léo ramos chavesEm um momento no qual a temática da pobreza mobilizava os pesquisadores de sua área, a socióloga política Elisa Pereira Reis desenvolveu estudos inovadores sobre desigualdade social. A partir de análises comparativas da situação de diferentes nações, seus trabalhos têm influenciado o modo de pensar o desequilíbrio na distribuição de recursos, não apenas no Brasil como também no mundo. Ao se debruçar sobre as perspectivas que as elites têm do problema, Elisa propiciou o desenvolvimento de uma nova compreensão acerca das disparidades sociais. Em sua concepção, constituem a elite pessoas que ocupam altos postos em determinadas instituições, controlando recursos materiais e simbólicos. Ou seja, não apenas dinheiro mas também a capacidade de influenciar decisões alicerça o poder das elites.
Descendente de latifundiários, a mineira de Araxá está casada há mais de quatro décadas com o economista Eustáquio José Reis, pesquisador da Diretoria de Estudos e Políticas Macroeconômicas do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Aos 20 anos, graduou-se em sociologia e política pela Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Minas Gerais (FCE-UFMG), em Belo Horizonte, e em 1979 defendeu seu doutorado no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT).
Professora titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Elisa atualmente concilia seu tempo entre dois projetos de pesquisa de amplitude global, atividades de política científica e magistério. “Um momento em que me sinto constantemente desafiada é quando dou aulas. Minha primeira experiência docente aconteceu no último ano da graduação, quando lecionei introdução à sociologia para uma turma de ciências sociais que passou no vestibular de 1967 da Faculdade de Filosofia da UFMG”, conta. “Estou me aposentando da UFRJ, mas quero seguir dando aulas, inclusive para a graduação.” Na entrevista abaixo, a pesquisadora falou sobre seus estudos a respeito da desigualdade e dos projetos atuais.
Idade |
72 anos |
Especialidade |
Sociologia política |
Formação |
Graduação em sociologia e política na Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG (1967), doutorado em ciência política pelo MIT (1979) |
Instituição |
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) |
Produção científica |
Cerca de 50 artigos científicos e 11 livros escritos ou organizados |
Sua trajetória na academia pode ser considerada híbrida, pois suas reflexões passam tanto pela política quanto pela sociologia. De onde vem seu interesse pelas ciências sociais?
Saí da casa dos meus pais aos 14 anos para fazer o curso científico [atual ensino médio] em Uberaba e me preparar para estudar engenharia. Nos primeiros meses do curso, no entanto, fui arrebatada pela questão da justiça social e me envolvi com política estudantil secundarista. Isso me estimulou a optar pelas ciências sociais. Como muitos outros da minha geração, fui motivada pela ideia de mudar o mundo. Fiz a graduação na FCE da UFMG, em Belo Horizonte. Na época, pensava que ciência política, economia e sociologia eram o mesmo campo de estudos. Hoje me defino como pertencendo à área da sociologia política, mas jamais vou perder a marca da ciência política na minha formação.
Como chegou ao MIT?
Prestei vestibular em 1964. Sempre gostei de estudar as pessoas que controlam recursos materiais e suas relações com o Estado. Minha dissertação de mestrado procurou mostrar como, em 1930, o Estado subordinou a elite cafeicultora para poder patrocinar a elite industrial. Tive uma formação próxima da economia política, pois fui da última turma do curso de graduação em sociologia e política que existiu na FCE. Tive aulas de direito internacional, constitucional, economia e história do pensamento econômico, mas não disciplinas sobre pensamento social, por exemplo. A formação era mais hard, se comparada aos cursos de ciências sociais. Os cursos de economia eram muito mais politizados do que hoje. O ambiente da faculdade, naquela época, pode ser considerado lendário, entre outros motivos, pela introdução pioneira do sistema de bolsas por concurso para alunos da graduação, pelos investimentos em livros e periódicos e pelo funcionamento intenso das salas de leitura e da biblioteca. Eu vivia sem família na cidade e considerava a faculdade minha casa. Me formei em 1967, aos 20 anos. No ano seguinte, durante minha licenciatura em sociologia do desenvolvimento pelo Instituto Latinoamericano de Doctrina y Estudios Sociales [Ilades], no Chile, convivi com gente de todo o mundo e com muitos exilados das ditaduras latino-americanas. A ideia de produzir estudos comparados, que tanto me agrada, partiu dessa experiência chilena. Quando cheguei ao MIT, em 1972, para cursar o doutorado, a instituição contava com poucas mulheres e estrangeiros no curso de ciência política. Logo comecei a ter aulas com professores que eram minhas referências bibliográficas como Samuel Huntington, Hayward Alker, Daniel Lerner e Barrington Moore. Ser aluna de bibliografia é bom porque você desmitifica a pessoa e passa a acreditar que é possível chegar longe.
