Catarina Bessell“O Itamaraty só tira (ou dá) voto no Burundi, na África”, ensinava Ulysses Guimarães sobre a influência da política externa no comportamento do eleitorado. A máxima do Doutor Ulysses, infelizmente, ainda não perdeu a sua validade, mas pesquisas recentes (ver adiante) e o espaço inédito aberto na mídia às discussões sobre política internacional revelam uma tendência crescente em certa parcela mais elitizada da população brasileira de agir como um “eleitor de Burundi”. Para alguns, o fenômeno se liga, em certa medida, à controversa e personalíssima diplomacia presidencial do presidente Lula, capaz de atrair críticos e simpatizantes com igual intensidade, sem meios-termos, mas a realidade é que desde os anos 1990, com a globalização e a democratização nacional, parcelas do país passaram a perceber que os atos do Itamaraty no âmbito externo influenciam em muito a realidade interna. “Quando as questões externas passaram a ter impacto de ordem distributiva, gerando ganhos e perdas diferenciados, houve uma politização da política externa e a necessidade de controles típicos de uma ordem democrática”, observa a cientista política Simone Diniz, professora da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar) e coordenadora da pesquisa Poder Legislativo, processo decisório e política externa no Brasil, apoiada pela FAPESP, que mapeou o papel do Poder Legislativo na deliberação da política externa brasileira (PEB), para identificar como são as relações entre os poderes Executivo e Legislativo sobre a política externa.
“Afinal, numa democracia, o Parlamento funciona como caixa de ressonância da sociedade, apesar das imperfeições do modelo atual e real. Esse debate ganha força desde o governo FHC, com opiniões divergentes sobre a capacidade e o interesse do Congresso nas questões externas que carecem de estudos empíricos”, observa Simone. A questão, em verdade, foi estabelecida na Constituição de 1988, em que o presidente da República tem a prerrogativa privativa de celebrar tratados, convenções e atos internacionais sujeitos a referendo do Congresso, e confere ao Legislativo a competência exclusiva de resolver sobre tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional. Mas na deliberação dos atos internacionais a ação do Legislativo é ex post: os parlamentares manifestam-se sobre um ato após negociação pelo Executivo com agentes externos, por meio dos projetos de decretos legislativos (PDLs), expressando anuência ou discordância com termos e conteúdo do ato internacional. “Em bom português, o Legislativo não está de mãos atadas, pois pode fazer ressalvas às ações já encaminhadas pelo Executivo, mas é um mecanismo modesto de manifestação. O espaço existe, mas é muito limitado”, avalia Simone.
“Isso quer dizer que as posições do presidente, de iniciador da PEB, e a do Congresso, de mero ratificador ex post facto, geram um equilíbrio em que o legislador mediano é obrigado a acatar as políticas negociadas pelo Executivo em fóruns internacionais, a despeito de estarem para além de sua curva de indiferença. Essa é uma situação que está mais próxima da abdicação do que da delegação da autoridade”, analisa a cientista política Maria Regina Soares de Lima, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, autora da pesquisa O Congresso e a política de comércio exterior (2001). Ainda assim, a pesquisadora defende que a política externa é objeto de delegação dos parlamentares por três razões principais: é um assunto muito suscetível a pressões distributivas, com setores diversos com interesses conflitantes; pela complexidade do tema que exige um domínio teórico e técnico que os parlamentares não possuem; porque garante a estabilidade das decisões, já que o Congresso, que representa interesses, tem menor chance de modificar políticas externas que possam prejudicar interesses de suas bases eleitorais. Assim, ponto para a Constituição. “Mas delegação não significa abdicação, como acontece muito no Legislativo, o que tende a isolar os parlamentares e favorecer grupos e setores específicos à revelia de qualquer controle da sociedade”, observa a pesquisadora, que defende uma forma mais eficiente de delegação de poderes ao Legislativo e a redução do poder do Executivo. “Na forma em que está temos graves prejuízos não apenas para os setores empresariais atingidos no curto prazo, como para a sociedade brasileira em seu todo”, avisa.
