Um medicamento em forma de ampolas com caixa azul e branca semelhante a muitos outros existentes em farmácias e hospitais acaba de ser lançado na Europa para tratamento de tromboembolismo em cirurgias de pacientes com deficiência antitrombina hereditária, doença que provoca coágulos no interior dos vasos sangüíneos. Até aí nada de muito inusitado em lançar um medicamento. A grande diferença é que ele é produzido a partir de uma substância extraída do leite de cabras transgênicas desenvolvidas pela empresa norte-americana Genzyme Transgenics Corporation (GTC) Biotherapeutics, também produtora do medicamento, e distribuído pela dinamarquesa LEO Pharma para toda a Europa e Canadá. A substância é a antitrombina humana III (AIII), proteína introduzida no genoma de uma cabra por uma técnica conhecida como DNA recombinante. Essa molécula, por meio de recursos biotecnológicos, é colocada no embrião, nos primeiros momentos da sua formação, na forma de um gene codificador da mesma proteína. Posteriormente, a AIII é produzida nas células mamárias do animal. Cada cabra produz, durante o período de amamentação, 3 litros de leite por dia, o que equivale à produção de cerca de 3 quilos de proteína (já purificada) por ano.
A estratégia tecnológica de transgenia animal está presente em muitas empresas e institutos de pesquisa principalmente nos países europeus e nos Estados Unidos. Vários medicamentos estão em testes, em diferentes fases, antes de serem liberados para o mercado. No Brasil, esse tipo de pesquisa está restrito a grupos de pesquisadores em universidades e centros de pesquisa. São cerca de dez grupos de pesquisa no país que produzem animais transgênicos para expressar alguma proteína de interesse medicamentoso ou para uso em experimentos científicos, como camundongos modificados geneticamente. Grande parte desses pesquisadores esteve presente no I Simpósio Brasileiro de Tecnologia Transgênica realizado em março na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e assistiu à palestra de abertura com o ganhador do Nobel de Fisiologia e Medicina de 2007, Oliver Smithies (leia em Pesquisa FAPESP nº 146).
“Fiquei muito surpreso com os grupos de pesquisa brasileiros. Não sabia que existiam tantos e percebi que muitos se conheceram no simpósio. Isso é muito importante para a indústria do país”, disse o espanhol Lluís Montoliu José, presidente da Sociedade Internacional de Tecnologia Transgênica, ISTT na sigla em inglês, criada em 2006, e também professor da Universidade Autônoma de Madri, na Espanha. Para Montoliu, o uso de animais transgênicos tem um amplo espectro para a ciência e para outros setores econômicos. “Há muito o que pesquisar, mas já sabemos, por exemplo, que purificar proteínas no leite é relativamente fácil enquanto no sangue é mais complicado (pela possibilidade de transmissão de doenças). Além da produção de proteínas humanas e de futuras vacinas por meio do leite de animais, temos também a produção de exemplares para estudos de doenças, animais transgênicos para melhorar a produção e evitar doenças na pecuária, curar enfermidades em peixes e transplantar órgãos de porcos, por exemplo, para seres humanos.”
Os animais transgênicos usados para produção de proteínas, chamados de biorreatores, estão se tornando uma solução para se obter fármacos que funcionam como repositórios de substâncias produzidas naturalmente pela maioria dos humanos, mas ausentes ou em níveis diminutos em alguns. “Esse sistema é mais barato que as técnicas de produção de proteínas recombinantes feitas em grandes estruturas de laboratório com o auxílio de bactérias, leveduras ou células de mamíferos e com a necessidade de um reator de custo alto ou ainda de plasma humano para ser produzida”, diz o professor João Bosco Pesquero, diretor do Centro de Desenvolvimento de Modelos Experimentais para Medicina e Biologia (Cedeme) da Unifesp e coordenador do simpósio. Entre os medicamentos fabricados com a técnica de DNA recombinante com bactérias ou com o cultivo de células de ovários de hamster-chinês, na sigla CHO em inglês, estão o hormônio de crescimento humano (hGH) e o fator IX de coagulação sangüínea, essencial aos hemofílicos e também produzido com plasma humano.
