Uma longa mobilização da comunidade científica, de empresários e de gestores públicos, que buscava remover entraves burocráticos das atividades de pesquisa, reforçar os elos entre o setor privado e as universidades e incentivar a inovação em empresas, teve um desfecho positivo no dia 8 de fevereiro quando o governo federal publicou um decreto regulamentando dispositivos da legislação relacionada a ciência, tecnologia e inovação. A regulamentação é extensa e tem o objetivo de tornar efetiva a Lei nº 13.243 de janeiro de 2016, que havia modificado tópicos de um conjunto de normas legais (ver Pesquisa FAPESP nº 240). “Enquanto a lei de 2016 dispõe de 18 artigos, o decreto que a regulamenta tem 86, com o objetivo de clarear e oferecer segurança jurídica aos atores do sistema”, afirma Alvaro Prata, secretário de Desenvolvimento Tecnológico e Inovação do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC). “Esse novo marco legal é o resultado de uma criação coletiva.”
O decreto busca aperfeiçoar o arcabouço jurídico sobre inovação criado no país a partir de 2004, que autorizou o investimento de recursos públicos em empresas e permitiu que pesquisadores de instituições públicas desempenhassem atividades no setor privado, entre outras mudanças. Se a lei de 14 anos atrás procurou favorecer parcerias público-privadas e a inovação nas empresas, sua atualização tem objetivos mais diversificados. Alguns dispositivos incentivam ideias já estabelecidas de um modo ainda mais explícito. Um exemplo: a regulamentação autorizou instituições públicas a ceder às privadas o uso de imóveis para a instalação de “ambientes promotores da inovação”, facilitando o funcionamento de parques tecnológicos e aceleradoras de empresas que vêm sendo criados em diversas cidades e instituições.
Uma novidade é a ampliação de mecanismos de subvenção a micro, pequenas e médias empresas, por meio, por exemplo, do “bônus tecnológico”, um tipo de suporte financeiro concedido por instituições públicas a empresas destinado ao pagamento do uso ou do compartilhamento de laboratórios de pesquisa ou à contratação de serviços tecnológicos especializados. “Uma startup não tem a infraestrutura de pesquisa de uma grande empresa inovadora ou de uma instituição científica e tecnológica. O bônus é um tipo de subvenção que busca suprir essa lacuna, ajudando empresas nascentes a produzir pesquisa e desenvolvimento”, diz a advogada Cristina Assimakopoulos, líder de um grupo de trabalho criado pela Associação Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento das Empresas Inovadoras (Anpei) para discutir a mudança na legislação.
A regulamentação permite que a subvenção econômica seja utilizada pelas empresas tanto para o financiamento de pesquisa como para despesas de capital. “Os atores do ecossistema de inovação terão mais segurança jurídica porque a regulamentação definiu orientações mínimas para a cooperação entre instituições científicas e o setor produtivo”, explica a economista Gianna Sagazio, superintendente nacional e diretora de Inovação do Instituto Euvaldo Lodi (IEL) da Confederação Nacional da Indústria (CNI). “O decreto trouxe conceitos que estimulam assinatura de convênios e acordos e impulsiona a aplicação de instrumentos de fomento amplamente utilizados em países avançados, como as encomendas tecnológicas, que passam a contar com diretrizes mais claras.”
As novas normas estabelecem regras de governança para a transferência de tecnologia gerada em instituições científicas e permite que as universidades e entidades públicas participem minoritariamente do capital de empresas. Newton Frateschi, diretor-executivo da Agência de Inovação Inova Unicamp, enxerga vários benefícios na regulamentação. “A forma como o decreto define as atribuições dos Núcleos de Inovação Tecnológica nas instituições científicas, os chamados NITs, será muito importante para organizar a interlocução entre o setor privado e a academia”, diz. “Existem situações em que o pesquisador por desconhecimento tenta negociar o convênio de pesquisa ou o próprio licenciamento diretamente com a empresa e só procura o NIT no final do processo, sem se dar conta de que existem mecanismos necessários para proteger a propriedade intelectual. Nesses casos, o trabalho do NIT acaba sendo visto como um empecilho, quando, na verdade, ele é uma unidade cuja missão está em facilitar e dar celeridade a esse tipo de interação”, afirma. “As universidades terão de reestruturar os NITs para dar conta de seu papel descrito no decreto. Sabemos da existência de núcleos que funcionam com equipes cedidas, bolsistas e estagiários. A estruturação e profissionalização dessas unidades torna-se agora ainda mais imprescindível.”
