Uma canção tem o inexplicável poder de sintetizar em três ou quatro minutos um momento marcante na vida de alguém. Ao ouvir de surpresa “aquela” música no rádio, emoções como saudade, alegria, tristeza ou nostalgia vêm à mente e podem alterar o humor do dia, até mesmo levar alguém a tomar atitudes ou, em alguns casos, repensar sua existência. Muitas vezes essa experiência acaba assim que começa a próxima. No oposto, quando ouvida pela primeira vez, uma composição pode ser tão marcante que se tornará referência para futuras lembranças e sensações. Neste caso, aconteceu algo parecido com o professor e jornalista Fernando Mesquita, que, em 1982, ouviu Luz do sol, de Caetano Veloso, na voz de Gal Costa.
Sua impressão imediata foi de “um tremendo susto metafísico”. Mais que isso, transformou-se em uma espécie de “eixo central” do conjunto de 12 canções que mais de duas décadas depois comporiam a tese de doutorado A luz do sol da canção – o simbolismo solar na obra de Caetano Veloso, orientada pelo acadêmico e compositor José Miguel Wisnik e defendida em 2004 no Departamento de Letras Vernáculas (área de literatura brasileira), da Faculdade de Letras da Universidade de São Paulo (USP). “Na época (e também agora) pareceu-me uma canção cantada do paraíso”. Quando terminou de ouvi-la, veio-lhe à mente que se tratava de “um hino grego ao sol!”. Nem sabia por que pensou isso, admite.
A experiência não mais lhe saiu da cabeça. Seis anos depois, Mesquita descobriu ser o verso inicial de Luz do sol bastante semelhante ao do famoso Peã X, de Píndaro, um hino de súplica ao sol composto por ocasião de um eclipse. A palavra peã vem do grego paian – quer dizer salvador, protetor, um dos epítetos do deus Apolo – e representa um poema lírico, hino de invocação ou graças dedicado aos deuses salvadores e protetores na Grécia da Antiguidade clássica.
Se Caetano canta: “Luz do sol/ que a folha traga e traduz”, Píndaro disse: “Luz irradiante do sol! tu que vês tantas coisas”. Ou seja, inicialmente a pronúncia é feita em forma de saudação ou invocação do nome da divindade (luz do sol, luz irradiante do sol). Depois, através de uma relativa articulada pelo que, a formulação de um elogio em forma de epíteto. O que o autor desconhecia era que a dupla “nome pronunciado/epítetos” é uma “célula eulógica” (de elogio) de alcance universal, pois está no fundamento de todas as doxologias – as hínicas de louvor à glória da divindade.
Ao aprofundar sua pesquisa, Mesquita pôde determinar um paradigma de hinos solares de diversas civilizações – egípcia, védica, greco-romana, armênia, inca, cristã-medieval, zoroastriana, xiita iraniana etc. Encontrou 11 hinos exatamente com a mesma estrutura e, o que é mais importante, na sua opinião: Luz do sol, apesar de ser uma canção brasileira contemporânea, se encaixa nesse paradigma “como se fosse um hino a mais”. Aliás, acrescenta o autor, esse “encaixe” não está só na reiteração da “célula eulógica” inicial e geradora. Há também marcantes “homologias estruturais” (não há como escapar do chavão). “Homologias que eu prefiro interpretar como “passagens” para o universo da simbólica sagrada de civilizações tradicionais e que, é óbvio, não se restringem à Luz do sol, mas que aparecem em inúmeros pontos da obra de Caetano”.
Esse aspecto do paradigma, no entanto, não entrou no texto final da tese. A decisão de excluí-lo veio da sugestão do orientador. Na opinião de Wisnik, significava uma digressão muito ampla na análise da obra de Caetano. Ao mesmo tempo faria “pesar” demais a análise para o lado do sagrado. “Embora concordasse com essas observações, achei também que, como é muito interessante e esclarecedor, esse desvio acabaria por ser um estímulo à leitura. Fiz o corte porque senti que esse paradigma ainda não estava ‘em ponto de publicação'”. Ao trabalhar na versão para livro, o que faz neste momento, o autor percebeu que seria fundamental desenvolver a questão dos quatro arquétipos para dar mais clareza, o que implica uma definição cabal e precisa do que ele entende por “arquétipo” – o que, por sua vez, levou a um estudo da fenomenologia do olhar visionário.
