Em estudo publicado em janeiro na revista Scientometrics, um grupo liderado pelo economista Eduardo da Motta e Albuquerque, pesquisador do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional da Universidade Federal de Minas Gerais (Cedeplar-UFMG), mapeou o crescimento das colaborações científicas. Observou-se que o número de artigos publicados no mundo, indexados na base Web of Science, subiu de 1,2 milhão em 2000 para 2 milhões em 2015 e ao mesmo tempo a proporção de papers escritos por coautores de países diferentes mais que dobrou, indo de 10% do total em 2000 para 21% 15 anos mais tarde.
O interesse do grupo era mais específico do que medir o crescimento das colaborações. Albuquerque é um estudioso da formação de redes de inovação e de vínculos criados entre universidades e empresas em nível nacional (ver Pesquisa FAPESP nº 234) e seu objetivo era ampliar o escopo desse trabalho para uma escala global, analisando as implicações da formação de redes de produção de conhecimento, que reúnem grupos de pesquisa de países diferentes trabalhando em parcerias com empresas locais ou transnacionais. Para tanto, sua análise deteve-se sobre o crescimento das ligações entre pares de pesquisadores de países distintos embutidas nas assinaturas dos papers produzidos entre 2000 e 2015 – cada artigo com autores de várias nacionalidades contém múltiplas conexões desse tipo. O resultado foi impressionante: essas ligações bilaterais cresceram 13 vezes de tamanho, aumentando de 545 mil em 2000 para mais de 7 milhões em 2015. Na entrevista a seguir, Albuquerque fala dos benefícios e dos desafios gerados pelo avanço dessas interações e expõe uma das conclusões do artigo, segundo a qual o aumento das colaborações está formando os rudimentos de um sistema de inovação de caráter internacional, que opera em paralelo aos sistemas nacionais e cria tensões com eles.
Qual a importância de estudar o fluxo de conhecimento gerado por colaborações internacionais?
Trabalhamos há algum tempo com interações entre universidades e empresas em escala nacional, mas essa linha enxergava apenas parte do fenômeno. Não se detinha sobre a influência de um conjunto de fluxos internacionais de conhecimento envolvendo, por exemplo, multinacionais e suas subsidiárias ou multinacionais e universidades. Tínhamos interesse em compreender as peculiaridades da relação entre países centrais e da periferia em um momento em que esses fluxos se multiplicam. Fizemos um trabalho em 2014 para estudar a relação entre uma multinacional e universidades de vários países. Analisamos as patentes dessas empresas e vimos como elas mencionavam artigos produzidos por universidades de diversos países, um indicador do fluxo de conhecimento. Avançamos para analisar como as colaborações internacionais tinham impacto local. Uma empresa paulista que interage com um grupo da Universidade de São Paulo está se beneficiando das articulações internacionais que esse grupo criou, por exemplo, com parceiros no MIT [Instituto de Tecnologia de Massachusetts]. Aí chegamos no artigo de 2018. Pode-se avaliar que sistemas nacionais de inovação vêm sendo tensionados por fluxos de conhecimento transnacionais dos mais variados tipos. Estamos sugerindo que o grau desses fluxos é tão grande que estaríamos vivendo o início da emergência de um sistema internacional de inovação.
Quais as evidências da emergência desse sistema?
Um dos coautores do artigo, o economista Leandro Alves Silva, defendeu em seu doutorado, em 2014, a ideia de que sistemas nacionais estão conectados e que as conexões causam tensões. Uma evidência está num caso de estudo abordado por ele, o da IBM. Mais do que uma empresa norte-americana, ela é uma rede internacional. Tem 1.800 subsidiárias distribuídas em 62 países. É uma entidade com presença global e sua dinâmica inovativa dá conta dessa tremenda distribuição. Na prática, ela é uma máquina de beber conhecimento planetariamente. Relaciona-se com empresas, universidades e institutos de pesquisa globalmente. Olhando para essa estrutura, vê-se o elemento internacional quase como um componente microeconômico essencial. O Leandro analisou as redes formadas pela lista das 500 maiores empresas e vislumbrou um conjunto de fluxos de conhecimento enorme. Não só conhecimento codificado, mas também aquele tipo de conhecimento tácito que a empresa transfere a quem trabalha com ela. A IBM tornou-se uma máquina de aprendizado cuja dinâmica exerce influência sobre sistemas nacionais de inovação. Nosso grupo está trabalhando em um artigo sobre as 500 empresas e sua produção. Outra evidência está em um dado obtido no levantamento da produção científica. Observamos que em 2015 cerca de 418 mil artigos científicos foram produzidos em colaboração internacional – e isso equivale a toda a produção mundial do ano de 1993.
O trabalho mostra que, embora as interações internacionais se multipliquem, elas respeitam uma hierarquia. Que hierarquia é essa?
