Normalmente lembradas pela maioria das pessoas apenas quando infestam o açucareiro ou o aparelho de som, as formigas ocupam o planeta há pelo menos 100 milhões de anos, de acordo com os fósseis mais antigos. Algo que pode soar ainda mais surpreendente: são componentes essenciais dos ecossistemas e têm uma importância ecológica maior do que se poderia esperar, além de apresentar uma elevada riqueza e alta diversidade de espécies, todas sociais.
O maior estudo sobre esses insetos já realizado na Mata Atlântica brasileira, que reuniu especialistas de 11 instituições do país e colaboradores do exterior, comprova que as formigas são um dos principais indicadores da diversidade biológica de uma região: quanto mais espécies de formigas, mais espécies provavelmente haverá de outros animais e de plantas.
A equipe coordenada por Carlos Roberto Brandão, biólogo do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (USP), identificou até agora 410 espécies de formigas da Mata Atlântica, mas estima-se que essa floresta litorânea possa abrigar até mil espécies – mundialmente, de um total estimado em 20 mil espécies, já foram descritas cerca de 12 mil. “Com base nesses dados”, afirma Brandão, “a Mata Atlântica pode ser vista como um dos ambientes mais ricos em espécies de formigas do mundo”. Há regiões com muito menos: na Grã-Bretanha, por exemplo, vivem apenas 36 espécies de formigas.
“As formigas vivem em colônias que podem abrigar de poucos a milhões de indivíduos, o que as coloca como um dos animais terrestres mais abundantes em regiões tropicais e subtropicais”, diz ele. Estudos feitos na Amazônia indicam que formigas e cupins, outro grupo de insetos sociais, representam cerca de 70% da biomassa animal terrestre, medida a partir do peso seco.
Em outros termos, as populações desses insetos que medem de 1 milímetro a 4 centímetros e individualmente não pesam mais de décimo de grama, se pudessem ser reunidas e pesadas, apresentariam uma massa de matéria orgânica mais elevada que a de todos os outros invertebrados e vertebrados terrestres juntos. Segundo Brandão, alguns grupos animais, em especial besouros e ácaros, são ainda mais ricos em espécies, mas geralmente são solitários e, portanto, cada espécie é representada por muito menos indivíduos que as espécies sociais.
Durante dois anos, de 1999 a 2001, os biólogos percorreram 26 áreas de Mata Atlântica preservada em dez estados – Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Bahia, Sergipe, Pernambuco, Alagoas e Paraíba. Coletaram 1.400 amostras de 1 metro quadrado da camada mais superficial do solo e da cobertura de folhas secas, a chamada serapilheira, onde se concentram 60% das espécies conhecidas de formigas. Em geral não se afastando mais do que dois metros de seus ninhos, esses insetos habitam os espaços entre as folhas que caem no solo, protegidas contra o ataque de outros animais e, ao mesmo tempo, encontrando aí seus alimentos preferidos, como os ácaros.
Duas das espécies de formigas mais comuns na Mata Atlântica são a Pheidole flavens, com operárias de apenas 1 milímetro de comprimento, encontrada em 842 das 1.400 amostras – ou seja, quase em 2 de cada 3 metros estudados -, e a Pyramica denticulata, também milimétrica, com operárias dotadas de mandíbulas muito compridas e cabeça em forma de coração, presente em 780 amostras. “Provavelmente”, diz Brandão, “essas duas espécies estão entre os animais mais comuns da Mata Atlântica”.
Analisando as informações que resultaram desse longo trabalho de campo, além de dezenas de prováveis espécies novas, em especial em gêneros bastante raros como Asphinctanilloides e Cryptomyrmex, os pesquisadores encontraram formas refinadas de organização da fauna de formigas, vistas normalmente como integrantes de sociedades simples, com machos, que atuam somente na reprodução, e fêmeas, por sua vez divididas em rainhas, operárias e soldados, que são operárias modificadas que executam os trabalhos mais pesados. O estudo das operárias, mais abundantes e mais facilmente encontradas fora dos ninhos, mostrou uma inesperada riqueza de comportamentos.
Foram identificados nove padrões distintos de comportamento e hábitos. Normalmente, os pesquisadores reconhecem esses padrões comportamentais a partir de informações prévias sobre os hábitos de cada espécie. Rogério Rosa da Silva, um dos biólogos da equipe, examinou as espécies que viviam em quatro das 26 localidades estudadas e desenvolveu outra abordagem. Nasceu daí uma proposta de classificação dos comportamentos das formigas de solo, que pode ser válida em toda a Mata Atlântica e representar de modo mais preciso o que outros especialistas faziam de modo subjetivo.
Mesmo que a composição de espécies varie de uma localidade para outra, a estrutura do conjunto das comunidades é constante: as formigas sempre se organizam de acordo com os mesmos padrões de comportamento, chamados guildas, que mostram como cada espécie atua no ambiente. Onde existem formigas existem as nove guildas, formadas por cinco categorias básicas, uma delas com quatro subconjuntos.
Os grupos básicos são: as predadoras generalistas, que caçam qualquer tipo de presa; as predadoras especializadas, que coletam presas específicas como ovos de outros insetos ou mesmo outras formigas; as cultivadoras de fungos, que levam para o ninho folhas, pedaços de plantas e carcaças de outros insetos, que são usados para alimentar a colônia de fungos que cresce no fundo do ninho e fornece açúcar e proteínas para as formigas; e, por fim, as generalistas, que coletam seiva de plantas e pequenos animais, dos quais as formigas se alimentam.
