Imprimir PDF Republicar

Bioquímica

A cura no veneno

Toxina da urutu atua como cicatrizante e na formação de vasos sangüíneos

MIGUEL BOYAYANUma proteína encontrada no veneno da serpente urutu (Bothrops alternatus) demonstrou em testes potencial para atuar como cicatrizante e regenerador de tecidos lesados, como nos casos de infarto do miocárdio. Dependendo da concentração empregada, a alternagina-C ou ALT-C, nome dado à toxina isolada do veneno, tanto pode promover como inibir a formação de novos vasos sangüíneos. “São dois efeitos opostos”, diz a professora Heloísa Sobreiro Selistre de Araújo, do Departamento de Ciências Fisiológicas da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), coordenadora de um grupo que pesquisa venenos de serpente para isolamento de compostos naturais e aplicações farmacêuticas.

Em concentrações baixas, a proteína isolada promove a formação de novos vasos, o que torna a molécula candidata ao desenvolvimento de medicamentos para tratamento de patologias que resultam em uma vascularização inadequada, como infartos, feridas de difícil cicatrização nos membros inferiores, principalmente em diabéticos, e até mesmo na disfunção erétil. Em altas concentrações, ela inibe a formação de novos vasos, atividade interessante para os tratamentos de câncer e de metástases. Embora os dois efeitos tenham sido verificados nos testes in vitro e in vivo com camundongos, os pesquisadores estão concentrando os estudos nas atividades de regeneração de tecidos apresentadas pela toxina, que mostraram ser mais promissoras.

Duas empresas da área farmacêutica demonstraram interesse em fazer uma parceria com a universidade para trabalhar no desenvolvimento da nova molécula. O laboratório da UFSCar ficará encarregado de todos os testes até a etapa de ensaios pré-clínicos, que consiste de ensaios com animais maiores. Na fase dos testes clínicos, com humanos, que será feita pela empresa, os pesquisadores vão produzir e fornecer a quantidade de proteína necessária. Antes da formalização do compromisso com a universidade, as empresas aguardam os resultados de novos testes, mais específicos, para avaliar qual a faixa de segurança de concentração da proteína. “Esses testes são necessários porque é muito tênue a linha que separa o efeito desejado do efeito tóxico”, diz Heloísa.

Ferraduras alternadas
A escolha da urutu ocorreu porque os pesquisadores queriam trabalhar com uma serpente tipicamente sul-americana. Além do Brasil, ela é encontrada na Argentina, no Uruguai e no Paraguai. Do mesmo gênero da jararaca (Bothrops), ela recebe a denominação alternatus por causa dos desenhos distribuídos pelo seu corpo, em forma de ferraduras alternadas. “A princípio só sabíamos dos efeitos decorrentes do envenenamento”, diz o pesquisador Oscar Henrique Pereira Ramos, que começou a participar da pesquisa durante o seu mestrado e doutorado, realizados no Laboratório de Bioquímica e Biologia Molecular do Departamento de Ciências Fisiológicas da UFSCar. Hoje ele faz o pós-doutorado no Laboratório de Biofísica e Bioquímica do Instituto Butantan. Os efeitos após a picada da urutu são principalmente hemorrágicos, locais ou sistêmicos. Quando são sistêmicos, podem produzir toxicidade no rim, levando à falência renal, e hemorragia no cérebro ou nos pulmões.

“Percebemos que o veneno tinha alguns componentes bastante ativos”, diz Ramos. Entre esses componentes estão as desintegrinas, proteínas que interagem com as integrinas, uma classe de moléculas de adesão localizadas na superfície celular. Os processos adesivos ocorrem quando uma célula faz contato com a outra ou com a matriz extracelular. Essas interações são fundamentais para diversos processos biológicos, como diferenciação celular, desenvolvimento embrionário, resposta imunológica, manutenção da estrutura celular, cicatrização de ferimentos e formação de metástases.

