Entidades empresariais, governo e agências de fomento discutem estratégias para estimular e organizar a disseminação da manufatura avançada no Brasil, um conjunto de tecnologias que sustentam processos industriais inteligentes. O desafio é garantir competitividade à indústria brasileira frente a uma transformação que ganha corpo na Europa e nos Estados Unidos, dando mais eficiência e flexibilidade a linhas de produção e reduzindo custos. A tendência também é conhecida como Indústria 4.0, alusão ao que seria uma quarta revolução industrial – com impacto na forma de produzir equivalente ao obtido com a invenção da máquina a vapor, com a chegada da energia elétrica a unidades fabris, no século XIX, e, num passado mais recente, com a integração da eletrônica e da automação no chão de fábrica.
O avanço da manufatura avançada em diversas cadeias produtivas terá impacto crescente sobre a indústria nacional, afirma o economista Rafael Moreira, assessor para Indústria 4.0 do Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços (MDIC). “Será cada vez mais intensa a pressão competitiva e as empresas brasileiras vão sentir a necessidade de se modernizar”, sugere Moreira, que coordena um grupo de trabalho do MDIC criado em julho com a missão de estabelecer uma política nacional de manufatura avançada. “Algumas empresas brasileiras já se posicionam nos estágios mais maduros da Indústria 4.0, mas são exceção. Certas instituições de pesquisa estão no estado da arte de algumas tecnologias da Indústria 4.0, embora tenham conexão fraca com o tecido industrial.” Para ele, será um desafio equilibrar as demandas de segmentos industriais brasileiros e os investimentos necessários em pesquisa e desenvolvimento (P&D) para a geração de novas tecnologias. Um dos focos do grupo do MDIC é estimular a criação de testbeds, que são vitrines de aplicações de conceitos da Indústria 4.0 nas quais soluções explorando o uso de tecnologias são testadas em um ambiente que simula o chão de fábrica. Os testbeds, afirma Moreira, podem mostrar às empresas o potencial das tecnologias e impulsionar o investimento privado em manufatura avançada.
Consórcios
Em maio, a FAPESP abriu um edital para selecionar empresas ou consórcios de empresas que queiram se tornar parceiros da Fundação na criação de um futuro centro de pesquisa em engenharia de manufatura avançada. O prazo para submissão de propostas vai até 11 de fevereiro de 2018. Após a seleção, será lançada outra chamada para selecionar instituições de ensino superior e de pesquisa interessadas em sediar o centro. Carlos Américo Pacheco, diretor-presidente do Conselho Técnico Científico da FAPESP, destacou, no lançamento do edital, que a FAPESP acompanhou o que está acontecendo nessa área no mundo, mais especificamente com os programas desenvolvidos na Alemanha e nos Estados Unidos, e manteve contatos com lideranças de associações industriais brasileiras. “É uma decisão baseada em uma necessidade irreversível da indústria e do desenvolvimento brasileiro”, afirmou.
A manufatura avançada se baseia em uma combinação de tecnologias. Uma delas são os sistemas ciberfísicos, capazes de monitorar, por meio de sensores e softwares, um conjunto de dispositivos, máquinas e equipamentos em um processo de manufatura e fazer com que se comuniquem entre si – seu contraponto são os sistemas eletrônicos embarcados, que funcionam de forma isolada e autônoma. Outras tecnologias envolvem a análise de Big Data para extrair tendências em enormes volumes de informações produzidos pelas máquinas; a computação em nuvem, em que dados são armazenados; a Internet das Coisas, que coleta e transfere dados a distância (ver reportagem); a realidade aumentada, que sobrepõe gráficos e vídeos ao mundo real, ajudando a monitorá-lo; a impressão 3D, que permite a fabricação de produtos customizados, entre outras. Tais recursos permitem trabalhar com um nível mínimo de estoques e conectar vários pontos das cadeias produtivas. Para países desenvolvidos, como Estados Unidos e Alemanha, os ganhos de eficiência obtidos com a Indústria 4.0 são valiosos também para enfrentar a concorrência chinesa, já que não conseguem competir nos custos de mão de obra.