O gasto atual por paciente hemofílico pode ultrapassar R$ 70 mil por ano no Brasil com medicamentos comprados no mercado externo e pagos pelos governos estaduais e federal. São proteínas fundamentais para evitar hemorragias em pessoas hemofílicas. Dois anúncios feitos em abril último prometem garantir com tecnologia tradicional o suprimento dos fatores VIII e IX com produção nacional e baixo custo. O primeiro pela Empresa Brasileira de Hemoderivados e Biotecnologia (Hemobras), vinculada ao Ministério da Saúde, em parceria com a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e o outro pelo Instituto Butantan, que começa a preparar a sua Unidade de Processamento de Plasma.
Embora prometendo preços baixos, os novos medicamentos com origem transgênica ainda são caros. No caso do Atryn, nome do antitrombótico da GTC, o preço de cada ampola é de € 2,5 mil no mercado europeu. Nos Estados Unidos, ele está na fase final de aprovação clínica. “O desenvolvimento de animais transgênicos está ligado a empresas de biotecnologia que têm investido muito nesses últimos anos na área. Com eles fica mais fácil e barato testar novas drogas porque se experimenta o princípio ativo contra determinada proteína humana no camundongo, por exemplo”, diz Pesquero. “Isso elimina algumas etapas dos testes clínicos. Um gene importante para o diabetes pode ser testado num camundongo preparado com um gene humano no lugar do gene do animal. Se a droga se ligar na proteína humana, ela funciona. Isso diminui o tempo para testes de novas drogas e verificação dos efeitos colaterais. Além disso são usados muito menos animais de laboratório.”
Pela ajuda que traz ao estudo de doenças e no desenvolvimento de novas drogas, os animais transgênicos mais presentes são aqueles destinados a laboratórios. “Já são milhares de animais transgênicos, principalmente camundongos, em todo o mundo. A maioria produzida por laboratórios associados às universidades.” Existem até empresas, como a australiana Ozgene e a suíça Polygene, que produzem tais animais também sob encomenda. Um grupo de camundongos que tenham o gene nocauteado, a técnica que faz desligar um gene e conseqüentemente a não produção de uma proteína, situação que pode provocar uma doença, por exemplo, pode custar até US$ 45 mil.
A equipe de Pesquero da Unifesp desenvolve camundongos para pesquisadores da Unifesp e de outras instituições, como o Instituto do Coração, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Uma das conquistas do grupo foi a produção de uma fêmea que expressou no leite o fator IX (leia em Pesquisa FAPESP nº 117). Em 2005, a idéia era expressar a proteína no camundongo e, se tudo corresse bem, o sistema seria transferido para gerar bovinos na Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia, de Brasília. “A meta no momento é a geração de vacas ou cabras capazes de transformar capim em leite de uma forma barata. Mesmo com a fase de purificação da proteína no leite, essa opção custa menos”, diz Elíbio Rech, pesquisador da Embrapa. “Precisamos pensar ainda que os anticorpos monoclonais, moléculas produzidas por engenharia biotecnológica, estudados principalmente para tratamentos de câncer, além de poder atuar como meio de diagnósticos e em vacinas, também podem ser produzidos nas glândulas mamárias”, lembra.
