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SEMIÓTICA

Navegando entre Platão e salsichas

Pesquisa mostra que complexidade da hipermídia gera um novo tipo de leitor, com habilidades distintas tanto do intérprete da palavra escrita como do receptor dos signos urbanos

Quem sempre se intimidou diante de um computador ficou ainda mais apavorado quando essa caixa mágica transformou-se na porta de acesso para o mundo virtual. Se já era difícil para algumas pessoas lidar com os micros quando esses não passavam de máquinas de escrever e de calcular melhoradas, o advento da face amigável da Internet em 1990 – o mundo maravilhoso da World Wide Web, ou simplesmente WWW, com suas teias invisíveis e aparentemente sem fim, que podem levar a tudo (ou a nada) – exacerbou o mal-estar. Por que tanta gente, sobretudo os mais velhos e os menos instruídos, sente-se perdida no emaranhado de páginas eletrônicas, sons, textos, imagens, links e ícones do universo digital? Enfim, por que a comunicação no ciberespaço é um desafio, às vezes quase intransponível, para os neonavegadores?

Para a semióloga Maria Lucia Santaella Braga, diretora do Centro de Investigação em Mídias Digitais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (Cimid/PUC-SP), financiado pela FAPESP, que encerrou um estudo prático e teórico sobre os usuários da hipermídia, a figura do internauta deu origem a um novo tipo de leitor, do qual são exigidas habilidades totalmente diferentes das solicitadas dos receptores da palavra impressa ou da imagem em movimento do cinema e da televisão.

“É um leitor revolucionariamente novo”, diz a pesquisadora. Navegar é uma atividade mais complexa do que ler um livro ou ver um programa de TV. “O internauta está num estado permanente de prontidão perceptiva e sua atividade mental deve estar em perfeita sintonia com as partes motora e cognitiva. A linguagem do mundo digital só existe quando o usuário atua e interfere na mensagem”, afirma. Não é de se estranhar, portanto, que os não iniciados nos meandros da rede se percam em seu labirinto de opções, todas a poucos cliques de distância, e se cansem rapidamente de vagar no meio virtual. Parafraseando o semiólogo e escritor italiano Umberto Eco, o internauta pode ir de Platão a salsicha “com cinco passos apenas”.

Lucia qualificou o usuário da Internet de leitor imersivo, um sermergulhado nas arquiteturas líquidas do ciber espaço, onde todas as formas de signos (som, imagem e texto) encontram-se lado a lado, digitalizadas e interligadas por redes de dados sem fim e começo aparentes. Quem estabelece a ordem dessa informação fragmentada disponível no universo virtual é o usuário. Ainda que tenha de passar, muitas vezes, por pontos preestabelecidos pelos autores das páginas eletrônicas – os links, atalhos que ligam os incontáveis fragmentos de informação que flutuam pela rede -, cada internauta tece sua teia particular de conexões, de modo asseqüencial e multilinear, às vezes com uma lógica que é peculiar apenas a ele e a mais ninguém.

“Ao final de cada página, é preciso escolher para onde seguir”, afirma Lucia. “É o usuário quem determina qual informação deve ser vista, por quanto tempo e em que seqüência.” Essa peculiaridade, segundo a semióloga, faz da Internet a única mídia inteiramente dialógica e interativa. No livro, jornal, rádio e TV, a comunicação tem um só sentido – do emissor para o receptor. O telefone e o fax são interativos, mas só conectam um número limitado de pessoas e são monossemióticos – o primeiro só transmite o som e o segundo textos (e imagens) sobre um papel.

Livro e cidade
A postura do internauta é diferente do comportamento exibido pelos dois tipos de leitores que o antecederam: o leitor contemplativo de livro, surgido no final da Idade Média (século 15) e hegemônico até meados do século 19, e o leitor movente e apressado da sociedade industrial, habitante das grandes cidades que se locomove em meio a uma miríade de signos urbanos, consumidor de jornais, ouvinte de rádio e, mais tarde, da televisão.

O primeiro é um ser sem pressa, que depara com objetos e signos duráveis, palpáveis e imóveis: pinturas, gravuras, mapas, partituras, além de livros. Sua relação com esses signos perenes obedece quase sempre a uma seqüência clara, e a visão é o sentido mais requisitado, a serviço de sua imaginação. O segundo é o cidadão de um mundo mais acelerado, onde esbarra a todo momento nas mais variadas formas de signos móveis que povoam as metrópoles: sons e ruídos da vida urbana, a palavra escrita agigantada em letreiros e outdoors, telas luminosas, nervosas, com imagens em movimento, como se fossem grandes televisores. Nesse ambiente, quase tudo é fugaz, para consumo rápido e imediato, como o jornal, primeiro grande rival do livro, que, em 24 horas, passa de novidade para velharia.