A maioria dessas tecnologias está disponível, mas custa caro, observa João Alfredo Delgado, diretor de Tecnologia da Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos (Abimaq). “Não há nada de essencialmente novo. Ocorre que essas tecnologias se sofisticaram e hoje permitem que as empresas comecem a produzir de um modo que não conseguiam antes”, afirma. No Brasil, tecnologias de manufatura avançada estão sendo implantadas de forma mais consistente em grandes empresas ou em filiais de multinacionais. Nas unidades da Embraer, por exemplo, a montagem dos aviões passou a ser feita sem uso de papel e o processo é monitorado digitalmente. Milhares de desenhos são produzidos na construção de um avião – hoje eles só existem em meio digital. “A integração nos dá a oportunidade de entender o que está acontecendo no chão de fábrica em tempo real”, disse João Carlos Zerbini, gerente de Tecnologia de Manufatura e Automação Industrial da Embraer.
O Brasil é visto como um mercado promissor para empresas que desenvolvem soluções de Indústria 4.0 no exterior. A Trumpf, filial brasileira da multinacional alemã que vende máquinas de usinagem a laser, vai inaugurar neste mês uma planta de demonstração de suas soluções de Indústria 4.0 em Chicago, Estados Unidos, e está convidando um grupo de empresários brasileiros para conhecê-la. “Como as filiais brasileiras de multinacionais começam a entrar na manufatura avançada, isso logo terá impacto nas cadeias de seus fornecedores, que serão obrigados a se adaptar”, explica João Visetti, diretor-presidente da Trumpf no Brasil. A empresa investiu no aperfeiçoamento de suas máquinas, tornando-as conectáveis. “Nossa aposta de P&D foi desenvolver softwares internamente e por meio da aquisição de startups especializadas em soluções para indústria 4.0”, explica.
Empresas nacionais também se movimentam. Um exemplo é a Romi, que lançou em abril uma máquina que combina usinagem com manufatura aditiva – ela é capaz de moldar peças metálicas tirando ou acrescentando camadas, num processo semelhante à impressão 3D, mas feito com pó metálico, que foi desenvolvido por uma empresa da Inglaterra. “Já existem empresas no exterior que usam soluções desse tipo, adaptando a manufatura aditiva a máquinas de usinagem já existentes”, diz Douglas Alcântara, gerente de engenharia de produtos da Romi. “Nossa solução é mais harmônica. A máquina vem com a tecnologia embarcada, é capaz de registrar e de receber dados sobre os processos e enviá-los instantaneamente para os clientes.”
Para Delgado, da Abimaq, o país tem condições de se tornar um provedor de tecnologias em manufatura avançada. “Temos competência para desenvolver sensores e softwares para a Indústria 4.0”, explica. Falta, segundo Delgado, articulação entre os grupos e apoio a eles. “Conheço vários jovens pesquisadores que fizeram impressoras 3D no Brasil, mas não há impressoras brasileiras no mercado. O problema talvez não seja tecnológico, mas de criar demanda e gerar spin-offs das universidades.”
O centro de pesquisa em engenharia proposto pela FAPESP pode ajudar a aglutinar esforços, comenta o diretor da Abimaq. “Precisamos criar centros de competência para desenvolver soluções nacionais. Eles podem identificar gargalos e ajudar as empresas a enfrentá-los”, afirma. Com preocupação análoga, a Abimaq criou um núcleo de startups que estão trabalhando com tecnologias em manufatura avançada. “A ideia é ver o que elas têm de competência para fornecer”, explica Delgado, que destaca a dificuldade das indústrias de fazer P&D em manufatura avançada. “Há muitas tecnologias envolvidas e não é possível manter uma estrutura em P&D dedicada a todas elas. Nossa sugestão para as empresas é trabalhar com grupos multidisciplinares e com apoio externo de centros de competência.”