As predadoras generalistas é que são agrupadas em quatro conjuntos: as que coletam apenas o que está sobre o solo, chamadas epigéicas; as que visitam também as camadas superficiais do solo, ou hipogéicas, e as espécies com operárias relativamente grandes e as relativamente pequenas, distinguindo-se, neste caso, pelo tamanho da presa que coletam. Também existem, mas não foram coletadas, seis outras guildas: duas de espécies nômades, que se deslocam sob o solo, três de arborícolas e as exclusivamente subterrâneas, que vivem em ninhos fixos.
Competição
“Essa classificação permite uma análise mais fina da estrutura das comunidades de formigas”, diz o biólogo Rogério Silva, do Museu de Zoologia da USP. Cada lugar comporta apenas um número limitado de espécies em cada categoria de comportamento ou guilda: em uma região em que podem viver apenas quatro ou cinco espécies de formigas predadoras jamais se encontrarão 20 espécies predadoras. “Esse limite deriva de competição entre espécies, já que formigas predadoras grandes disputam apenas com outras predadoras grandes um número finito de presas”, diz Brandão.
“Guildas, nesse caso, representam os cenários da competição”. Como se demonstrou que a fauna de formigas da Mata Atlântica deve ser composta sempre das mesmas 15 guildas, pode-se agora avaliar com mais precisão o estado de conservação de uma mata, algo que era feito apenas por meio de listagens comparativas de nomes de espécies.
A regularidade com que se encontram esses padrões de comportamento leva a concluir que as alterações impostas pelas atividades humanas, como o desmatamento de um trecho da floresta, pode causar desequilíbrios entre esses grupos e a conseqüente superpopulação de alguns deles, com prejuízos para as próprias comunidades e para os animais e plantas que dependem delas para sobreviver. “Elas mantêm tantas relações mutualísticas que é possível concluir que se em um lugar há mais formigas também existem mais de outras espécies”, diz Brandão.
No Cerrado, 70% das plantas apresentam glândulas produtoras de néctar, os chamados nectários, que atraem as formigas. Ao coletar o néctar, as formigas protegem as plantas, evitando que outros insetos venham se alimentar da própria planta. Elas também controlam a população de outros insetos e de outros pequenos invertebrados, já que muitas espécies são predadoras, enquanto outras dispersam sementes. As relações das formigas com as plantas podem ser positivas, quando eliminam animais herbívoros, em troca de néctar, ou negativas, quando implantam colônias de insetos capazes de obter seiva, cujo excesso elas coletam, em troca da proteção a esses insetos, como cochonilhas, pulgões e outros parentes de cigarras.
Indicadores
O primeiro estudo a mostrar que as formigas serviriam como um indicador da diversidade de outras espécies animais foi feito por pesquisadores ingleses e norte-americanos, por meio da comparação de oito grupos de animais na reserva florestal de Mbalmayo, em Camarões, na África, e publicado em 1998 na Nature. Nasceram daí outros estudos que podem ajudar a nortear a escolha de áreas a serem preservadas e dimensionar o tamanho mínimo de novas áreas de vegetação nativa a serem preservadas.
Essa possibilidade já está sendo posta em prática. Segundo Brandão, a Secretaria de Planejamento e Meio Ambiente do Estado de Tocantins pretende utilizar os dados de um levantamento sobre a diversidade de formigas no estado para selecionar áreas prioritárias para conservação do Cerrado. No ano passado, no município de Craolândia, em Tocantins, Rogério Silva encontrou um gênero novo de formiga, ainda sem nome oficial.
Do levantamento sobre as formigas da Mata Atlântica participaram também pesquisadores do Instituto Biológico de Ribeirão Preto, Universidade de Mogi das Cruzes, Universidade Estadual de Santa Cruz e da Comissão Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira, em Ilhéus (BA), e as universidades federais de São Carlos (SP), Rural do Rio de Janeiro (RJ), Viçosa (MG), Espírito Santo, Paraíba e Pernambuco. Em conjunto, ajudaram também a mudar algumas idéias bem arraigadas.
Há quatro décadas se acreditava que o número de espécies de animais e de plantas variava segundo a latitude: quanto mais próximo do equador, maior seria a diversidade biológica. Não foi o que se viu. A maior diversidade de espécies foi encontrada em trechos de Mata Atlântica do norte do Rio de Janeiro até o sul do Espírito Santo, com cerca de 10% mais espécies do que localidades mais ao norte, que, acreditava-se, deveriam abrigar uma diversidade maior. Nessa faixa entre o Rio e o Espírito Santo, relata Brandão, foram coletadas até 140 espécies – apenas das que vivem sobre o solo, em uma área de 1 quilômetro quadrado.
Em paralelo à demonstração da diversidade de espécies da Mata Atlântica e da importância desses insetos no apoio à definição de estratégias de preservação ambiental, veio à tona mais uma característica peculiar desses insetos de hábitos tão complexos. Em um artigo publicado em janeiro na Nature, uma equipe coordenada por Nigel Franks e Tom Richardson, da Universidade de Bristol, na Inglaterra, mostrou que as formigas são capazes de ensinar a outras da colônia como buscar alimento. Talvez seja a primeira demonstração formal de ensino nos animais, uma capacidade até então atribuída somente aos seres humanos.
O Projeto
Riqueza e diversidade de Hymenoptera e Isopera ao longo de um gradiente latitudinal na Mata Atlântica
Modalidade
Projeto Temático vinculado ao Programa Biota – FAPESP
Coordenador
Carlos Roberto Ferreira Brandão – Museu de Zoologia da USP
Investimento
R$ 925.901,82 (FAPESP) e R$ 30.000,00 (CNPq)