Lucia ressalta que, depois da revolução industrial, esses dois tipos de leitor passaram a coexistir na sociedade. As novas tecnologias de comunicação e a crescente urbanização da população mundial aumentaram progressivamente o peso do leitor movente, do homem que literalmente anda entre os signos. Não liquidaram, no entanto, com o mundo das coisas fixas e perenes, com o apreciador de livros. Neste início de século 21, acontece um processo semelhante. O internauta ganha espaço entre os leitores de livros e os intérpretes dos signos urbanos.

Mas sua chegada não é vista como indício da extinção de seus antecessores. Os três tipos de leitores vão conviver lado a lado, materializando-se, às vezes, numa mesma pessoa em momentos distintos. “O livro não vai desaparecer”, afirma a pesquisadora da PUC. Para a semióloga, pessoas que valorizavam demais os livros e que têm pouca familiaridade com o universo urbano dos signos em movimento têm mais dificuldade em virar um leitor imersivo, digital.

Num primeiro momento, pode parecer inusitado o interesse de uma especialista em semiótica pela Internet, assunto normalmente visto e analisado sob a ótica das ciências exatas. Mas, na medida em que essa disciplina representa o estudo dos signos (objetos, formas ou fenômenos que representam algo diferente de si mesmos), a análise da rede por esse tipo de pesquisador é hoje em dia mais do que natural. Afinal, em toda a história da humanidade, a Internet é o primeiro meio de comunicação que conseguiu reunir todos os tipos de signos – texto, som e imagem, o verbal, o auditivo e o visual, – numa mesma forma de linguagem, a linguagem digital dos bits, onde a informação, sob qualquer forma, pode ser codificada e decodificada.

De repente, tudo que era real e palpável passou a ter uma versão virtual, distante apenas alguns cliques do mouse:o jornal do dia-a-dia, a revista do fim de semana, as imagens da televisão, o som do rádio, o texto integral de um livro antigo. Até aquele outdoor que víamos na rua foi transportado para a tela do computador. “O ciberespaço é o signo dos signos”, diz Lucia.

O desafio de entender como o ser humano raciocina e interage com a Internet é tão grande e novo que Lucia resolveu realizar pela primeira vez em sua carreira um trabalho de campo. “Sempre fui teórica e não tinha experiência em pesquisa prática”, reconhece a semióloga, que contou com a colaboração de três bolsistas de iniciação científica do CNPq em seu estudo. “Inicialmente, tudo o que pensei não deu certo.”

A idéia original de Lucia era entrevistar e observar 30 pessoas usando a Internet, 15 que já acessavam a rede e 15 não familiarizadas com o mundo virtual. Muito esquemática, a abordagem, que simplesmente dividia os indivíduos em iniciados e não iniciados no mundo virtual, não deu certo. As respostas eram lacônicas e a observação não relevou quase nada de significativo. “Essa fase serviu para indicar que o caminho era outro”, afirma a pesquisadora, com humildade e bom humor.

Novato, leigo e esperto
Assim que percebeu as limitações do método, Lucia fez algumas correções de rota. Aumentou o número de pessoas estudadas para 45 e as classificou em três grupos de 15 indivíduos, criando uma categoria intermediária entre os dois extremos. A primeira categoria compreendia os indivíduos sem conhecimento prévio da rede, que foram chamados de novatos. No nível seguinte, foram reunidos os indivíduos com pouco conhecimento de Internet, rotulados de leigos. No terceiro plano, ficaram os internautas experientes, que dominam os meandros do mundo virtual e passaram a ser chamados de espertos.

Para explorar toda a gama de raciocínios desses três grupos de usuários, a semióloga também alterou a forma de extrair informações dos participantes do estudo. Em vez de lhes fazer perguntas sobre o processo de navegação, passou a lhes propor tarefas, cujo grau de complexidade variava de acordo com o grupo a que pertencia a pessoa. Tarefas como encontrar informações sobre o campeonato paulista de futebol ou entrar num site de bate-papo. Para obter impressões ainda mais detalhadas sobre os usuários novatos e espertos, também foram realizadas gravações em vídeos de alguns usuários.

A análise do trabalho de campo deixou claro que a forma de raciocinar de cada grupo no ciberespaço é norteada por diferentes mecanismos de inferência, por distintas formas de tirar conclusões, o que confere características particulares a cada categoria de internauta. Nos usuários novatos, as conclusões são fruto, basicamente, de uma forma de pensar chamada abdução, muita usada pelas pessoas diante de coisas ou indivíduos sobre os quais pouco ou nada se conhece.