Catarina BessellO estado atual da diplomacia brasileira e sua ligação com a sociedade civil foi fruto de um longo consenso de que o Itamaraty era o lugar por excelência para a condução da política externa. A grande maioria dos presidentes deixou a cargo do Ministério das Relações Exteriores (MRE) a condução da PEB, salvo exceções surpreendentes como o presidente Geisel durante o regime militar. “A implicação mais importante dessas mudanças ao longo dos anos é que a antiga delegação congressual para que o Executivo promovesse uma política industrial baseada na substituição de importações deixou de definir os objetivos da ação governamental no âmbito da política de comércio exterior. Elites, massa, governantes e parlamentares concordavam com o rumo adotado pelo país na substituição de importações como forma de promoção do desenvolvimento”, conta Maria Regina. Por outro lado, isso gerou uma centralização das decisões no Executivo que teve como efeito mais visível a falta de controle democrático da política de comércio exterior. A partir dos anos 1990, surge outro modelo mundial econômico que alterou totalmente o significado do antigo padrão de crescimento baseado na substituição de importações, alteração que afetou, mais uma vez, a natureza do jogo político entre Congresso e presidente. “Era a globalização e seus efeitos em termos de autonomia perdida pelos governos das nações modernas. Cada vez mais, a ordem internacional está sendo estruturada por decisões de organizações econômicas internacionais sobre as quais os cidadãos nacionais não têm nenhum controle, muito menos qualquer possibilidade de oposição”, analisa a pesquisadora.
Mas a diminuição das atribuições do Congresso teve início com o golpe de 64. “Curiosamente, a política externa dos militares não traiu o espírito da delegação congressual promovida nos anos 1950 e que se encontrava no modelo de substituição de importações. A pedagogia política do governo autoritário, porém, permaneceu após a redemocratização, no sentido de que as decisões de comércio exterior passaram a modificar sistematicamente o status quo representado pelo antigo modelo econômico sem que o Congresso pudesse emitir qualquer opinião a respeito”, lembra Maria Regina. “O mundo que o Brasil administrava como uma externalidade internalizou-se, encerrando a eficácia do repertório de soluções construídas a partir do primeiro governo de Getúlio Vargas que configurou o país no século XX. Daí o reordenamento das agendas interna e externa que caracterizou a vida política e econômica do país na década de 1990”, analisa o professor de direito da USP Celso Lafer, atual presidente da FAPESP e chanceler por duas ocasiões (1992 e de 2001 a 2002). Em tempos ligeiramente diferentes, essa renovação mundial foi acompanhada, no Brasil, pelo processo de redemocratização e pela Constituição de 1988. “Na época, houve vários debates sobre a possibilidade de se estabelecer no texto constitucional um espaço de atuação maior para o Legislativo na condução da PEB, dentro do espírito democrático da época. Mas estava em pauta a questão do endividamento internacional e o Senado queria atribuir a si a prerrogativa de lidar com esse tópico. Ao final, outros temas nacionais tomaram conta e a discussão ficou fora da pauta. A Constituição acabou mantendo a relação das anteriores”, nota Simone.
“Se entendemos a democracia como a maior participação de atores anteriormente não envolvidos, é preciso democratizar essa forma de condução da PEB, na contramão da centralização histórica no Itamaraty. O Ministério das Relações Exteriores tem que consultar a sociedade antes das negociações, demandar a colaboração de especialistas, porque os termos de negociação externa estão cada vez mais técnicos e os diplomatas nem sempre dão conta dessa nova realidade”, avalia a cientista política Janina Onuki, do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo, que, sob a coorde-nação da professora Maria Hermínia Tavares de Almeida, realiza o estudo O Brasil, as Américas e o mundo: opinião pública e política externa (2010), apoiado pela FAPESP. “O Legislativo tem que ser o instrumento onde os atores sociais possam ter acesso às discussões internacionais. Os empresários, por exemplo, reclamam muito da dificuldade em ter acesso ao Executivo para a formulação de políticas comerciais internacionais”, diz. Segundo resultados preliminares da pesquisa, nos últimos anos, a política externa, embora não seja um tema central, ganhou muito espaço na opinião pública. “Antes ela mal aparecia”, fala.