Manutenção preditiva
Uma das empresas do grupo da Abimaq é a Birmind Automação, de Sorocaba, que mira grandes clientes interessados em serviços de otimização industrial. A empresa dispõe de um software que, abastecido com dados coletados em equipamentos fabris, consegue predizer qual é o momento de fazer manutenção e seus custos. “O programa transforma as informações em valores financeiros. Pode mostrar, por exemplo, quanto um processo está desperdiçando de matéria-prima por conta da falta de performance de uma válvula e, com isso, que o retorno financeiro obtido pela redução de consumo em comparação com o custo de troca dessa parte do equipamento torna a manutenção vantajosa. Temos cases em grandes indústrias com economias significativas de soda cáustica, energia elétrica e diversos outros tipos de insumo”, explica Diego Mariano de Oliveira, um dos sócios da Birmind, que tem clientes em segmentos como a indústria química e a siderurgia. “Nossa solução só funciona se o cliente já tiver um nível de automação que caracterizou a Indústria 3.0. Se não for esse o caso, é preciso adaptar as máquinas.”
Já a Automatsmart Tech, criada há um ano e instalada no Parque Tecnológico de Sorocaba, criou uma plataforma de gestão de dados de manutenção industrial, baseada em algoritmos de análise, armazenamento de dados em nuvem e uso de dispositivos móveis. Informações coletadas no chão de fábrica são transferidas para bancos de dados e analisadas por algoritmos de inteligência artificial, que fazem quantificações e revelam tendências. “As decisões sugeridas precisam ser refinadas e validadas por um gestor, que recebe as informações num tablet”, frisa o engenheiro Elias Aoad Neto, gerente de Projetos e sócio da empresa. A solução está sendo testada na empresa Johnson Controls e os empreendedores já a estão oferecendo a grandes companhias. A empresa está de mudança. Foi convidada a se integrar ao Up Lab, aceleradora de empresas no Senai de São Caetano do Sul, que criou uma célula de desenvolvimento de tecnologias em manufatura avançada. “Vamos acelerar o crescimento da empresa num polo especializado em Indústria 4.0”, diz.
Para Rafael Moreira, do MDIC, não será simples gerar políticas para a manufatura avançada que consigam articular as ações de agentes públicos e privados. “Precisaremos de instrumentos inovadores”, diz. “Observamos que alguns países, mesmo depois de lançarem suas iniciativas para a indústria 4.0, levaram um ou dois anos para executar medidas reais em cooperação com o setor privado. Houve dificuldades de articulação, de desenhar projetos viáveis e de conciliar medidas de estímulo à competitividade com medidas para desenvolvimento industrial”, completa.
Inspeção inteligente de peças
A Autaza, startup instalada numa incubadora de empresas do Parque Tecnológico São José dos Campos, desenvolveu sistemas de inspeção industrial por meio de visão computacional que estão sendo utilizados por montadoras de automóvel. Através da solução criada pela empresa, câmeras fotografam peças numa linha de produção e utilizam recursos de inteligência artificial para avaliar a sua qualidade. “Desenvolvemos um software que analisa a imagem de cada peça produzida e informa por meio de dados objetivos se ela está dentro dos parâmetros de controle de qualidade da empresa”, conta Renan Padovani, um dos sócios da Autaza. Segundo ele, a tecnologia previne desperdício no descarte de peças defeituosas.
“A visão computacional baseia a inspeção em critérios matemáticos, e não no olho humano.” A empresa teve como origem um projeto feito em parceria entre a General Motors no Brasil e o Centro de Competência em Manufatura, laboratório do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), em São José dos Campos. Segundo Padovani, o modelo de startup é adequado para impulsionar a manufatura avançada no Brasil.“A maioria das montadoras não tem um sistema automático de controle de qualidade e precisa de soluções customizadas. Uma startup como a nossa consegue ver suas necessidades e desenvolver o melhor sistema de inspeção.” A inovação da Autaza está sendo usada, além da GM, por outras duas empresas no Brasil e no exterior.
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