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Ecologia

Rainhas em convívio

As colônias de uma espécie de abelha brasileira, a guaraipo, são lideradas por até cinco rainhas e compõem um ambiente com regras mais flexíveis

EDUARDO CESARDia-a-dia das guaraipo: operárias voltam ao ninho, uma delas trazendo pólen (nas patas)EDUARDO CESAR

As pesquisas com uma abelha típica da Mata Atlântica, a Melipona bicolor, estão revelando uma organização colonial menos hierarquizada e uma maior divisão de poder entre rainhas e operárias, as duas castas dessa espécie que vivem lado a lado. No universo da guaraipo, como essa espécie é conhecida, há quase sempre mais de uma rainha – evidência de um comando compartilhado – e as operárias não se mostram tão submissas.

As servas geram ovos tróficos, que servem de alimento para as abelhas líderes, mas uma fração das operárias às vezes engana as soberanas e bota outro tipo de ovo – o reprodutivo, que gera machos, fruto de uma forma de reprodução assexuada. “Os ninhos de guaraipo constituem uma sociedade com uma estrutura mais flexível”, diz a bióloga Vera Lúcia Imperatriz Fonseca, do Laboratório de Abelhas do Instituto de Biociências das Universidade de São Paulo (IB/USP). “As rainhas coordenam o trabalho, mas não mandam tanto.”

Nos ninhos de Apis mellifera, a abelha de mel, que serve de referência para os cientistas, as relações internas são mais rígidas. Há apenas uma rainha, centralizadora, e as obedientes operárias trabalham na construção e manutenção do ninho. As servas praticamente não botam ovos reprodutivos – hormônios produzidos pela rainha inibem o desenvolvimento de seus ovários. As operárias da abelha de mel nunca põem ovos tróficos.

Descrita há mais de 160 anos, a guaraipo é uma abelha mansa, sem ferrão, com cerca de 1 centímetro, que costuma fazer o ninho próximo ao solo, no interior de árvores. Por apresentar comportamentos e uma estrutura social aparentemente inédita, tornou-se a estrela do projeto temático que Vera Lúcia coordena. Sua equipe, que conta com pesquisadores da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e colaboradores na Europa e nos Estados Unidos, estuda a organização colonial e os padrões de reprodução de mais de uma dezena de espécies de abelhas nativas no Brasil, sobretudo as da subfamília Meliponinae (meliponíneos).

Essas abelhas indígenas -também chamadas assim pois já estavam aqui ao lado dos primeiros habitantes de nosso território – são importantes por vários motivos. Do ponto de vista ecológico, ajudam a preservar a biodiversidade: são as polinizadoras por excelência das matas brasileiras. Para a ciência, representam um objeto de interesse único. Por serem típicas de áreas tropicais, são pouco estudadas no exterior e, a julgar pelos primeiros resultados dos trabalhos com a M. bicolor, constituem uma nova e formidável linha de pesquisa. Em termos econômicos, as abelhas nativas geram receita com a produção de mel – geralmente em menor quantidade e maiscaro que o produzido pela A. mellifera -e podem se tornar grandes aliadas da agricultura nacional graças a uma peculiaridade. Diferentemente da popular e agressiva abelha de mel, não têm ferrão e não picam. Isso torna menos arriscado seu manejo e as coloca na condição de polinizadoras por excelência de culturas em estufa.

Apenas mil das 30 mil espécies de abelhas conhecidas no mundo formam colônias e sociedades organizadas – as demais vivem solitariamente ou em colônias de organização menos complexa. O modelo clássico de estruturação colonial é o da A. mellifera, com uma rainha à frente das operárias e os zangões – os machos – vivendo fora do ninho. De acordo com as bases da ecologia comportamental, a forma mais eficiente de perpetuar a espécie – ou seja, conservar os genes – requer que as operárias abram mão de sua função reprodutiva. As operárias aceitam trabalhar para a rainha – que é fecundada por mais de uma dezena de machos – apenas porque esta é que vai gerar os indivíduos geneticamente mais próximos delas: outras operárias, todas irmãs, com as quais compartilham genes. Se tivessem filhas, as operárias completas (filhas do mesmo pai e da mesma mãe) passariam apenas 50% de seus genes. Para elas, do ponto de vista genético, é mais vantajoso ter irmãs do que filhas.

Na guaraipo, como há mais de uma rainha na colônia, nem todas as operárias são irmãs. Algumas são primas ou exibem outro grau de parentesco, visto que as múltiplas rainhas tendem a ser mãe e filha ou irmãs. Em compensação, para reforçar os laços familiares, cada rainha da guaraipo parece cruzar com apenas um macho, diferentemente do que acontece com a abelha líder da A. mellifera. Mas, no final, o resultado é semelhante ao da abelha de mel: há diferenças genéticas entre as abelhas, apontadas como fontes dos conflitos nas colônias.

