de uma caminhada, seguida de um café da manhã com todos os participantes e uma apresentação das espécies avistadas.
Assim como o Depave, o Butantan tem aproveitado os dados coletados nessa experiência no monitoramento mensal que faz de suas espécies de aves. O acompanhamento faz parte de um projeto iniciado há quase três anos, que consiste na atualização de um inventário de fauna e flora das espécies animais e vegetais existentes no parque do instituto. “Fazemos um trabalho parecido com o que o Depave faz no município de São Paulo, só que no nosso caso estamos colocando uma lupa sobre a biodiversidade presente dentro do Butantan, que ocupa uma área de 80 hectares, dos quais 60 são de mata fechada”, explica a bióloga Erika Hingst-Zaher, pesquisadora do Museu Biológico da instituição. O objetivo, diz ela, é levantar dados mais precisos sobre as espécies silvestres presentes no local e utilizá-los em iniciativas de manejo da vegetação e da fauna do parque. “Gostaríamos de aumentar a diversidade da fauna no instituto e, para isso, precisamos conhecer bem o que temos aqui”, esclarece Erika.
O biólogo Luciano Lima explica que, desde o início do levantamento, já foram registradas mais de 150 espécies de aves no local. “Muitas dessas espécies aparecem na lista, mas não vivem o tempo inteiro no Butantan. Daí vemos a importância do parque do instituto como local de refúgio para espécies migratórias, que vêm da Amazônia ou do Nordeste”, diz Lima. Além de pássaros, o inventário também se concentra em outras espécies de animais, como aranhas, morcegos e borboletas. Mas, segundo Lima, as aves são as que mais saltam aos olhos e ouvidos. “Enquanto estamos aqui conversando, já cantaram umas seis espécies de aves lá fora.”
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