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Ecologia

Aliança no fundo do mar

As seis espécies de peixes-limpadores do atol das Rocas conseguem alimento ao remover parasitas de peixes maiores

ivan sazima Elacatinus phthirophagus (amarelo e preto) limpando Cephalopholis fulvaivan sazima

As águas do atol das Rocas, a 267 quilômetros (km) de Natal, Rio Grande do Norte, abrigam um dos fenômenos mais chamativos dos recifes, quando os peixes predadores se concedem momentos de trégua e se submetem à limpeza realizada por outros peixes e camarões. Em um dos levantamentos mais abrangentes já realizados no atol, biólogos da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) identificaram oito espécies limpadoras – seis de peixes e duas de camarões – nessa área de conservação biológica, fechada para visitação pública, com área de 5,5 quilômetros quadrados (km2).

Os peixes-limpadores se especializaram em comer parasitas, tecidos doentes ou muco de peixes maiores e tartarugas,  que os especialistas chamam de clientes. “Como resultado dessas interações, os clientes mantêm a saúde e o limpador consegue alimento, mas os dois lados tiveram que evoluir até se reconhecerem e não se atacarem na hora da limpeza”, resume o biólogo colombiano Juan Pablo Quimbayo Agreda, pesquisador da UFSC. Ele integra a Rede Nacional de Pesquisa em Biodiversidade Marinha (Sisbiota-Mar), que reúne 30 pesquisadores de nove instituições, com o propósito de avaliar a biodiversidade das quatro ilhas oceânicas do Brasil: o atol das Rocas, o arquipélago de Fernando de Noronha e o de São Pedro e São Paulo e as ilhas de Trindade e Martim Vaz.

“Os peixes-limpadores evoluíram a partir de outros peixes que comiam pequenos crustáceos e outros invertebrados”, comenta o biólogo Carlos Ferreira, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) e um dos coordenadores da Sisbiota-Mar. Segundo ele, ao se especializarem em comer parasitas, um recurso alimentar pouco abundante, os peixes que vivem principalmente em recifes “evitaram a competição por outros alimentos”.

Em maio de 2016, sob a orientação de Ferreira e dos biólogos Sérgio Floeter, da UFSC, e Ivan Sazima, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Quimbayo e os biólogos Lucas Nunes e Renan Ozekoski, também da Sisbiota-Mar, observaram 318 interações de limpeza entre os peixes, em profundidades variando de 1 metro (m) a 5 m, durante 44 horas ao longo de 22 dias.

Duas espécies exclusivas da região foram as mais atuantes: o bodião-de-noronha (Thalassoma noronhanum), que atinge 12 cm quando adulto, e o neon-cata-piolho (Elacatinus phthirophagus), de até 4 cm. O bodião participou de 75% das faxinas e atendeu ao maior número de espécies de clientes, 18, de um total de 22 espécies de peixe e uma de tartaruga que procuraram os serviços dos limpadores. Em um artigo publicado em julho deste ano na revista Environmental Biology of Fishes, os biólogos atribuem o número elevado de sessões de limpeza ao fato de a maioria (82%) dos clientes ser herbívoros; além disso, o bodião era a espécie mais abundante por lá.

Os três biólogos observaram comportamentos peculiares dos peixes-limpadores do atol. Em Fernando de Noronha, apenas os bodiões jovens se alimentam de parasitas dos outros peixes, mas no atol o hábito se mantém também entre os adultos. No atol, o bodião evita se aproximar de espécies que poderiam comê-lo. “Supomos que essa espécie, de algum modo, consegue identificar as espécies perigosas, provavelmente por um processo evolutivo que eliminou os imprudentes”, diz Quimbayo.