Frateschi vê com interesse a possibilidade de a universidade ter alguma participação acionária em empresas. “Pode surgir uma nova fonte de recursos para a inovação nas universidades por meio da participação em empresas formadas em incubadoras ou parques tecnológicos. O conhecimento gerado na Unicamp já resultou na criação de mais de 500 empresas que, juntas, faturam R$ 3 bilhões. Imagine se a universidade tivesse participação em algumas delas.” O diretor da Inova também elogia a possibilidade de pesquisadores de instituições federais licenciarem-se por um período para se dedicar a atividades empreendedoras: “Muitos professores vão se sentir seguros para se afastar e abrir empresas”.
A legislação aprovada em 2016 contemplou uma série de reivindicações da comunidade científica. “São ideias que começaram a ser debatidas e amadurecidas a partir de 2008 para remover entraves burocráticos da atividade de pesquisa e incorporaram contribuições da indústria, das fundações estaduais de amparo à pesquisa e dos secretários estaduais de ciência e tecnologia, entre outros”, diz o físico Ildeu de Castro Moreira, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). A lei de licitações, de 1993, foi alterada. O decreto de regulamentação tem uma seção sobre procedimentos para a dispensa de licitação de obras e serviços de engenharia enquadrados como produtos de pesquisa e desenvolvimento. A regulamentação também deu flexibilidade para remanejamento de recursos de projetos de pesquisa, um antigo pleito dos cientistas. “É comum o pesquisador fazer um planejamento e o andamento da pesquisa revelar a necessidade de comprar um equipamento ou contratar um serviço. O decreto leva em conta essa dinâmica. Ele pode solicitar remanejamento e evitar ter as contas rejeitadas”, diz Maria Zaira Turchi, presidente do Conselho Nacional das Fundações Estaduais de Amparo à Pesquisa (Confap).
Flexibilização
O decreto esclarece que a isenção de impostos na importação de máquinas e insumos para atividades de pesquisa se estende a qualquer organização científica, tecnológica e de inovação credenciada e permite redução tributária também a bens adquiridos por empresas no exterior. A Anpei comemorou a flexibilização e o aumento da transparência nas relações entre universidades e empresas promovidos pelo decreto, mas considera que é cedo para encerrar a mobilização. Segundo Cristina Assimakopoulos, é preciso avaliar os desdobramentos em cada tópico abordado no decreto e conversar com todos os atores envolvidos para garantir que as mudanças ganhem efeito. “Agora, cada instituição científica e tecnológica vai definir internamente formas de aplicar as novas regras. Temos que garantir que haja uma interpretação padronizada sobre o uso dos instrumentos. O desafio agora envolve conscientização e diálogo”, sugere Cristina, que trabalha na Gerência Executiva de Tecnologia e Inovação da Vale. “O risco é surgirem pareceres divergentes sobre a legislação, o que pode prejudicar a segurança jurídica que o decreto busca criar.”
A associação também considera que o processo de aperfeiçoamento da legislação precisa continuar. “Alguns vetos à lei aprovada em 2016 se referem a temas de grande interesse das empresas inovadoras e precisam ser resgatados”, diz Cristina, referindo-se por exemplo à concessão de bolsas por instituições científicas e tecnológicas privadas, removida na sanção da lei.
Embora marcado por boas intenções, o processo que levou ao aperfeiçoamento da legislação gerou controvérsias. A principal delas resultou da Emenda Constitucional nº 85, aprovada em 2015, que conferiu à legislação federal a prerrogativa de dispor sobre as normas gerais do Sistema Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação, cabendo a estados e municípios legislar apenas sobre tópicos particulares. “A intenção provavelmente era ter uma legislação forte para vigorar em estados que dificilmente criariam uma por conta própria”, explica Fernando Menezes, professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e diretor administrativo da FAPESP. “Mas essa emenda é potencialmente geradora de conflitos, pois dá margem a que a União, a pretexto de elaborar normas gerais sobre a matéria, invada a competência dos Estados no campo de sua autonomia administrativa.”