Tendência à divisão
Nas colônias de guaraipo, como nas de qualquer espécie de abelha, rainhas não são rebaixadas de status, nem uma operária pode ganhar o controle do ninho ou dominar colegas. Ainda assim, ali acontecem coisas intrigantes. Embora tenha observado ninhos liderados por uma só rainha, Vera Lúcia notou que a organização social típica da guaraipo são colméias com duas ou três rainhas e às vezes até quatro ou cinco. Já se viu essa característica esporadicamente em outras espécies, mas não como padrão da espécie, “Ninhos comandados por mais de uma rainha são um traço mais comum em colônias de vespas e de formigas”, diz ela.

Mas por que existem colônias de guaraipo com muitas rainhas quando o padrão entre as abelhas sociais parece ser o da A. mellifera? Ninguém sabe ainda. Cogita-se que elas seriam descendentes de espécies mais primitivas ou fruto de ambientes com pouco espaço, o que teria favorecido a coexistência de várias líderes num só ninho. Há quatro anos e meio no Brasil, o biólogo holandês Dick Koedam, que deixou a Universidade de Utrecht para ser colaborador no Laboratório de Abelhas da USP, observou um comportamento absolutamente fora do normal em rainhas da guaraipo. Como nobres modernos, elas até trabalham. Esporadicamente, produzem cera, como se provou por análises químicas. “A Melipona bicolor é fascinante”, diz Koedam, que já estudou na Costa Rica os hábitos de outra espécie sem ferrão abundante no Brasil, a jataí (Tetragonisca angustula).

Outro dado surpreendente da guaraipo: as rainhas convivem em tranqüilidade, sem grandes disputas, num mundo onde a partilha de liderança não parece ser empecilho ao desenvolvimento do grupo. Experimentos no IB mostram quearetirada de uma das rainhas de colônias com duplo comando não altera sua organização. Na maioria dos casos, após alguns meses, uma segunda líder é criada e aceita por todo o grupo, até pela primeira rainha. Isso mostra que para essa abelha sem ferrão é mais interessante contar com múltipla chefia do que com comando único.

Rainhas enganadas
A base da escala social da guaraipo também fornece dados igualmente extraordinários. Vera Lúcia colheu evidências de que algumas operárias podem demonstrar comportamento individualista e enganar as rainhas. Sua equipe filmou ninhos em que uma operária – membro, portanto, da casta responsável por fornecer alimento e construir as células onde as rainhas depositam o óvulo fecundado que vai gerar um descendente – articula uma artimanha. Ela espera uma das rainhas botar um ovo e, depois que a líder deixa o local, coloca um ovo reprodutivo seu e, finalmente, fecha a célula. Às vezes, outra operária percebe a artimanha da colega contra a rainha e resolve intervir: numa atitude igualmente individualista, devora o ovo da companheira de casta e o da rainha e bota – ela também! – um ovo reprodutivo. Muitas vezes uma dezena de operárias age dessa forma, sucessivamente.

Em ninhos de A. mellifera, é comum uma operária policiar o comportamento das demais. Não é um evento banal, mas também não é raro. Se nessa espécie o policiamento pretende garantir a integridade dos ovos da rainha e punir as operárias infratoras, na guaraipo a vigilância pode levar a uma nova transgressão. Apesar da rebeldia, as operárias de guaraipo parecem não manifestar nenhuma preferência em termos de chefia. Atendem a todas as rainhas da colônia com igual dedicação.

Vera Lúcia e seus colaboradores estão convencidos de que algumas operárias de guaraipo são, na verdade, especializadas em botar ovos reprodutivos, um indicativo de que a divisão interna das tarefas nessa espécie pode apresentar diferenças significativas em relação ao que ocorre nos ninhos de A. mellifera. A partilha de funções entre as operárias da abelha de mel é feita em função basicamente da idade dos membros da colméia. Ao longo de sua breve vida (40 dias no verão ou 140 no inverno), uma operária de A. mellifera desempenha todas ou a maioria das funções reservadas a essa casta. Na guaraipo, esse padrão é parcialmente mantido, mas algumas operárias parecem se dedicar quase exclusivamente a botar ovos reprodutivos.

Sexo das abelhas
O comportamento reprodutivo das rainhas ainda intriga. Com quantos machos elas cruzam? Ainda não se consegue provar se com apenas um ou vários. A hipótese mais aceita vem de um trabalho feito nos EUA com 70 colônias de várias espécies de abelhas sem ferrão. A conclusão é que a rainha deve ser fecundada por apenas um macho. Para Vera Lúcia, esse também deve ser o padrão de comportamento da guaraipo.