O neon apresentou uma dieta flexível, abandonando os hábitos herbívoros de outros lugares para, no atol, saciar-se com vermes, até mesmo arriscando-se ao se aproximar de clientes carnívoros, como o tubarão-lixa (Ginglymostoma cirratum), que chega a 4 m de comprimento e 100 quilogramas (kg) de peso. Ao redor da ilha Malpelo, a 400 km a oeste da costa da Colômbia, entre agosto de 2010 e abril de 2015, Quimbayo identificou cinco espécies de peixe agindo como limpadores, nenhuma delas especializada nessa atividade como no atol. Em metade (56%) das 120 interações, os clientes eram espécies predadoras, como garoupas, raias e tubarões.

juan quimbayo O camarão Lysmata, de antenas brancas, entre as nadadeiras ventrais de um Holocentrusjuan quimbayo

Rituais de limpeza
Mais frequentes no início e final do dia, as limpezas podem durar de poucos segundos a vários minutos. As sessões de limpeza ocorrem em geral em espaços específicos, as chamadas estações de limpeza, próximas a rochas ou corais, e seguem rituais próprios (ver Pesquisa FAPESP no 79). Os clientes entram nas estações de limpeza e assumem cores mais vivas ou nadam de boca para baixo, indicando que se deixarão limpar e não atacarão. “Eles estão em uma zona de trégua, ninguém vai comer ninguém”, relata Quimbayo. Ele já viu que os limpadores não devem abusar da sorte para não correr o risco de serem comidos durante o serviço. “Se o limpador tirar um pedaço de pele ou muco, o cliente pode não gostar e reagir com uma mordida brusca.”

Dispersas pelas baías e ilhas do mundo, circulam 208 espécies de peixe-limpador, o equivalente a cerca de 3% das 6.500 espécies de peixe de recifes e menos de 1% do total das 30 mil espécies de peixe, de acordo com um levantamento coordenado por David Brendan Vaughan, da Universidade James Cook, da Austrália, publicado em 2016 na revista Fish and Fisheries. Camarões-limpadores são ainda mais raros. Das 51 espécies já identificadas, duas vivem no atol: Lysmata grabhami, com antenas brancas e até 6 cm de comprimento, e Stenopus hispidus, com corpo malhado de branco e vermelho, antenas brancas e até 10 cm de comprimento. Eles responderam por apenas 3,7% e 2,7%, respectivamente, de todos os episódios de limpeza registrados e entraram em ação principalmente quando os peixes-limpadores não estavam por perto, como Quimbayo já havia observado em um estudo de 2012 nas ilhas de Cabo Verde e São Tomé, na costa da África.

Ilhas em perigo
Os levantamentos da Sisbiota-Mar indicaram que o atol das Rocas é a mais preservada das quatro ilhas oceânicas brasileiras, por ser uma reserva biológica com acesso permitido somente a pesquisadores. “Mesmo em Fernando de Noronha, que possui status de parque nacional, a área protegida sustenta uma população humana crescente e existe uma área fora do parque em que são permitidas atividades como a pesca”, observa Ferreira. Segundo ele, os peixes da área protegida podem nadar para a não protegida, onde são pescados.

No arquipélago de São Pedro e São Paulo, a mil km de Natal, já não há tubarões e os cardumes de atum foram bastante reduzidos por causa da pesca excessiva, segundo Ferreira. Nos últimos anos, a ilha de Trindade, a 1,2 mil km a leste de Vitória, capital do Espírito Santo, tem sofrido a ameaça da pesca submarina, “por não ter nenhum status de proteção”, diz ele. Em agosto deste ano, na quinta expedição do projeto, a equipe da Sisbiota-Mar pretende voltar a Trindade para fazer o monitoramento anual das comunidades de organismos marinhos.

Artigos científicos
QUIMBAYO, J. P. et al. Cleaning interactions at the only atoll in the South Atlantic. Environmental Biology of Fishes. v. 100, n. 7, p. 865-73. 2017.
VAUGHAN, D. B. et al. Cleaner fishes and shrimp diversity and a re-evaluation of cleaning symbiosesFish and Fisheries. v. 18, p. 698-716. 2017.

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