O que é abdução? É um processo mental no qual o entendimento de um signo é feito com o auxílio de um código familiar ao intérprete. Uma pessoa que, por exemplo, nunca navegou no ciberespaço abre um CD-ROM multimídia de acordo com as instruções que lhe foram dadas sobre como operá-lo. Ao entrar no programa, depara com um ambiente em três dimensões e não sabe mais o que fazer. Movendo o mouse, passeia o cursor sobre a tela e percebe que um ponto se ilumina. O usuário presume, então, que deve clicar o mouse nesse ponto. Pronto: ele acabou de realizar uma inferência abdutiva. Por navegar ancorado majoritariamente nesse tipo de raciocínio, o novato é definido por Lucia como um “internauta errante, aquele que pratica a arte da adivinhação”.

Os usuários leigos, em processo de familiarização crescente com a Internet, locomovem-se no espaço virtual de forma diversa. Seu processo de inferência predominante é a indução: a partir de um caso específico, tiram conclusões gerais. Lucia chama-os de “internautas detetives, que aprendem com a experiência”. Um exemplo de raciocínio indutivo. Em um programa de busca, o usuário digita o assunto que pretende pesquisar, mas obtém um número muito grande de respostas, de links para sites que podem conter a informação desejada. Ele cruza, então, mais informações, refina sua pesquisa e consegue uma resposta mais específica, próxima da que procurava. A partir dessa forma de refinar pesquisas nesse programa, o Sherlock Holmes do mundo cibernético conclui que sempre deve proceder assim em todos os sites de busca.

Já a lógica de inferência dos usuários espertos assenta-se fundamentalmente sobre processos dedutivos, modo de pensar no qual, a partir de uma ou mais premissas tomadas como verdadeiras, demonstra-se uma terceira proposição, conseqüência direta de suas antecessoras. É o “internauta previdente, que antecipa as conseqüências” de seus atos. Durante a navegação, quase todos os cliques com o lado direito do mouse são exemplos de dedução. Somente usa esse recurso, que permite desempenhar uma série de funções (downloads, avançar, voltar, etc.), quem de antemão conhece as regras de funcionamento do espaço virtual.

Em seu estudo, a pesquisadora da PUC também percebeu que internautas com um determinado perfil têm mais facilidade em se locomover pelo ciberespaço. Esse foi o caso de pessoas, em geral jovens, que passaram muito tempo jogando videogames. “Fiquei embasbacada com isso”, diz Lucia. Os jogos eletrônicos pedem um casamento perfeito entre a cognição mental e a parte motora, estimulando um processo de prontidão perceptiva que será muito útil no ciberespaço. A forma atual de passatempo, criticada por alguns educadores, é uma avant-première  lúdica para esses futuros internautas.

Um admirável mundo novo, cheio de som e de fúria

Música e som potencializam a imersão do internauta no mundo virtual. As pessoas dedicam muito mais tempo à fruição de uma versão multimídia de um escrito literário do que ao texto original, retirado de um livro. As afirmações são da semióloga alemã Karin Wenz, da Universidade de Kassel, que estuda as diferenças de percepção proporcionadas pela palavra impressa e o cibertexto.

Em uma de suas pesquisas, Karin comparou e analisou o comportamento de um grupo de alunos diante do poema The Angel of History , de autoria da americana Carolyn Forché. Os estudantes foram expostos a uma versão digital dos versos da poeta, com links, música, sons e imagens, e ao texto original. Todos os alunos, sem exceção, preferiram o cibertexto ao poema impresso. Em alguns casos, o tempo dedicado aos versos digitais foi até quatro vezes maior que ao poema no papel. No experimento, independentemente do nú-mero de palavras exibidas na tela, o internauta sempre mantinha a janela aberta sobre o cibertexto enquanto tocava música.

Os resultados dos estudos da alemã, ainda preliminares, são diferentes das conclusões de alguns trabalhos anteriores, que compararam o grau de imersão de leitores diante de hipertextos simples (apenas com links, mas sem recursos de áudio e vídeo) e textos impressos. Nesses estudos, o resultado foi o inverso do obtido por Karin: as pessoas ficaram mais tempo lendo o texto impresso. “O fato de os estudantes dedicarem mais tempo a um hipertexto com recursos multimídia não é necessariamente um sinal de leitura atenta, mas de observação contemplativa”, pondera.

Karin também percebeu que o ato de ler na Internet foi influenciado pela experiência dos alunos com outros meios de comunicação e seu grau de intimidade com hipertextos. Leitores que se descreveram como telespectadores que gostam de trocar constantemente de canal adotaram uma postura semelhante no computador: zapeavam na Internet, passando por muitas páginas, como se estivessem sempre procurando algo. Já as pessoas que não tinham experiência alguma com o mundo virtual lançavam mão das mesmas técnicas empregadas na leitura de um texto impresso: tentavam ler todas as palavras que apareciam num site e, conseqüentemente, gastavam mais tempo diante de um hipertexto.

O projeto
Revolução digital e novas formas de produção e difusão científicas (nº 98/09243-1); Modalidade Equipamentos multiusuários; Coordenadora Maria Lucia Santaella Braga – PUC/SP; Investimento
R$ 107.861,92 e US$ 10.835,54

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