Os assuntos mais próximos a essa faixa da opinião pública são a integração regional e o Mercosul, com um conhecimento de causa muito maior do que o esperado (e verificado no passado) sobre a PEB. As pessoas já se referem à Organização Mundial do Comércio (OMC), meio ambiente e sabem que temas internos, como violência, comércio, tráfico etc., ecoam discussões internacionais. “Um detalhe interessante é que, ao contrário do observado nos surveys americanos, as opiniões da elite e da população são muito próximas, o que indica uma maior politização do público, ao contrário da literatura tradicional”, conta. Não há mais o antigo consenso de que o presidente e o Itamaraty são os condutores naturais da política externa e há um questionamento do papel da instituição por outros ministérios, o que gera uma demanda por uma maior abertura do MRE. Já os empresários reclamam que foram deixados de lado nas discussões sobre o Mercosul. No geral há uma percepção generalizada de que o país tem condições de ser um global player, embora isso nem sempre acarrete o apoio dos países vizinhos, mas surge da própria inserção do Brasil no mundo globalizado.
Catarina BessellO estudo recente pode ser comparado com a pesquisa A agenda internacional do Brasil: a política externa brasileira de FHC a Lula, feita em 2009 pelo cientista político Amaury de Souza, pesquisador sênior do Instituto de Estudos Econômicos, Sociais e Políticos de São Paulo (Idesp). Nela, quando perguntado sobre o balanço de forças entre Legislativo e Executivo na PEB, 46% dos entrevistados responderam que a política seja decidida pelo Executivo e depois ratificada pelo Congresso, enquanto 54% argumentam que as posições da diplomacia devam ser previamente negociadas com o Congresso. “São forças que se contrabalançam, revelando, de um lado, a visão da PEB como política de Estado e a relutância em impor limites à sua condução por um círculo fechado de especialistas. Por outro, essa política é vista como uma política de governo e que, por isso, deve ser mais permeável às influências de segmentos da sociedade diretamente atingidos pelas decisões do poder público”, afirma Amaury. “Estreitar, desde o início, a colaboração entre o Itamaraty e o Congresso daria maior credibilidade e capacidade de negociação ao governo, além de legitimar suas decisões de política externa com a opinião pública. Mas o aumento do ativismo parlamentar não implica conferir ao Congresso o poder de se sobrepor ao Executivo como árbitro de última instância do interesse nacional”, observa. Segundo ele, o ideal seria intensificar a diplomacia aberta, estimulando a participação de grupos organizados da opinião pública no debate abrindo espaço para que possam exercer sua influência no processo de formação da política externa.
“O Congresso ecoa, como cabe numa democracia, as preocupações que existem na sociedade e estas adquirem, com a participação dos meios de comunicação dos interesses organizados e das ONGs, uma configuração que venho qualificando como uma agenda da opinião pública em matéria de política externa. A agenda da opinião pública brasileira possui abrangência que se intensifica com a globalização que internaliza o mundo na vida do país. Por isso é bom antecipar caminhos, verificar sensibilidades e identificar resistências junto ao Parlamento quando se vai dar início a negociações complexas. Daí a importância de o MRE desenvolver ainda mais mecanismos de interlocução sobre assuntos relacionados às relações comerciais, aos direitos humanos, ao meio ambiente que são exemplos inequívocos de itens da agenda da opinião pública”, analisa Lafer. “A Constituição de 1988, que valoriza a participação, permite amplos espaços para uma articulação entre Executivo, Legislativo e sociedade sobre temas diplomáticos, cabendo lembrar o papel das audiências públicas e o pluralismo de informações que ensejam no âmbito das comissões especializadas do Parlamento e recordar as competências que o Congresso possui para o exercício de um poder de controle sobre a PEB conduzida pelo Executivo (por exemplo: o poder de convocar o ministro de Estado e de requerer informações).” Em nosso país, lembra o professor, “cabe ao presidente da República a gestão da política externa, que a exerce de acordo com a sua personalidade, visão e sensibilidade. A gestão do presidente Lula não foi uma gestão consensual e isto transpareceu no debate público e no Congresso”.
