Embora pareça estimular a produção de vasos sanguíneos na área próxima a uma lesão, o emprego de células-tronco adultas, obtidas do próprio paciente, não é capaz de produzir músculo cardíaco e, assim, reparar diretamente danos no coração de um infartado. Essa é a principal conclusão de um artigo publicado em 14 de abril na revista Science Translational Medicine. Nesse trabalho, o médico brasileiro José Eduardo Krieger, da Universidade de São Paulo (USP), e a pesquisadora Christine Mummery, da Universidade Leiden, na Holanda, fizeram uma ampla revisão de testes com animais e seres humanos envolvendo o uso de células-tronco adultas para reparar as lesões provocadas pelo infarto do miocárdio (a morte de parte do músculo cardíaco por falta de irrigação sanguínea), causa de 12% das mortes no mundo.
Em experimentos feitos em distintos países, Brasil inclusive, diferentes equipes de pesquisa injetaram na corrente sanguínea ou aplicaram diretamente na região danificada do coração milhões de células-tronco. A expectativa era de que essas células imaturas ocupassem o lugar das células mortas e, ao amadurecerem, assumissem sua função. “Melhoras promissoras da função cardíaca no curto prazo [observadas em animais] levaram ao uso de células-tronco derivadas da medula óssea em ensaios clínicos com seres humanos com infarto do miocárdio em velocidade e escala sem precedentes”, escreveram os pesquisadores. Mas, no longo prazo, os resultados não foram tão bons quanto se esperava. Embora os testes com seres humanos tenham mostrado que o implante de células-tronco adultas no coração é seguro, a melhora na capacidade de bombeamento de sangue em geral foi muito pequena: aumentou em média 3% – abaixo dos 5% considerados necessários para reduzir os sintomas e melhorar a taxa de sobrevida dos pacientes.
A constatação não leva os cientistas a descartarem por completo o uso clínico desse material biológico. Se não serve para reparar um coração lesionado, a injeção das células da medula, que aparentemente têm a capacidade de melhorar a vascularização do órgão, talvez contribua para prevenir problemas cardíacos em pacientes de alto risco, como obesos, que estão na iminência de ter um infarto.
Muitos dos estudos analisados por Krieger e Christine usaram células-tronco extraídas da medula óssea, tecido que preenche os ossos longos do corpo. Trabalhos publicados no início desta década sugeriam que essas células, depois de aderir ao coração, se transformariam em cardiomiócitos, células cardíacas que contraem e fazem o coração bombear o sangue para o resto do corpo. Mas estudos posteriores mostraram que as células-tronco se fundiam com os cardiomiócitos, em vez de se converter neles. Essa observação levou a uma nova interpretação dos resultados: a melhora não se daria pela substituição das células mortas, mas pela prevenção da morte celular após o infarto.
Segundo Krieger e Christine, é consenso hoje que a melhora na função cardíaca ocorre não pelo aumento do número de células contráteis, mas pelo fato de as células transplantadas secretarem compostos como os fatores de crescimento de vasos sanguíneos, que evitariam a morte das células na região do infarto – um efeito aparentemente produzido por células-tronco de origens distintas. “Estudos pré-clínicos vêm mostrando que diferentes tipos de células-tronco (derivadas do cordão umbilical, do tecido adiposo ou do sangue periférico) se comportam de modo semelhante às células extraídas da medula óssea implantadas diretamente no coração ou às que ali se instalam depois de injetadas na corrente sanguínea”, afirmam.
Sem integração
Testes in vitro indicam que os cardiomiócitos obtidos a partir de células-tronco extraídas de embriões ou obtidas pela reprogramação de células adultas de fato conduzem corrente elétrica, característica essencial para o controle dos batimentos cardíacos. Mas nem sempre se conectam como deveriam às células do coração. Experimentos com roedores revelaram que, em muitos casos, os cardiomiócitos derivados de células-tronco permaneciam separados das células cardíacas originais por um tecido fibroso. Segundo Christine e Krieger, suspeita-se que essa integração incompleta possa originar arritmias cardíacas.
Produzir novas células cardíacas ou evitar a morte das originais, porém, não é suficiente para manter o coração funcionando bem. Em parceria com pesquisadores da Califórnia, Krieger e Sérgio de Oliveira, ambos do Instituto do Coração (InCor), da USP, enfatizaram em publicações anteriores que a geometria do coração é importante para que o órgão mantenha sua capacidade de bombear sangue.
Com forma semelhante à de um ovo nas pessoas saudáveis, o coração pode assumir formato próximo ao de uma esfera em diversas doenças cardíacas. Essa deformação reduz a capacidade de bombear sangue e está associada a uma maior taxa de mortalidade dos pacientes. Segundo Krieger, para a reparação cardíaca, além de tecido viável para receber o transplante de células, é preciso manter ou recuperar a geometria do coração. “Essa questão da forma vem sendo subestimada não apenas quando se consideram as melhores estratégias clínicas como também na interpretação do resultado de estudos pré-clínicos feitos com pequenos roedores”, afirma Krieger, que defende a realização de mais estudos básicos e pré-clínicos antes que as células-tronco se tornem disponíveis para tratar seres humanos.
Na revisão da Science Translational Medicine, ele e Christine sugerem ainda que se desenvolvam novos modelos de experimentos com roedores a fim de permitir a avaliação do implante de células-tronco em diferentes estágios após o infarto. Também defendem a realização de testes com animais maiores – como o porco, que apresenta alterações cardíacas pós-infarto mais próximas às observadas em seres humanos – e estudos comparando o uso de diferentes tipos de células-tronco em diferentes doses em grandes animais.
Segundo Krieger, para ter impacto mais significativo no tratamento de pacientes infartados, as pesquisas terão de encontrar formas de gerar músculos cardíacos. As células-tronco da medula podem até ter um papel indireto na prevenção de lesões cardíacas, mas não apresentam esse potencial terapêutico. Por isso, os estudos que visam encontrar tratamentos eficazes para lesões no coração deverão se concentrar em três tipos de células-tronco, teoricamente mais promissoras do que as da medula, embora de uso ainda menos seguro e menos estudado: as células-tronco embrionárias, que, em tese, podem se transformar em quaisquer células, inclusive nas cardíacas; as células-tronco adultas, como as da pele, que poderiam ser reprogramadas para se comportar como células-tronco embrionárias ou células cardíacas já diferenciadas; e nas células-tronco cardíacas, que devem existir no coração. “Poderíamos retirar as células-tronco cardíacas do próprio paciente ou de um doador jovem, selecioná-las e ampliá-las”, comenta Krieger. “Essas são três avenidas para a pesquisa de longo prazo.”
MUMMERY, C.L. et al. Challenges in using stem cells for cardiac repair. Science Translational Medicine. v. 2 (27). 14 abr. 2010.