O que estudou no doutorado?
No doutorado me empenhei em responder por que o Brasil tinha tanta dificuldade em consolidar a democracia. Para isso, elaborei um estudo macro-histórico que contemplou o período que vai da Abolição da escravidão até a Revolução de 1930. Nele, busquei mostrar com dados empíricos como se criaram as condições para que Getúlio Vargas [1882-1954] levasse adiante sua revolução autoritária. Na tese, defendo que a Revolução de 1930 não foi burguesa, mas gestada pelas elites agrárias durante a República Velha, criando as condições para que Vargas instaurasse uma ditadura modernizante. Nesse momento do meu doutorado, muitos pesquisadores das ciências sociais estavam preocupados em explicar por que o Brasil era autoritário. Muitos de nós, como Simon Schwartzman, Otávio Velho e Luiz Werneck Viana, desenvolveram teses macro-históricas para entender a ditadura. Essa era a questão da época. Nunca publiquei minha tese, mas escrevi diversos artigos que derivaram dela. Um dos mais lidos, “O Estado nacional como ideologia: O caso brasileiro” (Estudos Históricos, 1988), considero um texto precoce. Nele, trabalhei com uma ideia inédita de nação, que já havia sido abordada por Benedict Anderson [1936-2015] no seu livro de 1985 Nação e consciência nacional, que eu desconhecia.
Quando começou a se interessar pelos estudos sobre desigualdade?
Continuei trabalhando sobre a relação entre governo e mercado, disposta a entender como interesses econômicos fizeram parte da construção do Estado no Brasil. Aos poucos, meu foco foi mudando por causa da inquietação em estudar a desigualdade. Sempre tive uma preocupação macro-histórica muito teórica, diferentemente da tradição do Rio de Janeiro e de São Paulo. Passei a integrar o comitê de teoria sociológica da Associação Internacional de Sociologia. Nesse momento, fiz a conversão da ciência política para a sociologia, e continuei centrada nas relações entre Estado, sociedade e mercado. Em uma outra pesquisa, criei um banco de dados para mapear as relações de organizações não governamentais [ONGs] com o governo. Apliquei questionários em 300 ONGs envolvidas com política social em cinco estados brasileiros e também em um grupo de beneficiários de programas dessas organizações. Meu objetivo foi avaliar como dirigentes dessas instituições se relacionavam com o Estado e o mercado e como os beneficiários enxergavam essas organizações.
O que pesquisa hoje?
Estou trabalhando em duas frentes. Uma pesquisa é o meu projeto pessoal de investigar a percepção das elites sobre pobreza e desigualdade. A primeira etapa dessa iniciativa foi desenvolvida entre 1993 e 1995 por um grupo do antigo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro [Iuperj], hoje Instituto de Estudos Sociais e Políticos (Iesp/Uerj), como parte do projeto “Elites estratégicas e consolidação democrática”, que se debruçou sobre o processo de redemocratização no Brasil. Entrei nessa equipe para fazer perguntas às elites sobre suas percepções da desigualdade. Realizamos um questionário com políticos, burocratas, líderes empresariais e sindicais de todo o país. Depois, dei continuidade a essa pesquisa em um projeto desenvolvido em parceria com colegas europeus, inclusive o sociólogo holandês Abram de Swaan, professor emérito da Universidade de Amsterdã. Montamos um grupo para investigar as percepções dessas pessoas sobre a pobreza no Brasil, na África do Sul, nas Filipinas, em Bangladesh e no Haiti. Elaboramos um questionário para entrevistar 80 representantes das elites em cada um desses países. Os resultados foram publicados em 2005 no livro Elite perceptions of poverty and inequality, que editei com Mick Moore, professor do Institute of Development Studies da Universidade de Sussex, no Reino Unido. A obra foi bem recebida pelos especialistas, mas ganhou visibilidade apenas recentemente. Naquela época, a desigualdade não era a principal preocupação dos meus parceiros, mais centrados em analisar questões relativas à pobreza. Tive dificuldades em convencê-los de que era preciso incluir a palavra “desigualdade” no título da obra. Hoje, o que mais chama a atenção no livro é justamente o fato de ele trabalhar com a ideia da desigualdade. Acabei de voltar de uma banca de doutorado na London School of Economics and Political Science em que a aluna analisou as percepções que 1% da população mais rica de Londres tem da desigualdade e da pobreza. Ela elaborou sua tese apoiada nesse livro que Mick Moore e eu editamos. Entre 2013 e 2014, desenvolvi o mesmo estudo, com outra equipe de pesquisadores, para avaliar as percepções das elites no Brasil, na África do Sul e no Uruguai. Foram aplicados questionários em 180 pessoas em cada um desses países. A ideia era avaliar se com o passar do tempo houve mudanças e quais foram. Ainda não publicamos os resultados do projeto. Estou atrasada com ele porque me envolvi em outra iniciativa grande, que mais me mobiliza atualmente.
