A fibra seca do curauá, uma planta amazônica da mesma família do abacaxi, lembra o sisal na aparência. Mas a semelhança pára por aí. Muito macia ao tato, tem como principal característica uma grande resistência mecânica que lhe dá, mesmo com uma espessura reduzida, capacidade de suportar tensões elevadas. Essa propriedade faz dela uma substituta natural da fibra de vidro. Quando misturada a outros materiais que têm como base o polipropileno, como sobras de cobertores e carpetes descartados pela indústria têxtil, transforma-se em um compósito já utilizado pela indústria automobilística.
“Alguns carros que estão nas ruas, como o Fox e o Polo, da Volkswagen, já usam o novo material no teto, na parte interna das portas e na tampa do compartimento de bagagens”, diz o professor Alcides Lopes Leão, da Faculdade de Ciências Agronômicas da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Botucatu, que estuda as aplicações da planta há oito anos.
O interesse pelo curauá (Ananas erectifolius) originou-se da observação do uso desse material pelos índios na fabricação de cordas, redes de dormir e linhas de pesca, produtos que atestam as qualidades de resistência e de leveza. Os novos compósitos resultantes da fibra vegetal resumem-se, por enquanto, a poucos itens, porque a matéria-prima disponível ainda não dá conta da demanda. “Só para atender à Volkswagen seriam necessárias 100 toneladas por dia de fibra. Hoje a produção é de 10 toneladas por mês”, calcula Lopes.
Para levar as fibras do curauá até o mercado, a Unesp formalizou uma parceria com a empresa Pematec-Triangel, de São Bernardo doCampo, que fabrica as peças estruturais em forma de compósito. A parceria teve início em 2000, quando a empresa foi procurada pela Volkswagen para desenvolver peças com novas fibras. O interesse das montadoras é cada vez mais substituir algumas peças para que deixem de ser um problema ambiental no final da vida útil de um carro, quando ele é desmontado, além de diminuir o peso e tornar mais leve o veículo.
Inicialmente a Pematec começou a pesquisar a juta, que era bastante utilizada na Europa para aplicações desse tipo. Mas, em uma visita à Alemanha, Gilson Romanato, diretor da empresa, recebeu indicações dos próprios alemães de que existia no Brasil uma fibra vegetal melhor do que a juta. De volta, o empresário procurou referências sobre fibras e chegou a Lopes Leão, que já possuía alguns trabalhos publicados sobre o assunto.
Em um deles, o professor testou várias fibras, nativas e importadas, para comparação das propriedades mecânicas de cada uma. O curauá mostrou ser imbatível no quesito resistência quando comparado com bucha, banana, bagaço de cana-de-açúcar, hemp (maconha), rami, sisal, juta, malva e madeira. O outro era um projeto de pesquisa financiado pela FAPESP, dentro do Programa Parceria para Inovação Tecnológica (PITE), coordenado por Lopes Leão, que tinha como tema a produção de compósitos à base de fibras vegetais, como o curauá, para utilização na indústria automobilística. Na época, a empresa parceira nesse projeto, a Toro, de Diadema, depois de enfrentar sérios problemas financeiros, abandonou seus planos de investir no desenvolvimento dos compósitos. O convênio entre a Unesp e a Toro foi encerrado e a Pematec entrou na empreitada para produzir peças de acordo com a proposta feita pela montadora.
Inicialmente, o projeto desenvolvido pela universidade para a empresa indicava o Vale do Ribeira como um dos possíveis locais para o cultivo da planta, mas ainda faltavam estudos que avaliassem sua adaptação à região. A Pematec comprou então uma fazenda em Santarém, no Pará, e começou a incentivar os agricultores para aumentar a plantação. “Quando chegamos lá existiam 150 a 200 famílias envolvidas com o plantio, mas acreditamos que até o final de 2005 serão 400 famílias”, diz Romanato.
