Deus da agricultura e senhor do tempo, Saturno era imponente e violento. Revoltou-se contra o pai opressor, castrou-o e reinou sobre seus irmãos e outros deuses até ser destronado por seu próprio filho, Júpiter, o deus dos deuses do Olimpo. Era lembrado todos os anos pelos antigos romanos em festas que duravam uma semana, as Saturnálias. Já como nome de planeta – o sexto a partir do Sol e o único com um vasto conjunto de anéis -, Saturno ressurge soberano no céu à medida que se tornam públicos os primeiros dados da missão espacial formada pelas sondas Cassini e Huygens, lançadas há quase oito anos rumo a esse pla-neta amarelo.
A Cassini-Huygens é a mais bem aparelhada missão já enviada a Saturno, desenvolvida a um custo bastante elevado: US$ 3,3 bilhões. Resultado de uma cooperação entre as agências espaciais norte-americana, européia e italiana, enviará informações por mais quatro anos pelo menos sobre esse planeta generoso em luas e anéis, considerado um modelo vivo sobre a formação do sistema solar e mesmo sobre a origem da vida na Terra bilhões de anos atrás.
Em janeiro, a sonda Huygens se separou da Cassini e pousou em Titã, a maior das luas de Saturno e a única do sistema solar a preservar uma atmosfera densa e rica em nitrogênio e compostos de carbono, semelhante à da Terra. As primeiras imagens da superfície de Titã sugerem a existência de nuvens e rios de metano, composto orgânico formado por carbono e hidrogênio – talvez o mesmo que tenha favorecido o surgimento da vida em nosso próprio planeta. Indicam também que Titã apresentou atividade vulcânica no passado e que atualmente pode existir gelo em sua superfície.
Outras boas surpresas já haviam surgido em julho de 2004, quando chegaram as primeiras imagens que a Cassini fez dos sete principais anéis de Saturno durante a aproximação do planeta. Divulgadas em setembro, as análises dessas fotos revelam a possível existência de quatro novas luas – que, se confirmadas, elevarão o total para 37 -, além de um provável novo anel.Uma das fotos em especial – capturada em 21 de junho, antes de as duas sondas entrarem na órbita de Saturno – foi motivo de comemoração para a física brasileira Silvia Giuliatti Winter, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Guaratinguetá, e o astrofísico irlandês Carl Murray, membro da equipe de análise das imagens da missão Cassini-Huygens.
À sombra de F
Essa imagem em preto-e-branco sugere que uma das novas luas, com menos de 10 quilômetros de diâmetro, situa-se bem próxima a um dos anéis mais externos de Saturno, o F (os anéis principais são identificados por letras, de A a G). “Percebi esse objeto quase indetectável próximo à parte externa do anel F”, disse Murray, da Queen Mary College, da Universidade de Londres, em comunicado do Conselho de Pesquisa em Física de Partículas e Astronomia do Reino Unido. “Foi um privilégio inacreditável ser o primeiro a identificá-lo.” É um achado com importância bem maior do que aparenta. Em um artigo publicado em 1997 na revista científica Icarus , Murray, Silvia e Mitchell Gordon, da Universidade da Virgínia, Estados Unidos, afirmavam que alterações típicas do anel F só se justificariam pela existência de quatro pequenas luas ainda não-identificadas perto do anel. Essa previsão, confirmada em parte pelas imagens de Cassini, nasceu de um modelo matemático desenvolvido por eles com base em imagens do anel F captadas em 1980 e em 1981, durante a passagem das sondas Voyager 1 e Voyager 2 por Saturno.
