Dois grupos de pesquisa – um de São Paulo e outro do Rio Grande do Sul – identificaram quase 2 mil crateras no assoalho marinho de trechos da costa das regiões Sudeste e Sul, a cerca de 200 quilômetros (km) do litoral. Com até 230 metros (m) de diâmetro e 90 m de profundidade, os buracos do fundo do mar, conhecidos como pockmarks, são formados pela expulsão de gás do fundo marinho, principalmente metano (CH4), um dos causadores do efeito estufa. Estima-se que a maior parte do metano, porém, seja consumida por bactérias e outros organismos no próprio oceano, antes de chegar à atmosfera.
Ainda não há dados sobre a contribuição das crateras marinhas da costa brasileira para as emissões totais de gases de efeito estufa do país, da ordem de 2 bilhões de toneladas em 2014, o equivalente a cerca de 5% do total mundial, de acordo com o Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC). Produzido principalmente pela pecuária e tratamento de resíduos, o metano contribui com 24% das emissões líquidas (volume de gás que permanece na atmosfera depois de subtrair das emissões totais o carbono retirado por ações humanas como a restauração de florestas). O dióxido de carbono (CO2), resultante principalmente da queima de combustíveis fósseis, responde por 64% das emissões líquidas; e o óxido nitroso (N2O), proveniente da adubação do solo, por 12%. O metano dura bem menos na atmosfera que o CO2, mas sua capacidade de reter calor é 21 vezes maior; a do N2O é 310 vezes maior que a do CO2.
O metano produzido no fundo dos oceanos pela decomposição de material orgânico, principalmente nas crateras, que chega à superfície marinha deve contribuir com algo entre 1% e 5% das emissões globais desse gás para a atmosfera, de acordo com uma estimativa do Instituto Max Planck de Microbiologia Marinha e do Centro de Ciências Ambientais Marinhas (Marum) da Universidade de Bremen, ambos da Alemanha, publicada em 2013 na Nature Geoscience. “Estudos recentes sugerem que o escape de metano em profundidades maiores que 100 m dificilmente chega à superfície do mar”, diz o geólogo Anthony Rathburn, professor da Universidade do Estado da Califórnia, Estados Unidos. “O metano dissolvido é frequentemente oxidado, formando CO2, pela ação de microrganismos, na coluna d’água.” O CO2 também é consumido pelos organismos marinhos antes de chegar à atmosfera.
As crateras submarinas desse tipo podem ter valor econômico, por indicar a ocorrência de reservatórios de gás natural. Em 2011 e 2013, pesquisadores da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e da Petrobras mapearam cerca de mil crateras submarinas da costa gaúcha e as usaram para identificar reservas de hidrocarbonetos na bacia de Pelotas, área com 250 km2 no sul do Rio Grande do Sul. “Com base nos estudos iniciais, acreditamos que essa área seja uma reserva muito grande de gás natural, que poderia ser explorada no futuro”, diz o químico Luiz Frederico Rodrigues, pesquisador do Instituto do Petróleo e dos Recursos Naturais da PUC-RS. Nos sedimentos havia sólidos cristalinos, os hidratos de carbono, formados por água e gases, que preservam grande quantidade de metano, como detalhado em um artigo de setembro de 2017 na Revista Brasileira de Geofísica.
Em 2016, uma equipe do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (IO-USP) identificou 984 crateras em uma área de 130 km de extensão por 30 km de largura, desde o sul do litoral de São Paulo até o norte do Rio Grande do Sul. De acordo com um estudo publicado em setembro de 2018 no Journal of Geochemical Exploration, algumas crateras ainda emitem metano. “É difícil saber quais liberam o gás e quais já pararam. O único jeito de descobrir é usar um sensor de metano, que não temos ainda”, diz o geólogo Michel Mahiques, professor do IO-USP e coordenador da expedição com o navio Alpha Crucis, que levou à identificação das crateras. As formações se distribuem em profundidades do assoalho marinho que variam de 300 a 700 m. “Em dezembro de 2017, executamos novas sondagens na área e descobrimos pockmarks ainda maiores em regiões mais profundas”, comenta.
“A liberação de metano no oceano deve ter sido mais intensa no passado, principalmente na era glacial, quando o nível do mar recuou cerca de 120 m e houve uma redução da pressão da água sobre os depósitos de gás do fundo oceânico, facilitando o escape”, diz o biólogo brasileiro Rodrigo Portilho-Ramos, atualmente pesquisador no Marum, em Bremen. Em um estudo realizado na Universidade Federal Fluminense e na USP, em colaboração com Rathburn e outros especialistas da Alemanha e dos Estados Unidos, Portilho-Ramos identificou uma redução nos níveis de carbono em conchas de organismos fósseis de sedimentos coletados em uma cratera do litoral de Florianópolis, a 475 m de profundidade, em comparação com amostras colhidas em áreas vizinhas. A variação dos teores de carbono deve ser o resultado de uma intensa, mas ainda não dimensionada, liberação de metano entre 40 mil e 20 mil anos atrás, que corresponde à última era glacial, de acordo com um artigo de abril de 2018 na Scientific Reports.
