A expressão “mexer num ninho de vespas” indica encrenca séria. O mesmo vale para as abelhas. São insetos sociais que trabalham em equipe inclusive quando o assunto é se defender de inimigos. Por isso quem esbarra num desses ninhos tem grandes chances de acabar no hospital com centenas de ferrões cravados na pele. E com toxinas na corrente sangüínea que por dias produzem danos principalmente no fígado, nos rins e no coração, dissolvendo a matriz que une as células e causando problemas crônicos. “Só agora entendemos como o veneno desses insetos funciona”, conta o bioquímico Mário Palma, do Centro de Estudos de Insetos Sociais (Ceis) da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Rio Claro. Ele buscou reforços na Universidade de São Paulo (USP) e no Instituto Butantan, formando uma equipe que conseguiu um feito inédito: desenvolver um soro contra ferroadas de abelhas.
De acordo com Palma, a dificuldade em produzir um soro específico contra a ferroada de insetos estava justamente no pouco que se sabia sobre a composição dessas substâncias. “Ao contrário do que acontece em serpentes, cujo veneno se baseia em proteínas complexas, 70% dos venenos de abelhas e vespas são compostos por peptídeos”, explica, se referindo a moléculas aparentadas às proteínas, porém pequenas. Ele partiu da observação de que esses venenos funcionam de maneira diferente. Uma vítima de picada de cobra – sobretudo as que viram refeição, como roedores – morre rapidamente. É, afinal, uma estratégia de caça. Já abelhas e vespas usam o veneno como defesa: os frágeis ferrões, que só conseguem penetrar a pele macia do rosto de um macaco em busca de mel, de uma ave com gosto por insetos ou de uma pessoa incauta, deixam uma lembrança bem dolorida que marca o local a se evitar.
Este ano, o Ministério da Saúde prevê que ocorrerão entre 10 mil e 15 mil acidentes com abelhas e vespas – número provavelmente muito subestimado, porque pessoas que tomam uma única ferroada e não têm reação alérgica forte não procuram atendimento médico. Ao contrário do que acontece em encontros com serpentes (mais de 20 mil mordidas por ano no país), a maior parte dos pacientes sobrevive. Mas as pequenas moléculas do veneno dos insetos se espalham com facilidade pelo organismo. Por isso, 98% das vítimas de múltiplas ferroadas têm seqüelas como problemas crônicos nos rins e no fígado.
Até recentemente o método para encontrar soros e vacinas se baseava em tentativa e erro: produzia-se o soro e se testava seu efeito. “Cada vez que não funciona, perde-se um paciente”, diz o pesquisador da Unesp. É um resultado que se deve evitar mesmo quando são testes em camundongos de laboratório, mas até agora ninguém tinha conseguido desenvolver testes in vitro para avaliar a eficácia de soros.
A estratégia de Palma foi montar um laboratório de ponta para análise de proteínas, com ajuda de um projeto de bioprospecção financiado pela FAPESP. O resultado é marcante: em quatro anos, sua aluna de doutorado Keity Souza Santos, coorientada por Fábio Castro, encontrou no veneno das abelhas cerca de 200 compostos além das cinco proteínas já conhecidas. Como não basta saber a composição, os pesquisadores partiram para investigar seu efeito no organismo. Foi fundamental nesse ponto a colaboração com a equipe do Hospital das Clínicas (HC) da USP, liderada pelo imunologista Jorge Kalil e pelo alergologista Fábio Castro. Ao atender pessoas ferroadas por abelhas ou vespas, os médicos compilaram uma lista com cerca de 50 sintomas que incluem dor, vermelhidão, inchaço, coceira, visão escurecida, falta de consciência, cansaço nas pernas e falta de memória. Ao cruzar esses dados com a lista de peptídeos e proteínas do veneno, a equipe pôde avaliar como cada composto age no organismo humano.
Produção
Em seguida Palma juntou esforços com o Instituto Butantan, produtor de 80% de todos os soros e vacinas consumidos no Brasil, que injetou veneno de abelhas em seus cavalos e extraíram os anticorpos produzidos em resposta. Em seguida, no laboratório em Rio Claro, Palma desenvolveu testes in vitro para verificar se o soro extraído dos cavalos neutralizava todos os elementos tóxicos do veneno e aos poucos acrescentou as defesas que faltavam. “Até onde sabemos, nunca no mundo se tinha feito esse processo de procurar o anticorpo contra cada proteína”, afirma.
Para chegar à formulação final, o soro teve também que passar pelo crivo do farmacologista Marco Antonio Stephano, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP, especialista em controle de qualidade. “Foram quatro anos de trabalho em que tivemos que manter segredo total”, conta Palma, “até depositarmos a patente”. Com a receita pronta, uma equipe do Instituto Butantan liderada por Hisako Higashi está agora produzindo os lotes de soro que serão testados no Hospital Vital Brazil, do próprio Butantan, centro de referência nacional em atendimento a acidentes com animais venenosos. A previsão da pesquisadora é que o soro esteja pronto para testes clínicos em cerca de seis meses.
