Uma rede na varanda será o diferencial brasileiro mais visível da Casa Solar Flex, uma habitação projetada e construída por um consórcio de seis universidades que terá autossuficiência em energia elétrica obtida dos raios solares. Ela vai participar de uma competição em junho, em Madri, na Espanha. É a Solar Decathlon Europe, uma prova entre universidades de nove países que será realizada pela primeira vez no continente europeu. As outras quatro competições anteriores, as American Solar Decathlon, aconteceram nos Estados Unidos sob a organização do Departamento de Energia (DOE) norte-americano que também participa da organização do evento na Europa. Os objetivos das Decathlons são mostrar à sociedade que é possível morar com sustentabilidade, ampliar o conhecimento no campo da energia solar e formar profissionais neste tipo de tecnologia. A mostra competitiva é aberta ao público, inclusive com visitas ao interior das casas, o que colabora para a disseminação do uso da radiação solar para a produção de energia elétrica.
Será a primeira vez que uma equipe da América do Sul participa da Decathlon. Os desafios serão enormes. Como numa prova de decatlo no atletismo, os competidores têm que se submeter a 10 provas e a base que garante a não perda de pontos está na sustentabilidade da energia, capaz de prover toda a iluminação e o funcionamento de aparelhos eletrônicos dentro da casa, além de manter o conforto térmico com temperatura adequada. O projeto brasileiro está sendo elaborado há mais de um ano e leva em conta as necessidades e regras da prova.
“Recebemos o convite para a competição do professor José Manuel Páez Borrallo, vice-reitor da Universidade Politécnica de Madri, que esteve em agosto de 2008 na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). O grupo de pesquisadores que estava presente representando as universidades resolveu formar um consórcio para somar as habilidades e dividir os custos”, explica o coordenador-geral do projeto, professor Adnei Melges de Andrade, vice-diretor do Instituto de Eletrotécnica e Energia (IEE), da Universidade de São Paulo (USP). “Depois, ainda em 2008, elaboramos um concurso entre alunos de arquitetura das universidades brasileiras com o objetivo de ter uma casa autônoma, bonita, funcional e com características sustentáveis, capaz de ser instalada em diferentes tipos de clima brasileiro, do frio ao calor, seco e úmido, do Rio Grande do Sul ao Ceará”, conta Andrade. A ideia do grupo é que ela possa ser reproduzida possivelmente por uma empresa no futuro e destinada a ser instalada em locais isolados, como, por exemplo, na Amazônia. Seria destinada ao turismo sustentável para que a presença humana em determinado local não gere impacto ambiental.
No concurso foram apresentados 17 projetos, e um júri com três arquitetos brasileiros e dois espanhóis escolheram quatro. O primeiro e o terceiro lugares foram da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e o segundo da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Empatado em terceiro ficou um projeto da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Os vencedores levaram à formação de uma equipe que, ao aproveitar as melhores características de cada um, elaborou o projeto final. Formou-se uma grande equipe interdisciplinar com mais de 100 pessoas entre alunos de graduação de arquitetura, a maior parte, engenharia, design, marketing e jornalismo, além de dois doutorandos em arquitetura e engenharia civil. Os alunos pertencem às seis universidades que formam o Consórcio Brasil: USP, UFSC, Unicamp, UFRGS, UFRJ e Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), onde eles têm a coordenação de um ou mais professores dessas unidades. A casa começa a ser construída neste mês de janeiro na Cidade Universitária em São Paulo, na área do IEE na USP, onde será executada a fase de montagem e testes. Em abril, ela vai ser desmontada e enviada de navio para a Espanha. Lá, no início de junho, serão 10 dias de montagem até a abertura da competição no dia 18.
Espaço interno
A casa brasileira terá 43 metros quadrados (m2) de área construída e será instalada numa área de 74 m2. Ela não tem fundação e estará ancorada a 50 centímetros do solo. É toda flexível no sentido de que é possível mexer com facilidade no espaço interno moldado em divisórias de madeira de reflorestamento, uma das exigências do regulamento, baseado em conceitos sustentáveis de produção, e esquadrias metálicas intercambiáveis. Existe apenas um espaço reservado para cozinha e banheiro. Por fora ela terá aletas reguladoras dos raios solares e da ventilação. Uma das inovações da casa está em parte dos painéis fotovoltaicos, que captam os raios do sol. Instalados verticalmente, eles podem ser movimentados automaticamente para os três lados da casa onde a radiação solar ao longo do dia é mais forte. No telhado, os painéis são horizontais e fixos. Umas das regras da competição diz que esses dispositivos precisam ser adquiridos do mercado para mostrar a viabilidade do projeto. Na casa serão 64 painéis, sendo 48 no telhado. Em conjunto vão gerar 15 quilowatts (kW) de potência total instalada quando o Sol estiver no zênite – posição que ocorre ao meio-dia. “Estamos negociando com empresas que revendem esses painéis no Brasil”, diz Andrade. Até agora não existem fabricantes desses equipamentos no país (leia Confusão e perspectivas abaixo).