Foram, continua Lafer, “ingredientes da discórdia a percepção de que foi impulsionada por componentes da exacerbada personalização e de partidarização da política externa que dela fez uma política de governo que não levou apropriadamente em conta os desejáveis ingredientes da continuidade de uma política pública, que tem, é claro, com os ajustes derivados da pauta interna e da conjuntura internacional, características de uma política de Estado. O primeiro ano da presidente Dilma, com a colaboração do chanceler Patriota”, pondera Lafer, “trouxe uma redução da discórdia, aumentou a margem de consenso em torno da PEB no Legislativo e no debate público extraparlamentar, em função da maneira de atuar da presidente no ajuste que vem empreendendo no trato dos assuntos diplomáticos”. Conclui o professor Lafer que “os temas da política externa estão hoje mais próximos da opinião pública do que estavam no passado, pois a mudança dos paradigmas de funcionamento do mundo e a globalização, para o bem e para o mal, reduziram as distâncias que nos permitiam o hacia adentro da exclusiva preocupação com o desenvolvimento nacional dentro das fronteiras do país”. O sociólogo e embaixador Luiz Felipe Lampreia, chanceler entre 1995 e 2001, concorda com Lafer. “Há uma compreensão maior das pessoas de que o Brasil tem uma maior inserção internacional e que o que acontece lá fora atinge diretamente o brasileiro internamente. Sou a favor da participação maior da sociedade na PEB, pois monopólios não são compatíveis com o nosso tempo. Eu mesmo, quando ministro, realizei várias reuniões com diversos setores da sociedade civil, de empresários a sindicatos, passando por ONGs. É algo mandatório. O Itamaraty não é mais uma torre de marfim e está se abrindo à sociedade. Infelizmente, na gestão de Celso Amorim isso se fez de forma desigual e antidemocrática, um equívoco que o ministro Patriota está corrigindo”, avalia. “Mas a PEB é uma política do Estado e não de governo. Se o governo Lula tivesse seguido essa diretriz, não teríamos passado o vexame em Teerã, um dos maiores da nossa política externa, uma ação feita por razões de puro marketing pessoal, sem levar em consideração que representava o país. As pessoas mais informadas entenderam isso imediatamente”, diz Lampreia.
“A ação do Legislativo é fundamental e reflete a renovação do interesse da sociedade pelas relações externas, podendo contar, cada vez mais, com quadros especializados, como demonstra o incremento dos cursos de relações internacionais, hoje a terceira nota de corte dos processos seletivos universitários do país, logo abaixo de medicina. Disso surgirá um pessoal mais interessado e especializado, bem como revela que os jovens estão se interessando pelos rumos da PEB, já que nesses últimos 15 anos os cursos de política externa, antes restritos a dois ou três, se multiplicaram. É um bom caminho”, analisa o embaixador Gelson Fonseca Jr., que foi representante permanente do Brasil junto às Nações Unidas entre 1999 e 2003.
“Creio que os mecanismos existentes possam dar conta das demandas do Parlamento, mas o nosso presidencialismo de coalizão coloca esse funcionamento em xeque”, analisa Simone Diniz. “O controle do Legislativo perde força em função desse sistema, já que boa parte das comissões têm pessoas ligadas ao governo de alguma forma, consequência de uma articulação eficiente entre governo e os partidos da base governista. A pouca capacidade para o exercício do controle legislativo está diretamente relacionada ao formato organizacional do nosso processo decisório”, diz.
O Projeto
Poder Legislativo, processo decisório e política externa no Brasil (nº 2008/57793); Modalidade Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa; Coordenador Simone Diniz – Ufscar; Investimento R$ 21.610,08