Perto demais
O modelo detalhado no artigo da Icarus descreve com precisão a estrutura e as deformações desse anel – o quarto mais externo e um dos mais tênues dos sete anéis que circundam o planeta. Ainda em 1997, o grupo previu em outro estudo, publicado apenas em 2000, que Prometeu causaria deformações no anel ao se aproximar dele. “Em julho do ano passado, antes de um congresso em Paris, Murray me falou que as imagens da Cassini correspondiam às previsões do nosso modelo”, diz Silvia. “Não esperava que essa sonda fosse detectar as perturbações de Prometeu sobre a estrutura múltipla do anel F nem essa nova lua por ali.” Um quarto de século após sua descoberta pela sonda Pioneer 11, em 1979, o anel F é ainda hoje o que mais intriga físicos e astrônomos. Ele é formado por quatro faixas distintas de partículas situadas no mesmo plano, em uma órbita elíptica distante cerca de 140 mil quilômetros do centro de Saturno, como detalharam Silvia, Murray e Gordon. Com larguras que vão de 48 a 55 quilômetros, essas quatro faixas estendem-se por um oitavo da extensão do anel – nos outros sete oitavos a estrutura pode variar. Em certos pontos essas faixas apresentam alterações curiosas e quase sempre temporárias. Distantes em média 20 quilômetros uma da outra, as faixas ora estão entrelaçadas como uma trança de cabelo, ora formam suaves ondulações. Ou, de repente, desaparecem por um trecho para ressurgirem mais adiante, como uma estrada interrompida pela queda de uma ponte.
Há oito anos, Silvia, Murray e Gordon explicaram as surpreendentes modificações nas faixas do anel F pela interação gravitacional com as duas luas de órbita mais próxima, Prometeu e Pandora. Prometeu tem 100 quilômetros de diâmetro e se move em uma órbita elíptica interna ao anel, a 139 mil quilômetros de Saturno. Pandora é menor: tem 84 quilômetros de diâmetro, com uma órbita externa ao anel F, a 142 mil quilômetros do segundo maior planeta do sistema solar, com dez vezes o diâmetro da Terra, menor apenas que Júpiter .Por ser maior, Prometeu causa as perturbações mais intensas na estrutura do anel, em especial quando essa lua se encontra no ponto de aproximação máxima de F, fenômeno observado a cada 19 anos, de acordo com a previsão de Silvia e Murray. É que nesse período a atração gravitacional da lua sobre as partículas do anel se torna mais intensa. “Essa aproximação máxima é maior em algumas regiões porque a órbita tanto das luas como dos anéis são elípticas”,explica Silvia.
Tranças e ondas
Em artigo publicado em 2000 na Planetary and Space Science , Silvia, Murray e Gordon usaram os dados da aproximação máxima de Prometeu para simular os efeitos sobre as quatro faixas de F – quando a distância da lua chega a meros 2 quilômetrosda faixa mais interna do anel e a 280 quilômetros da mais externa. Quase nada, diante da largura dos anéis somados, que equivale à distância da Terra à Lua. Ao se afastar do anel, Prometeu arrasta consigo uma nuvem de partículas da porção mais interna de F, que aparece interrompida, lançando-as em direção a Saturno – algo que não havia sido detectado pelas missões Voyager e foi observado agora pela Cassini. Nas quatro faixas surgem ondulações bastante pronunciadas.Quando é Pandora que se aproxima de F, suas faixas não chegam a se romper, mas são formadas ondulações menos intensas, conforme a equipe de Silvia demonstrou em uma simulação mais recente. Com cerca de um décimo do diâmetro de Prometeu e Pandora, luas menores com órbita coincidente com a do anel provocariam os entrelaçamentos e o adensamento das faixas. Em uma simulação realizada no semestre passado, com base nas informações fornecidas pela Cassini, Silvia confirmou a eficácia desse modelo.
Desde sua descoberta em 1610 pelo astrônomo italiano Galileu Galilei, Saturno chama a atenção nem tanto por seu porte imponente e suas luas, mas pelos seus anéis. Com um telescópio construído por ele mesmo, Galileu não discernia os anéis e acreditava que houvesse dois imensos satélites quase colados ao planeta. Em 1656, o astrônomo holandês Christiaan Huygens – descobridor de Titã – propôs que esses satélites seriam na verdade um único gigantesco anel rígido ao redor do planeta. Mas foi outro italiano, Giovanni Cassini, quem sugeriu em 1675 que esse anel não seria rígido nem único. Somente o envio das sondas espaciais revelou os detalhes e as nuanças desses anéis, os mais brilhantes, extensos e bem-preservados do sistema solar, formados por partículas de poeira e gelo. Outros três planetas, Júpiter, Urano e Netuno, têm anéis, mas são menos visíveis.
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