A competição europeia vai apresentar uma inovação que é uma tendência mundial relativa à energia solar. A eletricidade produzida pelos painéis solares será injetada na rede elétrica da cidade de Madri. Dessa forma a companhia local de distribuição de energia elétrica recebe a eletricidade gerada ao longo do dia e supre a casa nos momentos em que ela não produz qualquer quilowatt. “Existem dois medidores, um para a saída de energia e outro para a entrada da eletricidade que vai manter a casa. Esse equilíbrio ou balanço energético faz parte de uma das provas, a específica de sustentabilidade energética”, explica o aluno de arquitetura Lucas Sabino Dias, da UFSC. Nas competições nos Estados Unidos, realizadas em 2002, 2005, 2007 e 2009, a casa era totalmente autônoma, com a energia captada do sol armazenada em grandes baterias semelhantes à de carros – que são muito caras e ocupam espaço – para o uso à noite.
Entre as tarefas relacionadas ao consumo de energia algumas são curiosas, como a de um jantar que a equipe precisa oferecer para seis convidados escolhidos de equipes de outros países. O cardápio ainda não foi definido. Funções triviais também estão no regulamento, como aquecer 60 litros de água duas vezes ao dia, simulando o uso para a higiene dos moradores. “Mas o que conta mesmo são a inovação e a sustentabilidade, que valem pontos em todas as provas”, explica Andrade. Outra inovação que a equipe brasileira vai colocar na casa é o uso de uma camada de parafina nas paredes de madeira para manter a temperatura entre 22 e 24 graus Celsius (ºC), uma das regras da competição. A parafina – que estará encapsulada em microesferas e incorporada ao gesso usado no acabamento interno – muda de estado de acordo com o calor. Durante o dia, o aquecimento do sol liquidifica essa substância, que absorve calor e mantém a temperatura agradável. À noite, em temperaturas baixas, ela solidifica, libera calor e aquece os cômodos. “Também vamos introduzir água na parede, no piso e no teto. A água também absorve e libera o calor num processo chamado de inércia térmica”, diz o professor Roberto Lamberts, da UFSC, coordenador técnico do projeto. Mesmo com todos esses cuidados, a casa terá um sistema de ar-condicionado para regular a temperatura de acordo com as regras da prova.
Controle geral
A casa terá também um sistema de automação residencial para que possam ser realizadas várias operações como abrir e fechar aletas externas, controlar num painel eletrônico o nível de captação de eletricidade e o quanto é preciso gastar e economizar de energia, entre outras funções. O software para esse controle já está pronto e o grupo negocia com uma empresa paulista de automação. A estrutura da casa também traz novidades. É a utilização de madeira protendida em que as vigas possuem um cabo de aço passando por dentro. Isso permite um menor gasto de madeira, o que conta pontos no item sustentabilidade.
Soluções prontas também estão no projeto da casa, como banheiros secos, em que os excrementos são aquecidos e transformados em pó. Esse equipamento é de origem sueca e aceito pela União Europeia. Eletrodomésticos como TV, ar-condicionado, geladeira, fogão, lava-roupa e lava-louça também são comprados do mercado. “A iluminação será com leds, que gastam menos energia”, diz Lamberts. A rede para descanso será adquirida de uma Organização não governamental (ONG) ou de uma comunidade que produza artesanalmente esse material.
Apoio fundamental
Para a competição em Madri já estão inscritas 19 equipes de nove países da Europa, Américas e Ásia, sendo as maiores representações a da Espanha, com seis equipes, Alemanha, com quatro, além de França e Estados Unidos, com duas, e Brasil, México, China, Finlândia e Inglaterra com uma. Nas duas últimas edições, nos Estados Unidos, em 2007 e 2009, a universidade ganhadora foi a alemã de Darmstadt, que neste ano não participa. Para a prova europeia cada equipe recebe uma dotação de € 100 mil, cerca de R$ 255 mil, do Ministério da Habitação espanhol para custear parte das despesas. O custo total da empreitada é grande, entre R$ 3,5 milhões e R$ 4 milhões.
Até dezembro, o projeto brasileiro tinha como certo, além do financiamento espanhol, mais R$ 1,5 milhão da Eletrobras e R$ 500 mil da Petrobras. Portanto, metade do dinheiro necessário para a casa chegar a Madri. “A falta de dinheiro limita muita coisa e precisamos num curto espaço de tempo conseguir mais apoio. Comparo a Decathlon com a Fórmula 1 e não com um carro de passeio”, comenta o professor Roberto Lamberts. “Ainda corremos o risco de não ir a Madri”, diz. Apenas o transporte da casa em um navio e a entrega de caminhão na capital espanhola, que fica no interior do país, custam cerca de US$ 200 mil, quase 20% do orçamento.
Não é possível contar com o apoio das fundações de amparo à pesquisa ou de órgãos de fomento à ciência e tecnologia porque não há como enquadrar este tipo de evento nos programas dessas instituições. Resta ao grupo obter apoio das empresas e de outras instâncias dos governos federal e estaduais. “Já tivemos a colaboração nas viagens da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e do Ministério das Relações Exteriores, em apoio logístico e de hospedagem na Casa do Brasil em Madri para reuniões preparatórias”, conta Andrade. Em maio de 2009 nove estudantes e três professores foram a Espanha acertar detalhes do projeto e conhecer o local da exposição. “Esse apoio será fundamental também para exportar a casa e trazê-la de volta depois.” A Capes estuda um projeto de apoio para pagar as despesas dos 36 brasileiros, entre alunos e professores, que seguirão para a competição na Espanha.