Os estudos sobre o sistema decomunicação entre rainhas e operárias da guaraipo – conduzidos pela bióloga Carminda da Cruz-Landim, do Instituto de Biociências da Unesp de Rio Claro – estão em fase inicial. Mas já há resultados. Constatou-se que a linguagem dessas abelhas sem ferrão é fundamentalmente de ordem química, à base de feromônios, substâncias produzidas por glândulas, como as de Dufour, as mandibulares e as tegumentárias, que sinalizam determinados comportamentos, em muitos casos de sentido sexual ou reprodutivo.”Queremos descobrir como as rainhas e as operáriasseportam diante de cada substância produzida por essas glândulas”,diz Carminda. “Se entendermos como essas espécies nativas se comportam e estruturam uma colônia, poderemos aprender a manejar melhor os ninhos de guaraipo e de outros meliponíneos. Esse conhecimento pode ser também de grande interesse comercial.”

Genes iguais em ordem diferente

O seqüenciamento do DNA mitocondrial da Melipona bicolor, realizado no IB/USP, produziu um dado interessante: a abelha nativa apresenta exatamente a mesma quantidade e tipos de genes que a Apis mellifera, até então a única espécie de abelha a ter essa área genética mapeada. Além de exibirem uma seqüência comum dedicada à replicação de seus respectivos DNAs mitocondriais, as duas espécies têm 37 genes. Todos com funções idênticas: 13 são responsáveis pela produção de proteínas, 22 pela síntese de RNA transportador e 2 pela de RNA ribossômico.

As semelhanças param por aí. O DNA mitocondrial da M. bicolor tem cerca de 18.500 pares de bases, 2.000 a mais que o da A. mellifera. Mas não é essa diferença de tamanho que intriga Maria Cristina Arias, coordenadora do Laboratório de Genética e Evolução de Abelhas do IB/USP, cuja equipe executou o seqüenciamento. Para sua surpresa, embora sejam iguais, os genes das duas espécies estão espalhados distintamente no DNA mitocondrial de cada inseto. Se na guaraipo um gene está em determinado trecho da seqüência, na abelha do mel ele aparece em outro lugar. “Isso é um achado em termos evolutivos”, diz a bióloga. “Sempre acreditamos que espécies de uma mesma família taxonômica tinham não só genes mitocondriais iguais, mas também uma igual ordenação desses genes.”

A tendência à manutenção praticamente intacta do DNA mitocondrial se deve a uma peculiaridade desse tipo de material genético, segundo Maria Cristina. Na maioria dos seres vivos, o DNA mitocondrial é passado entre as gerações apenas pela linhagem materna da espécie, sem qualquer contribuição paterna. Isso diminui a possibilidade de recombinação genética, perpetuando um número limitado de variações na composição do DNA mitocondrial entre os organismos com um ancestral comum do sexo feminino.

Como todas as 30 mil espécies de abelha do mundo, a M. bicolor e a A. mellifera pertencem a uma mesma grande família de insetos, Apoidea. Logo, as duas espécies devem ter um ascendente comum em algum momento do passado. O fato de suas mitocôndrias conterem material genético com um grau de diferença maior que o esperado configura um novo enigma. “Vamos ter de seqüenciar o DNA mitocondrial de outras abelhas para entender o que acontece com a Melipona bicolor e a Apis mellifera.”

Artistas da polinização

As abelhas indígenas sem ferrão, os chamados meliponíneos, são aliadas da agricultura nacional. Polinizadoras espontâneas das matas nativas do país e mais mansas do que a Apis mellifera, podem ser utilizadas em estufas para aumentar a produtividade e a qualidade do que se planta. Já há estudos mostrando que os frutos polinizados exclusivamente por abelhas são maiores e mais saborosos. “Nos países do hemisfério norte, onde há um declínio na quantidade de polinizadores naturais, esse tipo de pesquisa já é algo corriqueiro”, diz Vera Lúcia Imperatriz Fonseca, da USP.

No Brasil, ainda não se adotam abelhas como polinizadoras das plantações – nem mesmo a A. mellifera, vista apenas como fornecedora de mel. Mas a situação começa a mudar. Em Atibaia, a bióloga Kátia Malagodi Braga testa o emprego de abelhas nativas para polinizar estufas de morangos, cultura típica da região. Das cinco espécies de meliponíneos analisadas, uma se mostrou ótima candidata para desempenhar essa função, a jataí (Tetragonisca angustula).

Exemplares de jataí visitavam regularmente as flores da cultura, levando o pólen necessário para a fertilização da planta. E quando nasciam os morangos propriamente ditos, as jataís, ao contrário de outras abelhas, não danificavam a parte comestível do fruto. “Os frutos que as jataí polinizaram me parecem maiores e melhores”, diz Osvaldo Maziero, produtor de morangos e dono da propriedade onde é feito o experimento. Kátia também está satisfeita com os resultados da pesquisa. “Para avançar, precisamos agora dominar o manejo da jataí em estufas de morango”, afirma.

O Projeto
Organização Colonial e Padrões de Reprodução em Abelhas Indígenas (nº 96/11093-2); Modalidade Projeto temático; Coordenadora
Vera Lúcia Imperatriz Fonseca – Instituto de Biociências da USP; Investimento R$ 161.883,17 e US$ 106.471,00

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