A lei estadual paulista, de 2008, já previa uma série de dispositivos que vieram a ser contemplados na lei federal, como a participação do estado em empresas de inovação tecnológica e a autorização para que pesquisadores de instituições públicas atuem em empresas. Fernando Menezes participou de um grupo de trabalho que, durante seis meses, forneceu subsídios para a formulação de um decreto estadual de regulamentação, assinado pelo governador Geraldo Alckmin em setembro de 2017. O texto estadual buscou harmonizar as legislações estadual e federal, além de estabelecer normas para as instituições de pesquisa do estado.
Risco
A bioquímica Helena Nader, pesquisadora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) que esteve à frente da SBPC entre 2011 e 2017 e teve intensa participação nas negociações em torno da nova legislação federal, explica que o processo levou a um novo entendimento sobre as atividades de ciência, tecnologia e inovação. “O ponto crucial da legislação é o reconhecimento de que as atividades de pesquisa são diferentes das outras. Elas envolvem risco e, portanto, exigem uma avaliação diferente de resultados”, observa. Segundo ela, esse caráter particular da pesquisa voltada à inovação foi reconhecido pela Emenda Constitucional nº 85 e consubstanciado na lei de 2016 e no decreto de fevereiro. Para Francilene Garcia, presidente do Conselho Nacional de Secretários Estaduais para Assuntos de Ciência, Tecnologia e Inovação (Consecti) e secretária executiva de Ciência e Tecnologia do Estado da Paraíba, esse novo entendimento é fundamental para a atividade científica. “Experimentos com organismos vivos para o desenvolvimento de vacinas, por exemplo, não podem seguir as mesmas regras utilizadas para a importação de commodities”, afirma.
Há uma outra crítica relacionada ao tamanho dos decretos: o paulista tem 68 artigos e o federal 86. “Seria possível e desejável fazer textos mais enxutos, mas a opção de ser detalhista procura não deixar dúvidas aos gestores sobre o que eles podem fazer. Isso é importante em um momento em que os organismos de controle do Estado, como tribunais de contas e ministério público, ampliam justificadamente o controle sobre agentes públicos”, explica Fernando Menezes. Ele lembra, contudo, que esse tipo de detalhismo, às vezes, produz efeitos inesperados. “Quanto mais se escreve sobre um assunto, maior é o risco de haver dupla interpretação ou dúvida sobre termos utilizados.”
Uma regulamentação detalhada não garante que as intenções do legislador irão se materializar. “É preciso tempo para assimilar tudo”, avalia Alvaro Prata, do MCTIC, que articula uma série de providências para dar suporte à legislação. Estão sendo elaborados guias para esclarecer todos os segmentos envolvidos. Ele adianta que as consultorias jurídicas do MCTIC e do Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços estão trabalhando na elaboração de documento para municiar os procuradores de forma a “fazer valer o decreto em sua plenitude”. Há um guia em desenvolvimento também para setores industriais, envolvendo a CNI, a Mobilização Empresarial pela Inovação (MEI) e a Anpei. “O setor empresarial precisa perceber a dimensão dada pelo decreto”, considera Prata.
Na avaliação de Carlos Américo Pacheco, diretor-presidente do Conselho Técnico-Administrativo da FAPESP, o marco legal cria possibilidades que precisam ser postas em prática e fomentadas pelas agências. “Com o tempo vamos poder experimentar essas novas soluções, testá-las e verificar sua eficácia. E ter sempre em mente que isto é uma construção, que de tempos em tempos tem de ser revisitada. O essencial é ir em frente”, afirma. Ele observa que a criação de um ambiente institucional é um aspecto central de qualquer sistema de inovação. “O exemplo norte-americano revela isso com clareza, no incentivo às parcerias e à comercialização dos resultados da pesquisa, ou ainda na natureza privada não lucrativa de suas melhores universidades e laboratórios. A lei francesa de inovação é outro exemplo. Tudo isso inspirou inovações institucionais pelo mundo inteiro.” Secretário-executivo do então Ministério da Ciência e Tecnologia entre 1999 e 2002, Pacheco lembra que, em 2001, na Conferência Nacional de CT&I, houve uma primeira discussão sobre o ambiente institucional que contribuiu para a formulação da Lei de Inovação de 2004. “Agora damos mais um passo para modernizar nosso sistema de inovação.”
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