A fazenda é considerada como um seguro de fornecimento. “Se faltar fibras ou em época de chuvas que dificultem a secagem, utilizamos as fibras da nossa plantação.” Desde julho deste ano começou a funcionar, ainda experimentalmente, uma fábrica de processamento da fibra em Santarém. Por enquanto são 50 funcionários, gerenciados por Gilmar Lazarini, ex-aluno da Unesp. Lá, as fibras vegetais, de cerca de 1,20 metro de comprimento, são picotadas em pedaços de 5 a 7 centímetros e misturadas na proporção de 50% com fibras têxteis de polipropileno.
Peças injetadas
Depois da formação do compósito são feitas as mantas, encaminhadas para a sede da empresa, em São Bernardo, onde são fabricadas as peças de plástico por um processo chamado de termoformagem. Colocada em um molde, a manta é aquecida para ganhar a forma final e resfriada nesse mesmo ambiente. Outra técnica é a moldagem por injeção. A fibra moída, misturada ao plástico granulado, passa por um processo chamado extrusão, em que os dois materiais são sintetizados. Depois a mistura passa para uma máquina injetora, para moldagem da peça.
Várias resinas plásticas foram testadas desde 1995 para serem utilizadas com essa finalidade, entre elas o polipropileno, polietileno de alta e baixa densidade e outras. O processo por injeção permite substituir parcialmente as resinas plásticas. A General Motors do Brasil, por exemplo, tem um contrato de pesquisas com a Unesp para desenvolver peças injetadas reforçadas com fibras naturais.
Um terceiro processo, que ainda não está em uso por falta de matéria-prima, é o BMC (sigla de Bulk Molding Compound), já testado na universidade. Por esse processo, a fibra é usada pura, sem polipropileno, picada em pequenos grãos para a fabricação de peças externas de veículos. São grades e pára-choques fabricados com uma matriz epóxi ou poliéster (resinas sintéticas), em substituição à fibra de vidro usada atualmente, material de difícil descarte e reciclagem.
A flexibilidade e a maciez da fibra amazônica também levaram os pesquisadores a pensar em usá-la como matéria-prima para confeccionar roupas. Dessa forma, conforme o tamanho da fibra, elas podem ser usadas tanto pela indústria têxtil como na moldagem por injeção. Nas Filipinas, as fibras do abacaxi, extraídas das folhas e descartadas pela indústria do suco, são transformadas, por exemplo, em finas batas, usadas em cerimônias de casamento.
A falta de máquinas com tecnologia apropriada para formar os fios fez com que a Unesp recorresse ao Instituto de Fibras Naturais de Poznan, na Polônia, entidade que desde 1994 mantém parceria com a universidade. Nada menos que 500 quilos de fibras foram levados até a cidade polonesa na bagagem de Lopes Leão. A mistura do curauá com poliéster e lã, em tramas abertas e fechadas, resultou em blusas, saias, malhas, meias e até cortinas. Para ter certeza de que a fibra não causaria alergia em contato com a pele, foram realizados vários testes com sensores acoplados ao corpo de voluntários, durante vários períodos do dia e da noite, para avaliar inclusive o descanso das pessoas durante o sono.
A versatilidade da planta aponta ainda para a exploração da bromelina, uma enzima utilizada na produção de medicamentos que auxiliam nos processos digestivos, como os antiácidos, na indústria alimentícia para amaciar a carne e na produção de biscoitos e de ovos desidratados, além de também ser útil no tratamento de couros. A bromelina é encontrada principalmente no abacaxi. Mas a quantidade produzida ainda é pequena em relação às necessidades de mercado, o que a torna um produto de alto valor comercial. O estudo da atividade da enzima em plantas de curauá apontou que, embora as folhas apresentem atividade significativamente menor que os frutos (que se parecem com minúsculos abacaxis), o grande volume de polpa verde (mucilagem) retirado para chegar até as fibras, e dispensado pela indústria, poderia viabilizar economicamente sua extração.