Como surgiu o interesse pelas elites como objeto de pesquisa?
O conceito de elite comporta muitas definições. Em vez de adotar, por exemplo, um conceito formado por renda ou riqueza, ou notoriedade e celebridade, adoto um critério posicional, ou seja, posição institucional. Com isso, suponho que aqueles que estão no topo de determinadas instituições controlam recursos materiais e simbólicos. Por volta dos anos 1990, depois da ditadura, o cenário político brasileiro estava otimista. Havia, porém, a percepção de que a desigualdade era generalizada e de que nada se fazia para mudar o panorama. Comecei a me preocupar sobre como é possível conviver com essa situação. Como organizamos nosso pensamento em uma sociedade com tanta diferença em termos de perspectiva de vida? Nessa época, já tinham sido feitos diversos estudos sobre pobreza e estratégias de sobrevivência em condições precárias. Mas eu não queria abordar o assunto a partir desse ponto de vista. Queria entender como as pessoas que não são pobres convivem e justificam a existência da pobreza.
E conseguiu?
A maior parte das pessoas que estuda pobreza e desigualdade defende que para reduzir disparidades na sociedade é preciso contar com a boa vontade das elites, apostando na filantropia para atingir esse objetivo. Concordo que a filantropia pode ser um caminho. Porém, no projeto, quis identificar os motivos que poderiam despertar o interesse das elites em investir na redução das desigualdades. Na primeira etapa da pesquisa, cujos resultados foram publicados em 2005, identificamos, em linhas gerais, que as elites do Brasil, da África do Sul, das Filipinas, de Bangladesh e do Haiti entendiam a pobreza e a desigualdade como problemas que as afetavam. Segundo os questionários que aplicamos, preferiam proteger suas propriedades individualmente, investindo em segurança, muros, alarmes, mas sem se aliar ao Estado. No esforço de entender como a elite brasileira se mobiliza para fazer algo pelos mais necessitados, baseei minha pesquisa no modelo de Swaan. Ele defende que o estado de bem-estar foi construído na Europa porque as elites pensavam que deveriam envolver o governo na proteção de seus interesses. Para Swaan, as elites agem reativamente e apoiaram a criação desse Estado de bem-estar social porque se sentiam ameaçadas. Durante a pesquisa, constatei que essa motivação pode estar fundada no medo da violência ou na ameaça aos bens materiais. Isso me permitiu afirmar que o estímulo para reduzir desigualdades pode ser tanto filantrópico como defensivo. Na busca por garantir uma posição na esfera política, intelectual, empresarial ou na burocracia, a elite precisa considerar que a desigualdade e a pobreza também trazem riscos a ela.
Qual foi a constatação em relação ao Brasil?