A busca por proteínas de interesse levou à toxina alternagina-C, uma desintegrina isolada pela primeira vez pela pesquisadora Dulce Helena Ferreira de Souza, que fazia seu pós-doutorado no laboratório e hoje é professora do Departamento de Química da UFSCar. A toxina altera o comportamento celular porque ela se liga aos receptores de superfície, no caso as integrinas, e dispara uma cascata de sinalização dentro da célula que culmina com a alteração na expressão de certos genes. Algumas proteínas que são ativadas dentro da célula e alguns genes que passam a ser mais ou menos expressos dentro das células já foram testados pela pesquisadora Márcia Regina Cominetti, da UFSCar, e identificados em relação aos efeitos cicatrizantes. Os ensaios biológicos sobre a atividade da toxina em células endoteliais de cordão umbilical foram liderados pela professora Verônica Maria Morandi da Silva, do Instituto de Biologia da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). As células endoteliais formam os capilares sangüíneos e são elas que precisam se dividir para permitir o crescimento dos novos vasos.

Estudos feitos com camundongos comprovaram o efeito da ALT-C na indução e inibição da angiogênese, processo de formação de novos vasos que ocorre naturalmente no organismo durante a cicatrização de ferimentos e a regeneração tecidual, para a restauração do fluxo sangüíneo nos tecidos lesados. Os estudos foram feitos pela pesquisadora Cristina Helena Bruno Terruggi, atualmente no Departamento de Ciências da Saúde da Universidade Municipal de São Caetano do Sul, no ABC paulista, durante parte do seu doutorado feita na Universidade Paris 13, na França.

Para os testes foi utilizado um gel contendo proteínas da matriz extracelular disponível comercialmente, chamado matrigel, injetado no tecido subcutâneo abdominal dos animais com duas combinações diferentes. No grupo de animais de controle, foi incorporado ao gel o fator de crescimento de fibroblastos, células envolvidas na produção de vários tipos de fibras e que promovem a angiogênese. O grupo de animais tratados recebeu, além dessa combinação, a toxina alternagina-C em diversas concentrações. Após 14 dias, foi feito um estudo histológico para verificar a formação de novos vasos dentro do matrigel. “O efeito observado in vivo reproduziu o que havia sido observado in vitro”, diz Ramos. Assim comprovou-se in vivo a revascularização.

A obtenção da proteína no laboratório ocorre com a passagem do veneno bruto em colunas cromatográficas, processo relativamente simples usado para separar as substâncias químicas em faixas bem definidas e com rendimento satisfatório para pequenas escalas. Para a produção em larga escala a proteína pode ser obtida pela tecnologia do DNA recombinante, estudo que está sendo feito atualmente no laboratório da UFSCar. Por essa tecnologia, o gene de interesse é colocado dentro de uma célula hospedeira, como bactérias, leveduras, células de inseto ou de mamíferos, para produzir a toxina com as propriedades biológicas originais em grande quantidade.

As melhores formulações para a alternagina-C estão sendo estudadas nos laboratórios da UFSCar. Entre elas estão o microencapsulamento da proteína em lipossomas, que tem como objetivo proteger o medicamento para que possa ser entregue no local onde deve atuar, a aplicação na forma livre por meio de cateter nos casos de infarto e em forma de pomadas ou cremes para feridas superficiais.

O mercado para produtos baseados na alternagina-C é bastante promissor. Até agora nenhuma outra proteína extraída de veneno de serpente e com as mesmas características estruturais da ALT-C foi descrita como molécula capaz de induzir a formação de novos vasos sangüíneos. Sem contar que no mercado farmacêutico atual existem poucas opções de medicamentos para essa finalidade.

O projeto
Utilização da alternagina-C como molécula coadjuvante no processo de formação e inibição da formação de novos vasos sangüíneos (nº 04/07052-7); Modalidade Programa de Apoio à Propriedade Intelectual (Papi); Coordenadora Heloísa Sobreiro Selistre de Araújo – UFSCar; Investimento R$ 6.000,00 (FAPESP)

Republicar