A meta da Pematec de processar 100 toneladas por dia de fibra indica uma grande quantidade de resíduo no fim do processo. Para evitar um futuro problema ambiental, a Unesp desenvolveu um projeto que utiliza a própria energia embutida na mucilagem para produzir biogás que faz funcionar as máquinas destinadas à secagem das fibras. Outra aplicação potencial para esse resíduo, que também está sendo estudado na universidade, é na alimentação do gado. “Pela sua alta carga protéica e vitaminas, percebemos que é possível usá-lo como enriquecimento de ração animal”, diz Lopes Leão.
Cultivo no Sudeste
Para suprir todas as possibilidades de uso do curauá, é preciso ampliar a produção e provavelmente cultivá-lo fora da Amazônia, principalmente no Sudeste, mais perto do mercado consumidor. Como parte do projeto desenvolvido para a Pematec, a Unesp estuda desde o ano 2000 a adaptação das plantas ao clima e solo da região. Várias mudas foramtrazidas do Pará e plantadas no campus de Lajeado e em uma fazenda da Unesp em São Manuel, cidade próxima de Botucatu. As mudas eram de duas variedades: roxa e branca. “Achamos que para a região de São Paulo a roxa se adapta melhor ao clima”, diz Lopes Leão. O plantio já atravessou três invernos, o último com temperaturas de 3,5ºC abaixo de zero. E a planta agüentou sem problemas. Assim, o temor de que não se adaptasse ao Sudeste não se confirmou. “Sabemos que ela não morre facilmente, é resistente, não tem pragas e responde bem à adubação.”
A multiplicação das mudas é feita por clonagem das gemas, que brotam na região entre a base da planta e a folha. As gemas vão para um meio de cultura com a textura de uma gelatina em que se encontram todos os sais minerais, macro e micronutrientes de que a planta precisa, além de vitaminas e fito-hormônios (reguladores do crescimento vegetal). De uma única gema é possível formar outras quatro em 45 dias, período de cada subcultivo. Essas quatro resultam em 16 e assim sucessivamente, em progressão geométrica.
“De uma única planta matriz que consigo extrair dez gemas, eu posso obter mais de 10 mil plantas idênticas em apenas quatro subcultivos”, diz o professor Isaac Stringueta Machado, da área de biotecnologia ambiental da Faculdade de Ciências Agronômicas da Unesp, que também participa do projeto. Dois a três meses depois, as primeiras plantas são encaminhadas à estufa e daí a quatro meses já estão com cerca de 20 centímetros, prontas para ser plantadas no campo.
Depois é só esperar durante um ano, período necessário para que as folhas atinjam cerca de 1,20 metro, fase ideal para ser feita a primeira colheita. Seis meses depois, quando as folhas já estão novamente com o mesmo comprimento, nova colheita é realizada. São cerca de quatro nessa seqüência, até recomeçar o ciclo de plantio, que pode ser feito tanto com os filhotes produzidos pela planta-mãe como pelo transplante dos clones.
A segunda opção é mais interessante porque, além da redução de tempo e espaço na multiplicação, há dois outros aspectos positivos na micropropagação in vitro ressaltados pelo pesquisador. Um deles é a limpeza clonal. Como o clone é feito a partir de uma porção jovem da planta (meristemas) que ainda não tem os vasos condutores definidos (xilema e floema), qualquer fitopatógeno, bactéria ou fungo que ela tenha pode ser eliminado. O outro é a fidelidade genética, que permite cópias exatas das plantas selecionadas pela melhor adaptação às condições de campo da região Sudeste.
“Temos observado que as plantas clonadas têm um potencial de multiplicação no campo maior que a silvestre. A indução que damos com esses reguladores de crescimento fica de alguma maneira registrada na memória (genótipo) da planta, porque elas continuam se multiplicando numa taxa superior à verificada no plantio convencional”, diz Machado. Na avaliação de Lopes Leão, o aumento da produção para dar conta da demanda da indústria automobilística passa pela clonagem. “Por isso estamos montando na Unesp estrutura de reprodução de 5 a 8 milhões de plantas ao ano para atender a crescente demanda de mudas de curauá, que serão transportadas de caminhão para o Pará, prontas para ser colocadas no campo.”