A pesquisa e a produção desses animais são muito importantes para o Brasil. Se não produzirmos animais transgênicos aqui estaremos dentro em breve importando-os,” prevê Pesquero, que atualmente também trabalha com coelhos transgênicos para expressar proteínas terapêuticas e de interesse comercial como fator IX e hormônio folículo estimulante (FSH) para bovinos. “Uma vez estabelecida a técnica em coelhos poderemos produzir diferentes proteínas.” O simpósio mostrou que o país já possui grupos produzindo em diferentes níveis. A mais recente novidade nesse sentido foi o nascimento de dois caprinos, uma fêmea e um macho, entre 11 e 20 de março deste ano em Fortaleza, no Ceará. São dois animais transgênicos que possuem em seu genoma o gene produtor da proteína do fator estimulante de colônia de granulócitos humanos, que possui a sigla em inglês hG-CSF, usado em casos de imunodeficiência, como Aids, na recuperação de pessoas com câncer que fazem uso de quiomioterapia ou que tiveram infarto do miocárdio ou isquemia cerebral (derrames). O experimento foi realizado por uma equipe da Faculdade de Veterinária da Universidade Estadual do Ceará (Uece) coordenada pelo professor Vicente José Freitas em parceria com a equipe do professor Antonio Carlos Carvalho, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), além das pesquisadoras Irina Serova e Ludmila Andreeva, da Academia de Ciências da Rússia. No começo de abril, Freitas obteve a confirmação de que os dois caprinos mais um natimorto, num lote de 23 nascidos, possuíam em seu genoma o gene para o hG-CSF.
Os testes foram realizados na universidade cearense e confirmados na UFRJ. Essa é a segunda tentativa do grupo. A primeira, realizada em 2006, apenas um cabrito nasceu transgênico, mas morreu 19 dias depois com infecção não relacionada ao procedimento de transgenia. O método utilizado por Freitas é o mais comum usado por pesquisadores do mundo, o de injeção pró-nuclear, em que uma solução com cópia do DNA e o gene da proteína que se quer expressar são injetados no óvulo recém-fecundado. Depois o embrião é transferido para o útero de uma fêmea procriadora que não necessariamente é a doadora do óvulo.
Agora com um casal transgênico, será possível cruzar o bode com a cabra para obter cerca de 75% de filhotes com a proteína humana. “Nossa alegria se estende também ao fato de o casal ser da raça canindé, em via de extinção no Nordeste brasileiro”, diz Freitas. A raça foi formada por animais trazidos pelos portugueses desde os tempos da colonização. “Com a transgenia agregamos valor à raça porque o bode transgênico pode cruzar com uma fêmea não-transgênica da mesma raça, com a chance de 50% dos filhotes serem transgênicos, produtores da proteína hG-CSF.” Outra possibilidade é a clonagem desses animais. O cruzamento deles resultaria em 100% de transgênicos. Freitas acredita, como a GTC, que as cabras levam vantagem sobre outros animais no papel de biorreatores para produzir grande parte das proteínas de uso médico. “Elas não raro parem três filhotes em 5 meses de gestação, enquanto um bovino tem apenas um filhote numa gestação de 9 meses, e raros são os gêmeos.”
Na América Latina, nos estudos com transgenia em animais, o Brasil está atrás da Argentina. A empresa Bio Sidus daquele país já havia anunciado em 2004 a produção de uma vaca que produz hormônio de crescimento humano no seu leite, embora ainda não comercialize o produto do animal. Em abril do ano passado, a empresa divulgou também o nascimento de vacas transgênicas capazes de produzir insulina humana no leite. São quatro vaquinhas da raça jérsei, especializada na produção de leite. A empresa informou que um lote de 25 vacas seria suficiente para suprir toda a necessidade de insulina na Argentina, país com cerca de 1,5 milhão de diabéticos. Mas a Bio Sidus diz corretamente que a produção de animais transgênicos com esse potencial é apenas uma parte do caminho tecnológico para se chegar a um produto final. É preciso elaborar com segurança a extração e a purificação da proteína humana no leite bovino para eliminar possíveis contaminações.