Poucas universidades, em geral as mais tradicionais, se conectam a um conjunto enorme de outras instituições. Pesquisadores da Universidade de Oxford, no Reino Unido, tiveram mais de 50 mil ligações com colegas de outros países em 2015. Os de Harvard, 47 mil. Na outra ponta, há uma quantidade enorme de instituições com poucas conexões. As que se conectam ao mundo inteiro tendem a controlar a agenda das redes. Veja o exemplo da Academia Chinesa de Ciências. Embora seja a instituição que mais produziu artigos em 2015, está em 13º lugar em número de conexões. Trata-se de um sistema robusto, estável e bem organizado, mas muito difícil de mudar.
Quais são as implicações disso?
O fato de a rede crescer e ser cada vez mais global é positivo para todos. Para os países desenvolvidos, é a chance de produzir conhecimento que não poderia ser gerado sem pesquisadores de vários lugares. Para os países em desenvolvimento, é a possibilidade de participar de redes globais e ampliar a transferência de conhecimento. O fato de a rede ser muito hierarquizada impõe o risco de as instituições com poucas conexões ficarem a reboque de interesses dos países centrais. Mas isso é mais um desafio do que um problema. Estar na rede faz com que tenhamos mais possibilidade de influir na agenda do que se não estivermos.
Que tipo de problema está sendo enfrentado por essas redes de conhecimento?
Existem áreas naturalmente internacionalizadas, como a astronomia. Um observatório instalado em um país envolve gente de vários lugares. Também há assuntos complexos que exigem equipes internacionais, como a física de partículas e a Organização Europeia para Pesquisa Nuclear, o Cern, na Suíça. A ciência tem uma vocação internacional natural. A novidade talvez seja o aumento da velocidade dos fluxos de conhecimento. O primeiro benefício é que há questões que só são resolvidas em equipes internacionais. É difícil tratar de questões climáticas a partir de um país só. O mesmo vale para o tratamento das doenças negligenciadas. Do ponto de vista dos países avançados, as redes permitem lidar com questões mais vastas do que as encontradas dentro de seus territórios. Em países intermediários como o Brasil, o efeito talvez até seja mais rico, porque é possível criar conexões produtivas e absorver conhecimento. Não chegamos a avaliar a qualidade da produção em coautoria internacional, mas isso deverá ser mensurado em outra pesquisa, por meio do estudo de citações. Um estudo de caso interessante seria analisar a pesquisa sobre o vírus zika e como o fato de estarmos conectados ajudou a caracterizar rapidamente a doença. Também crescem as possibilidades de interação entre universidades e empresas. Imagine um físico da UFMG que produziu um paper sobre nanotecnologia com alguém do MIT. Quando uma empresa tiver uma interação com esse pesquisador, estará entrando em uma rede internacional.
No setor industrial brasileiro, há segmentos que investem bastante em pesquisa e desenvolvimento (P&D) e outros que produzem muito pouco, como o farmacêutico. Essa heterogeneidade não atrapalha o fluxo de conhecimento?
O investimento das multinacionais farmacêuticas concentra-se nos países centrais, mas acredito que a intensidade de P&D do setor no país vai crescer assim que a indústria de origem nacional se desenvolver mais. As redes podem auxiliar. Quando estávamos fazendo um teste de uma pesquisa sobre a interação entre universidade e empresa, selecionamos um bioquímico da UFMG para entrevistar. Ele interagia com uma multinacional, a Merck. Perguntei: “A Merck do Brasil?” Ele disse: “Não, a Merck dos Estados Unidos”. Ele foi a um congresso e apresentou um trabalho. Os representantes da empresa estavam lá e entraram em contato. Foi uma cooperação direta: um pesquisador no Brasil conectado a uma empresa no exterior. Começa a haver um quadro internacional em que as chances de interação se multiplicam.
Como o Brasil se situa nesses fluxos?
Duas coisas puderam ser vistas. A primeira é que o Brasil, em 2015, integra um grupo de nações que tem em torno de 20% da produção científica em colaboração internacional, o que é razoável. Em 2000, essa porcentagem era de 14,7%. Esses índices dizem respeito a artigos em colaboração internacional que tem um brasileiro como primeiro autor. Outro dado é que a nossa produção nos conecta a 171 países. Estamos em 15º lugar no ranking de vínculos. Não temos um grau de internacionalização como o de países como Suécia, Holanda, mas estar ligado a 171 países é um ativo importantíssimo. O crescimento da produção científica brasileira, apesar de consistente, só tem sido suficiente para manter a distância da fronteira internacional. Temos que pensar em mecanismos de inserção mais ativa do país na ordem internacional e a ciência e a tecnologia podem liderar essa mudança. Seria construir um sistema de inovação para a fase de crescente internacionalização, capaz também de fortalecer o sistema internacional.
Artigo científico
RIBEIRO, L. C. et al. Growth patterns of the network of international collaboration in science. Scientometrics. v. 114, p. 159-79. jan. 2018.