O potencial do curauá tem chamado a atenção dos europeus, que já fizeram propostas ao grupo de pesquisa de levar mudas para o Ceilão, a Malásia e a Indonésia. Para que a fibra amazônica não tenha o mesmo destino da borracha da seringueira, que no final do século 19 e nas primeiras décadas do 20 foi a maior fonte de renda para o Brasil, quando colônias britânicas na Ásia passaram a cultivar a planta com sucesso e fizeram as exportações brasileiras caírem drasticamente, a receita de Lopes Leão é investir em tecnologia para o produto brasileiro estar sempre à frente dos competidores.
Além da reconhecida competência da equipe da Unesp, da qual também participam pesquisadores da Faculdade de Ciências Agronômicas, o trabalho com curauá é, na verdade, fruto de um grupo de trabalho multidisciplinar, que conta ainda com Elisabete Frollini, do Instituto de Química de São Carlos da Universidade de São Paulo (USP), e Luiz Mattoso, da Embrapa Instrumentação Agropecuária, também de São Carlos. Na Embrapa, por exemplo, são feitos os ensaios para avaliar a interação da fibra com o plástico. No IQSC são testadas as matrizes dos compósitos. “Nosso trabalho tem que ser altamente técnico porque a indústria é muito exigente”, diz Lopes Leão. “Sabemos como as peças se comportam tanto se forem usadas na Sibéria, a uma temperatura de menos 50°C, como no calor de Teresina, no Piauí.”
Para viabilizar o projeto em todas as suas etapas, que começa pelo estudo da planta no campo, sua adaptação à região Sudeste, a clonagem e o transporte de mudas, além de passar pelas aplicações da fibra na indústria automobilística, fechando o ciclo com o aproveitamento dos resíduos, a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), por meio do Fundo Verde-Amarelo, programa de estímulo à interação universidade e empresa para apoio à inovação, assinou em 2002 um convênio com a Pematec e a Unesp, no valor aproximado de R$ 800 mil a fundo perdido, válido por dois anos. A parte da Finep, metade do valor total, foi utilizada com bolsistas, equipamentos e testes. O convênio termina em dezembro, mas será renovado por mais um ano. A Pematec, que contribui com a outra metade do orçamento total do projeto, pode deduzir seu investimento como incentivo à pesquisa.
Na atual fase, o grupo de pesquisa começa a repensar alguns conceitos adotados no início do projeto. Um deles diz respeito ao número de plantas cultivadas por hectare. Eram 10 mil no começo do estudo e atualmente são 60 mil por hectare. O outro é o aproveitamento da bromelina, considerada antes apenas um subproduto. Hoje a enzima, cujo valor no mercado supera o da fibra, é considerada um co-produto na exploração do curauá. Sem contar que os pesquisadores agora sabem que ela pode ser cultivada em qualquer lugar do Estado de São Paulo e é uma cultura rentável. Atualmente o quilo seco custa até R$ 3, enquanto há dois anos valia R$ 1. Mas a mudança mais visível está na utilização de todos os recursos que a planta oferece tanto para a indústria automobilística como para a farmacêutica e a têxtil.
O Projeto
1. Produção de compósitos à base de fibras naturais para utilização na indústria automobilística (nº 96/06464-1); Modalidade Programa Parceria para Inovação Tecnológica (PITE); Coordenador Alcides Lopes Leão – Unesp; Investimento R$ 728.350,00 (Toro) e R$ 145.750,00 (FAPESP)
2. Produção de compósitos reforçados com fibras de curauá; Modalidade Fundo Verde-Amarelo – MCT/Finep; Coordenador Alcides Lopes Leão – Unesp; Investimento R$ 799.616,00 (R$ 371.600,00 – Finep e R$ 428.016,00 – Pematec)