O trabalho de Mesquita apresenta uma bem fundamentada argumentação para destrinchar as canções – que pode ser um deleite de descobertas para os fãs de Caetano. Pelo seu conceito, canções solares são aquelas nas quais o sol aparece – tanto o sol físico, aquele “que todos vêem com os olhos”, como o simbólico, transcendente, que “nem todos vêem”. Os exemplos são muitos. Além de Luz do sol, ele cita Trem das cores, Leãozinho, Força estranha (esta, um “tremendo” hino solar), O estrangeiro etc.
Sol negro
Como os símbolos sagrados sempre são ambivalentes, apresentam uma face “negativa”, também aparecem Canções do sol negro: Sol negro, O ciúme, Dor-de-cotovelo, Tigresa etc. A análise inclui também duas músicas de não autoria de Caetano Veloso. Cores vivas é de Gilberto Gil; e O velho, de Chico Buarque. Nesse caso, a escolha se deu porque Caetano declara, no libreto de Velô, ter escrito O homem velho em resposta a O velho.
A busca por evidenciar símbolos sagrados nessas canções levou Mesquita a interpretar por que na obra de um compositor contemporâneo, situada “em plena pós-modernidade”, afloram esses elementos de natureza diversa. “Por achar que há uma ênfase solar nas canções de Caetano, concentrei-me nos símbolos solares sagrados”. Na verdade, acrescenta, a presença mítica não é uma característica apenas nas músicas do compositor baiano. “A meu ver, há um movimento geral nesse sentido na cultura brasileira e Caetano é um dos ‘espelhos privilegiados’ disso”.
Pode-se perceber, por exemplo, no caso de alguns escritores importantes da literatura brasileira. Mutatis mutandis, permitiria “perfeitamente” notar a presença do sagrado em Guimarães Rosa, que seria ainda mais rica e abrangente do que em Caetano. “A obra de Clarice Lispector está esplendorosamente salpicada de epifanias”. Ou, se alguém “dispuser da paciência, da amplitude e da capacidade de trabalho necessárias”, poderá fazer uma maravilhosa leitura mítica dos enredos das escolas de samba. Estes teriam o poder de contar a “história sagrada do passado” e a “história sagrada do futuro” através de formas mestiças, num espetáculo de “arte total”, como imaginou Wagner e observou Wisnik.
Nessa interpretação final, verifica Mesquita, Caetano trata do Brasil como uma sociedade e uma cultura mestiças situadas numa “dobra do tempo” que oscila entre um tempo profano aparente, pós-moderno e globalizado, e um tempo sagrado no anverso, por enquanto se manifestando através de “cifras”. “Por enquanto” porque o pesquisador está convicto de que “no futuro” esse tempo será claramente dominante, como anuncia, por exemplo, a canção Um índio, cuja interpretação da letra fecha sua análise.
Militância
Fernando Mesquita tem um histórico de vida que o liga decerto à obra de Caetano – para muitos, ícone maior de sua geração. Nascido em São Paulo, ele se envolveu diretamente na luta armada contra a ditadura – foi parceiro do líder guerrilheiro Carlos Lamarca e ficou preso em Salvador durante três anos na década de 1970. Quando veio a anistia, passou a militar na imprensa alternativa. No começo da década de 1980 mudou-se para Mato Grosso, onde permanece até hoje, fiel às suas convicções políticas. “Recordo com muita satisfação da resistência à ditadura, faria tudo de novo, nunca embarquei no canto da sereia acrílica do neoliberalismo”.
Em todo esse período junto à floresta, ele viveu como um “alternativo à beira do mato”. Durante um bom tempo sentiu-se “completamente perdido”, mas sem nenhuma vontade de voltar para São Paulo ou de “ser achado”. Depois “de tanto me perder, acabei me encontrando”, brinca. Mesquita acredita que, se existe algum mérito em sua postura, foi o de não ter sido comodista, não ter temido “virar ninguém”. Ele garante, porém, que suas descobertas do sagrado em Caetano Veloso não tiveram como base nem o militante político nem o jornalista alternativo.
O pesquisador afirma que Caetano não criou essas canções em decorrência de um “porquê”. Simplesmente as compôs. Aliás, diz ter uma sensação muito forte de que ele não vai concordar com sua abordagem. Pior, “vai mesmo detestar minhas análises”. Chegou a essa conclusão a partir de conversas com seu orientador. Wisnik conhece bem Caetano e disse a Mesquita que ele tem verdadeira ojeriza ao “pessoal babaco-místico”, dos “papos de altas transações”, que o considera, babosamente, um “vate”, um “inspirado dos deuses”.