Na etapa da pesquisa desenvolvida em 2013 e 2014, observei uma postura diferente no Brasil. O país vivenciava um momento de prosperidade econômica e social e as elites perceberam que, se houvesse redistribuição de renda, elas também se beneficiariam, pois o mercado de consumo se tornaria mais dinâmico e a mão de obra mais qualificada. Com isso, começaram a apostar no progresso social como algo que também gerava benefícios para elas próprias. Comparando os dados brasileiros com os da África do Sul, notamos diferenças significativas. No estudo original, as elites dos dois países pensavam de maneira semelhante. Mais tarde, no Brasil, as pessoas que ocupavam essas posições ainda consideravam o crescimento econômico como o mais importante à nação, mas reconheciam que se houvesse progresso social para os mais pobres a possibilidade de avanços econômicos, para todos os grupos, aumentava. Aqui, as elites se posicionaram a favor de medidas econômicas progressistas como o programa Bolsa Família. Na África do Sul, seguiam defendendo que primeiro era preciso a economia crescer para depois redistribuir a renda.
Do que se trata o outro projeto com o qual está envolvida?
Com outros pesquisadores, estou coordenando o desenvolvimento de um painel mundial para avaliar o progresso social em países distintos, sobretudo nos últimos 50 ou 60 anos. Também para mapear os problemas que nos afetam no presente e as graves ameaças à continuidade do progresso. A preservação do meio ambiente, a questão das armas químicas e biológicas, o imperativo do crescimento sustentável são alguns dos enormes desafios com que nos confrontamos. Faço parte do comitê científico e coordeno um dos capítulos, junto com o historiador holandês Marcel van der Linden. O painel envolve cerca de 300 pesquisadores e está sendo elaborado sem ajuda financeira de governos porque quisemos manter autonomia em relação a possíveis pressões políticas. Três livros com os resultados desse projeto serão publicados em julho, pela Cambridge University Press. Além disso, seis de nós que integramos a coordenação do projeto escrevemos uma pequena obra, apresentando os resultados do painel para o público não acadêmico e que também será publicada pela Cambridge University Press ainda este ano. A pesquisa sobre as elites e o painel sobre progresso social são as duas atividades intelectuais que mais me ocupam hoje.
O painel identificou algum progresso social?
Claro, não há como negar que a humanidade experimentou imensos progressos materiais, entre eles melhorias no campo da saúde e na expectativa de vida. Entretanto, esses ganhos não são igualmente distribuídos e condições miseráveis são a realidade de milhões de pessoas. É preciso levar em conta também questões que dizem respeito à igualdade e ao reconhecimento das diferenças. Não há dúvida, por exemplo, que em muitos contextos a dominação patriarcal declinou significativamente, mas muito resta a ser feito. Milhares de mulheres no mundo ainda precisam lutar pelo mero direito de frequentar uma escola, tal como mostram os exemplos do Paquistão e do Afeganistão. A liberdade religiosa é brutalmente negada para muitas minorias como a dos cristãos na Nigéria. Homossexuais são punidos com prisão e, segundo relatórios recentes, até mesmo com pena capital em países como o Sudão, o Irã, a Arábia Saudita e o Iêmen. Além disso, recentemente, assistimos à ascensão de tendências autoritárias que ameaçam conquistas democráticas que estávamos acostumados a pensar como duradouras e em contínua expansão. A crise da democracia que vem se configurando indica que precisamos urgentemente encontrar novos formatos institucionais para assegurar a representação e a participação política. A onda populista que cresce no mundo se alimenta da insatisfação de parcelas significativas da população com o establishment político, que ignora seus anseios. Nesse contexto muitos se deixam seduzir pelas falsas promessas salvacionistas de lideranças oportunistas.
Como está o Brasil nesse cenário?
No caso da sociedade brasileira, é notável o divórcio entre a política oficial e as demandas da cidadania. O clima de frustração se propaga, crescem ressentimentos e intolerâncias inviabilizando o diálogo e contribuindo para o retrocesso de diversas conquistas sociais. A situação no Brasil pode ser vista quase como uma parábola do que acontece no mundo. Parece que estamos com dificuldade de entender algo muito simples: se os direitos de que desfrutam alguns não se generalizam para todos, estamos falando de privilégios e não de direitos. A pauta democrático-liberal por definição deve ser universal. A resistência a incluir novos setores da sociedade fomenta não apenas a insatisfação dos excluídos, mas também a defesa irracional do status quo e muitas vezes do próprio retrocesso. A consequência para todos é a perda da convivência democrática. A magnitude das desigualdades, por um lado, e a negação do respeito a tantos, por outro, têm levado a uma grave crise da sociabilidade entre nós. Todos perdemos com o encolhimento da solidariedade social. Mas não se deduza da crise do presente que estamos condenados à decadência e à barbárie. O que motiva a iniciativa do painel é justamente a convicção de que, como atores dotados de racionalidade e volição, temos o desafio moral de pensar alternativas para assegurar que a ciência, a tecnologia e a inovação sejam parceiras efetivas no avanço das conquistas sociais.