As crateras do litoral paulista – e depois outras, próximas ao banco de recifes de Abrolhos, ao sul da Bahia e norte do Espírito Santo – começaram a ser identificadas de modo isolado em 2007 por pesquisadores da Fundação Universidade Federal do Rio Grande e foram inicialmente consideradas como remanescentes de cavernas. Em 2016, o grupo da USP fez um levantamento abrangente e viu que as crateras eram abundantes e poderiam liberar metano, mas ainda não se sabe quantas existem no litoral brasileiro nem quantas emitem metano. “O fundo marinho da costa brasileira é muito pouco mapeado por instituições de pesquisa, embora as empresas petrolíferas e suas prestadoras de serviço tenham muita informação, raramente liberadas para uso público porque poderiam indicar reservas de petróleo e gás natural”, diz Mahiques.
Para os seres do fundo do mar, sem oxigênio nem luz do sol, o metano é fonte de energia
A liberação de gás na costa do Sudeste é resultado principalmente da subida de colunas de sal por debaixo do assoalho marinho, de acordo com um estudo do grupo da USP publicado em fevereiro de 2017 na revista científica Heliyon. Por causa da intensa pressão a que estão submetidas, as colunas de sal, chamadas diápiros, rompem as camadas de rochas do assoalho marinho, que afunda, formando a cratera. Esse movimento libera o metano aprisionado com o material orgânico – restos de animais e plantas – acumulado no fundo do mar.
Riqueza Biológica
As crateras formam ambientes únicos, com comunidades de microrganismos, moluscos e outros invertebrados mais diversificados e abundantes que os das regiões vizinhas. Em uma área do oceano Ártico a 1.200 m de profundidade, a riqueza de espécies era 2,5 vezes maior em áreas ricas de metano do que nas regiões vizinhas, verificaram pesquisadores da Noruega e dos Estados Unidos em um artigo da revista Limnology and Oceanography de outubro de 2007. Nessas áreas, observam os autores desse trabalho, a fonte de vida é o metano, não a luz do sol, que não chega ao mar profundo.
Em seu laboratório no IO-USP, a bióloga Vivian Pellizari cultiva bactérias e outros microrganismos que produzem metano a partir da degradação da matéria orgânica no fundo do mar, um ambiente desprovido de oxigênio. “O desafio agora é manter os cultivos viáveis até o isolamento dos microrganismos”, diz Vivian, que pretende entender a diversidade dos microrganismos produtores e consumidores de metano no fundo do mar. Em outubro, ela coordenará em Ilhabela, no litoral paulista, a Escola São Paulo de Ciência Avançada do Metano, cujo propósito é debater a origem e as transformações do metano em ambientes marinhos e terrestres.
As primeiras crateras submarinas desse tipo foram descobertas na costa de Nova Escócia, no Canadá, no final dos anos 1960 por uma equipe do Instituto de Oceanografia Bedford, também no Canadá. Detectadas por um então novo sistema de sonar, as crateras de Nova Escócia tinham 150 m de diâmetro e 10 m de profundidade. Depois, foram identificadas em todo o mundo. Em 2013, pesquisadores da Nova Zelândia, Alemanha e Estados Unidos encontraram as maiores crateras submarinas, a 500 km a leste de Christchurch, na Nova Zelândia. As maiores crateras dessa região tinham 11 km de diâmetro por 100 m de profundidade, a cerca de 1 km da superfície. Devem ter sido criadas pela erupção de gases através dos sedimentos, mas aparentemente não liberavam mais metano.
Projeto
Feições anômalas de fundo no talude superior do Sul do Brasil (nº 16/22194-0); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Michel Michaelovitch de Mahiques (USP); Investimento R$ 231.247,09.
Artigos científicos
SANTOS, R. F. dos et al. Metal/Ca ratios in pockmarks and adjacent sediments on the SW Atlantic slope: Implications for redox potential and modern seepage. Journal of Geochemical Exploration. v. 192, p. 163-73. set. 2018.
PORTILHO-RAMOS, R. C. et al. Methane release from the southern brazilian margin during the last glacial. Scientific Reports. v. 8, n. 1, 5948. 13 abr. 2018.
MAHIQUES, M. M. de et al. An extensive pockmark field on the upper Atlantic margin of Southeast Brazil: spatial analysis and its relationship with salt diapirism. Heliyon. v. 3, n. 2, e00257. 24 fev. 2017.
BOETIUS, A. e WENZHÖFER, F. Seafloor oxygen consumption fuelled by methane from cold seeps. Nature Geoscience. v. 6, p. 725-34. 29 ago. 2013.
RODRIGUES, L. F. et al. The influence of methane fluxes on the sulfate/methane interface in sediments from the Rio Grande Cone Gas Hydrate Province, southern Brazil. Revista Brasileira de Geofísica. v. 47, n. 3, p. 369-81. set. 2017.
ASTRÖM, E. K. L. et al. Methane cold seeps as biological oases in the high‐Arctic deep sea. Limnology and Oceanography. v. 63, n. S1, p. 209-31. 27 out. 2007.
Livro
Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações. Estimativas anuais de emissões de gases de efeito estufa no Brasil. Brasília, DF: MCTIC. 2017, 91 p. 4ª. ed.