Não é o caso de sua abordagem, garante o jornalista. “Acho que esse tipo de ‘veneração ignorante’ já criou uma predisposição nele, de modo que será muito difícil que não sinta no que fiz algo parecido, ainda que um pouco mais sofisticado”. E acrescenta: “Acredite, a opinião de Caetano, de verdade, não pesa sobre mim. Você acha que poderia acontecer isso depois (por exemplo) de uma experiência como a do Peã, de Píndaro? E tive várias outras coincidências durante a feitura da tese”.
Para o autor, o artista baiano é um gênio no sentido usado para os poetas greco-romanos – um “inspirado pelas musas”, não no sentido convencional e rococó do parnasianismo, mas naquele que envolve “o terror e o fulgor da presença do sagrado”. E, todo inspirado, “diz muito mais do que sabe”. Mesquita interpreta que, se o sagrado se apresenta cifrado em muitas das suas canções, é porque corresponde a um movimento real na própria cultura brasileira. Assim, “o que ele fez foi realizar uma tradução afinadíssima desse sagrado emergente, ao mesmo tempo que compôs uma obra plenamente contemporânea”.
A partir da idéia de que não há uma “tradução para” e sim uma “tradução de si mesmo”, por fidelidade a si, Caetano, “com toda razão, não aceita, tem rejeição mesmo, ser tomado como ‘mensageiro do sagrado'”. Por outro lado, “quer ele queira ou não, quer goste ou não”, o anúncio dessa “duplicidade” está na sua obra em diversos momentos. Um dos mais marcantes seria em Podres poderes, no verso-pergunta “Será que apenas os hermetismos pascoais/ Os tons, os mil tons, seus sons e seus dons geniais/ Nos salvam, nos salvarão dessas trevas/ E nada mais!” A expressão “hermetismos pascoais”, no universo da música popular brasileira, seria uma referência à maneira de compor de outro gênio, Hermeto Paschoal.
Entretanto, permite outra leitura. “Hermetismo”, segundo o dicionário Houaiss, “é o conjunto de doutrinas simultaneamente místicas, astrológicas, alquímicas, mágicas tangencialmente, filosóficas, atribuídas pelos seus autores da antiguidade greco-latina à inspiração do deus Hermes Trismegisto, identificado ao deus egípcio Thot – surgido nos primeiros séculos da era cristã, influenciou teólogos, alquimistas e filósofos na Idade Média, Renascimento e Iluminismo”. “Pascoal” (ou “pascal”) significa o que é próprio da Páscoa, festa que, se para os cristãos comemora a ressurreição de Cristo, para os judeus nômades da era mosaica tem a ver com outra ressurreição – a eclosão da primavera ao fim do inverno, estação frígida, estéril e escura.
Nos dois casos trata-se de um renascimento anunciado ao cabo de uma “travessia”. Assim, diz Mesquita, a expressão “hermetismos pascoais” pode ser entendida como algo que se refere aos “símbolos herméticos” (cifrados, de difícil interpretação) que anunciam um “renascimento” ou uma “ressurreição” pascoal destinada a “nos salvar das trevas”. “Salvar” aparece como verbo com eminente sentido sagrado. “Essa anunciação (o verbo está no futuro – ‘nos salvarão’), evidentemente, é feita pelos ‘Hermetos Paschoais’, pelos compositores geniais – ‘tons’ (Tom Jobim), ‘mil tons’ (Milton Nascimento) etc. – da MPB”. Uma anunciação luminoso-sonora feita em meio às trevas, segundo o Evangelho de São João.
A tese de Mesquita – que deve sair em livro até o fim do ano – não vê a presença do sagrado como uma espécie de “âmago oculto e fundamental” da obra de Caetano, e sim como um aspecto de uma obra “inteiramente instalada na ponta da contemporaneidade, em pleno mundo dessacralizado e descentrado, ao qual suas canções aderem com perfeição protéica, multiforme e acolhedora, percorrendo todas as possíveis ‘entradas e saídas’ de gêneros, estilos, modos etc.”. Aspectos para reflexão que são bem-vindos pela importância de Caetano Veloso na história da MPB. Não era sem tempo.
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