No Brasil, outro grupo, dessa vez na Universidade Federal de Pelotas (UFPel), no Rio Grande do Sul, inicia pesquisas com galinhas transgênicas. Por meio da diluição do gene codificador da proteína verde fluorescente, GFP na sigla em inglês, no esperma de galo, seguida da inseminação, os pesquisadores, coordenados pelo professor João Carlos Deschamps, conseguiram um exemplar que nasceu morto, mas que expressou tal proteína. “O experimento serviu para mostrar que a técnica funciona”, diz a professora Denise Bongalhardo, do mesmo grupo. “Experimentos realizados na Europa mostram que os ovos transgênicos são viáveis, embora expressem muito pouca proteína e, portanto, ainda não são viáveis comercialmente”, explica Denise. “As galinhas têm como vantagem o fato de produzirem cerca de 330 ovos por ano e possuírem pequeno intervalo entre as gerações, além de ter a clara de ovo naturalmente estéril. Afinal, o ovo é fácil de estocar e a proteína já vem empacotada.” O próximo passo do grupo gaúcho é expressar uma proteína de coagulação sangüínea humana, como o fator IX, em ovos de galinhas. Denise também aponta futuros usos de frangos transgênicos, como a manipulação de características de produção, melhoramento genético e resistência a doenças.
Além da produção de medicamentos via leite dos animais para obtenção de proteínas humanas ou mesmo de ovos, é possível combater enfermidades como dengue e malária, por meio da manipulação genética dos mosquitos transmissores dessas doenças. Uma alternativa que ainda dá seus primeiros passos para verificação de sua possibilidade prática é a introdução num mosquito vetor, o Aedes aegypti, da dengue, ou o Anopheles spp., da malária, de um gene que possa bloquear a atividade tanto do vírus da primeira como o protozoário da segunda, que vivem dentro desses insetos, e conseqüentemente barrar a transmissão das doenças. Com esse objetivo, a equipe do pesquisador Luciano Andrade Moreira, do Centro de Pesquisas René Rachou, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em Belo Horizonte, Minas Gerais, desenvolveu uma linhagem de mosquitos Aedes fluviatilis que pode ser vetor do parasita da malária aviária.
A ação contra o Plasmodium gallinaceum no interior do mosquito é acionada por meio da proteína fosfolipase A-2, na forma mutada e inativa, encontrada no veneno da abelha e já muito estudada. “Essa proteína deve formar uma barreira no intestino do mosquito que não deixa o plasmódio penetrar na parede intestinal e, após formar um cisto, atingir a glândula salivar do inseto e ser transferida para outra ave no momento da picada”, diz Moreira.
Para fazer os insetos transgênicos, Moreira e sua equipe utilizam a técnica de microinjeção da construção de DNA nos ovos do mosquito, na fase de embrião. “Estamos na trigésima geração de mosquitos transgênicos criados em laboratório”, conta Moreira. Pesquisa semelhante com o mosquito da dengue está em desenvolvimento sob a coordenação da professora Margareth Guimarães, da Universidade de São Paulo (leia em Pesquisa FAPESP nº 131).
A transgenia animal começou a dar seus primeiros passos em 1982 com pesquisadores norte-americanos das universidades de Washington, Pensilvânia e Califórnia que produziram um camundongo que expressava o hormônio de crescimento de um rato. Resultado: o camundongo cresceu mais que o normal. “Hoje existe muita gente trabalhando com transgênicos, o que torna fundamental patentear o resultado dos estudos”, alerta Pesquero. “Em biotecnologia, qualquer desenvolvimento é passível de patenteamento, mas o animal transgênico não é patenteável no Brasil. A patente deve ser do projeto de construção genética do animal”, afirma o engenheiro químico especializado em propriedade intelectual Ricardo Amaral Remer, sócio na consultoria Atem&Remer que deu palestra sobre o tema no simpósio na Unifesp. “É o sistema de expressão ou a construção gênica, ou ainda o conteúdo e a forma de introduzir o gene no animal que é patenteável”, explica Remer. Mesmo expressando uma proteína presente em outro animal, como o fator IX, é possível patentear outro processo de produção relacionado a essa substância.
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