A senhora também tem estado bastante envolvida em atividades de política científica. Quais são elas?
Desde 2013, sou vice-presidente do International Social Science Council (ISSC). Existiam dois conselhos até recentemente: o ISSC para as ciências sociais – e o International Council of Sciences (ICSU), que envolvia as chamadas ciências duras. Essas duas organizações estão se unindo para formar um conselho único, o International Science Council (ISC). Em junho teremos a primeira assembleia da nova organização, que inclui todas as ciências. A ideia de unificar as organizações ocorreu porque existe uma percepção crescente de que temos de pensar os problemas sociais conjuntamente e não de forma separada, por disciplinas. Discutimos essa fusão durante dois anos. No final de 2017, concluímos a discussão para unificar os dois conselhos em uma nova organização. Esse foi um assunto que me ocupou muito nos últimos anos.
Com uma trajetória de pesquisas tão longa e intensa, o que ainda falta fazer?
Coordeno o Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre a Desigualdade, o Nied, que existe há 20 anos. Realizamos uma série de pesquisas e incomodava-me o fato de jamais ter estudado a desigualdade de cor no Brasil. Então, em 2004, a socióloga Michèle Lamont, professora em Harvard, me convidou para participar de um projeto comparativo nessa área. A ideia era entender como negros nos Estados Unidos, no Brasil e minorias em Israel lidam com a desigualdade, os preconceitos e os estigmas. No Brasil, as pesquisas sobre esse assunto costumam se concentrar no estudo de casos individuais e em histórias de vida. Quando recebi o convite, fiquei insegura, pois não sou especialista em raça. Michèle propôs que eu trabalhasse com Graziella Moraes Silva, atualmente professora no Graduate Institute of International and Development Studies em Genebra, Suíça, que desenvolveu uma tese em Harvard comparando profissionais liberais negros no Brasil e na África do Sul. Levamos 10 anos para concluir esse estudo e publicamos um livro no final de 2016 apresentando os resultados, intitulado: Getting respect: Dealing with stigmatization and discrimination in the United States, Brazil and Israel (Princeton University Press, 2016). Quero publicar esse livro no Brasil, mas por enquanto é só um projeto.
No artigo “O Estado nacional como ideologia: O caso brasileiro”, a senhora chama a atenção para o fato de o autoritarismo estar na gênese do Estado brasileiro. Mesmo assim, é possível construir um novo projeto de nação?
Esse é um assunto que me mobiliza muito. Tenho um pé na sociologia macro-histórica, mas não considero a gênese de uma sociedade como um “pecado original”. Se eu pensasse que porque nascemos como Estado autoritário estamos fadados a seguir como tal, não teria feito ciências sociais. Optamos por essa carreira quando entendemos que é possível mudar algo. Às vezes, os trabalhos históricos são lidos como se fossem testemunhos de que temos um destino manifesto autoritário. E não temos. Escolhemos as coisas. É comum escutar que, no Brasil, há desigualdade de cor hoje porque tivemos a escravidão no passado. Concordo que a origem do problema é essa, mas a desigualdade e aspectos discriminatórios e elitistas da nossa sociedade são recriados e reativados constantemente. A situação não permanece igual espontaneamente. Precisamos saber explicar por que ela não muda.
Como a senhora enxerga a atual produção em ciências sociais no Brasil?
Quando era estudante, aprendi que devia trabalhar com distanciamento do objeto de pesquisa e que tínhamos de escolher temas com os quais não mantivéssemos relação afetiva. Mas isso foi mudando e eu me rendi. Escolher um tema porque ele nos sensibiliza não é um problema. Também é preciso reconhecer que todos queremos ser originais na escolha de nossos objetos, mas penso que essa tendência às vezes é extremada e contribui para gerar uma fragmentação excessiva, que torna difícil consolidar e generalizar resultados. O trabalho em equipe é fundamental para a pesquisa acadêmica.