Para Hisako, além das análises de proteínas, a parceria com a Unesp é fonte de grandes quantidades de veneno de abelha para produção de soro. A universidade mantém uma fazenda de abelhas sob responsabilidade do biólogo Osmar Malaspina, também do Ceis. Ele põe uma placa de vidro coberta com uma grade eletrificada na entrada das colméias. Quando as abelhas pousam, tomam um choque ao qual reagem ferroando o vidro. Não chegam a perder o ferrão e deixam uma gotícula de veneno. Com o método automatizado, de gota em gota Malaspina consegue veneno suficiente para produzir o soro. Depois de aprovado, o produto deverá ser distribuído por toda a rede pública. Palma ressalta que se trata de um empreendimento do governo, pois foi financiado pelas agências nacionais de fomento à pesquisa – FAPESP, CNPq e Finep – e produzido pelo Instituto Butantan, vinculado à Secretaria da Saúde de São Paulo.
O pesquisador da Unesp considera ter dado o primeiro passo bem-sucedido que lhe dá ímpeto para continuar. O soro que desenvolveu funciona contra abelhas brasileiras, mas ele já recebeu amostras de veneno de abelhas de outros lugares do mundo para testar se funciona contra outras subespécies de Apis mellifera, que existe em 75% do planeta. Se funcionar, Palma já imagina o Brasil como o maior produtor e exportador mundial de soro contra ferroada de abelhas.
O grupo não esquece que as abelhas levam a culpa por muitas ferroadas de vespas, que têm um veneno diferente e que não é neutralizado pelo soro contra abelhas. Com a colaboração de Malaspina, Palma selecionou as 12 espécies de vespas responsáveis por boa parte dos acidentes. O grupo de Rio Claro já está desmembrando o veneno das vespas em seus peptídeos e proteínas e busca produzir um soro que seja eficaz contra a ferroada de todas, tão nociva quanto a das abelhas.
Alergia
Além de dolorida e tóxica, a ferroada de uma única abelha pode causar uma reação alérgica capaz de matar de um minuto para o outro. Isso acontece porque o sistema imunológico responde ao veneno produzindo anticorpos chamados imunoglobulina E, ou IgE. Quando travam grandes batalhas contra uma dose de veneno, as IgE causam inchaço, coceira e, em algumas pessoas, até choque anafilático, que as impede de respirar e causa um desmaio súbito. Contra essa reação o soro não tem efeito.
Para combater um processo alérgico, é preciso identificar com exatidão a sua causa. Como na maior parte das vezes não se pode exigir observações científicas rigorosas de quem sofre o ataque, os postos de atendimento precisam de testes que identifiquem os alérgenos presentes no sangue do paciente. Já existem testes para detectar alérgenos de algumas vespas norte-americanas e européias, mas não são as mesmas espécies que há por aqui. Além disso, só as 51 espécies de vespas que existem no campus de Rio Claro já somam mais do que a biodiversidade européia e a norte-americana juntas. São cerca de 500 espécies no Brasil todo diante de cerca de 20 nos Estados Unidos e outras 20 na Europa.
O grupo coordenado por Palma pretende desenvolver testes que reconheçam pelo menos as espécies que mais causam acidentes no Brasil e disseminar o treinamento para reconhecer e tratar alergias a venenos de insetos. “Hoje a maioria dos que têm formação para isso passaram por treinamento conosco”, diz o imunologista e alergologista Fábio Castro, que está disposto a treinar mais profissionais Brasil afora. Ele e Palma já começaram a ampliar fronteiras: montaram o Grupo de Estudos de Novos Alérgenos Regionais (Genar), que pretende sistematizar uma rede de pesquisadores e profissionais da saúde para investigar e tratar alergias raras, como a alimentos regionais, sobre as quais se sabe muito pouco.
O sucesso do projeto é um exemplo de como a tecnologia científica – no caso a que permite examinar proteínas e peptídeos – rende resultados surpreendentes quando associada ao conhecimento da natureza. “As toxinas dos animais são verdadeiras fontes de inspiração”, diz Palma, que parte do comportamento dos insetos e das aranhas e da função das substâncias químicas na natureza para entender como agem e para que podem ser usadas.
O Projeto
Bioprospecção da fauna de artrópodes do estado de São Paulo para desenvolvimento de novos fármacos e pesticidas seletivos (nº 04/07942-2); Modalidade Programa Biota; Coordenador Mario Sergio Palma – Unesp; Investimento R$ 1.646.290,60 (FAPESP) e R$ 1.530.000 (CNPq e Finep)