O local de exposição e competição, chamado de Vila Solar, será num parque perto da sede do governo espanhol. “Nos dias da competição, de 18 a 27 de junho de 2010, está marcada uma reunião dos primeiros-ministros da Comunidade Europeia em Madri e eles devem visitar as casas solares”, diz o professor Adnei Andrade. “O governo espanhol espera superar os 100 mil visitantes da última Decathlon em Washington, nos Estados Unidos.”
Outro aspecto da grande equipe que se formou para o projeto da Casa Solar Flex é a mobilidade acadêmica que se instalou para 11 estudantes da graduação (sete da UFSC, dois da UFRGS e dois da Unicamp). Como têm que se dedicar ao projeto que está centrado em São Paulo, esses estudantes de arquitetura estão cumprindo normalmente seus cursos na USP, assistindo a aulas, fazendo trabalhos e provas de forma equivalente às suas unidades de origem. “Existem acordos nesse sentido entre as universidades paulistas e tivemos a boa vontade dos diretores das federais e estaduais”, diz Adnei Andrade. “Nós precisamos formar profissionais que consigam projetar e montar equipamentos de energia solar integrados à arquitetura.”
Além de um produto didático, a Casa Solar Flex vai ajudar na expansão da cultura de energia solar no Brasil. “Ela é uma maturação de um novo conceito de morar. Mas isso não é só tecnologia, ela mexe com o hábito das pessoas”, diz o professor Lamberts. “Imaginamos que depois da competição em Madri ela possa circular pelo país. Seria ótimo se ela pudesse ser instalada ao lado do Museu de Ciências na Unicamp”, diz a professora Lucila Labaki, professora da Faculdade de Engenharia Civil e Arquitetura e coordenadora do projeto Casa Solar Flex na Unicamp.
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Confusão e perspectivas
Os leigos confundem os sistemas mais comuns de energia solar. Existem os coletores solares para aquecer água e substituir o chuveiro, normalmente caracterizados por um painel preto em que o líquido passa por dentro desse equipamento e se aquece, e os painéis fotovoltaicos, também de cor preta ou azul-escuro, constituídos de silício purificado. É nessa tecnologia de uso mais amplo que se depositam esperanças de uma alternativa universal para obteção de eletricidade de forma limpa e sem resíduos. A limitação principal tem sido o preço da compra e instalação dos equipamentos. “Mas o custo cai de 5 a 7% ao ano com o aumento da produção de painéis”, conta o professor Ricardo Rüther, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). A tecnologia evoluiu e os painéis duram mais de 20 anos. “A produção de células e painéis fotovoltaicos no mundo cresceu 82% entre 2007 e 2008”, diz o professor Roberto Zilles, do Instituto de Eletrotécnica e Energia (IEE) da USP. No Brasil, esses sistemas ainda são restritos a setores não servidos pela rede convencional, como na eletrificação rural, estações remotas de telecomunicações e sistemas de bombeamento de água. Estima-se um total de 20 megawatts (MW) instalados no país. Desse número apenas cerca de 170 quilowatts (kW) fazem intercâmbio com a rede elétrica de distribuição e operam sem bateria. A maior parte está nas universidades e companhias de distribuição de eletricidade. Um exemplo é o prédio da administração do IEE que possui 50% de sua demanda de eletricidade atendida por painéis fotovoltaicos. A Alemanha, país líder em energia solar, possui 6,5 mil MW instalados, valor que representa quase a metade da potência da Usina Hidrelétrica de Itaipu.
“A conexão com a rede não está regulamentada no Brasil para pequenas unidades de geração, uma situação que deve mudar com um projeto de lei do governo federal (PL630) que tramita no Congresso Nacional e deve beneficiar a microgeração de pequenos produtores de energia fotovoltaica”, informa Zilles. “Ela também deve desonerar mecanismos de incentivo e obrigar a concessionária a pagar tarifa maior que a convencional para quem injetar energia solar na rede”, diz Rüther. Isso contribuirá para o abatimento dos valores de compra e instalação dos painéis e dos equipamentos de energia solar que atualmente no Brasil custam mais de R$ 10 mil por kW instalado (uma casa precisa de 3 a 5 kW). Para sua maior disseminação, os impostos também devem diminuir ou ser eliminados. Essas ações devem incentivar a criação de empresas produtoras de equipamentos, principalmente o de painéis fotovoltaicos, tipo de indústria inexistente por aqui. “Acredito que de cinco a 10 anos vai acontecer a paridade tarifária entre o preço da energia solar e o cobrado pelas companhias de eletricidade, porque o primeiro está descendo e o segundo subindo. Então será atrativo para uma pessoa tirar o dinheiro da poupança, comprar o equipamento e colocar no telhado”, prevê o professor Rüther.
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