Na tarde da quarta-feira 11 de janeiro, os pesquisadores Frederico Casarsa de Azevedo e Carlos Humberto Moraes executavam uma tarefa pouco comum para neurocientistas. Cobriam uma estante de alvenaria com cartolina branca, para esconder a janela ao fundo, limpavam uma mesa de granito e removiam recipientes de vidro, pipetas e reagentes para uma bancada ao lado, já ocupada por mais vidros, pipetas e reagentes. Eles preparavam o laboratório chefiado pelo médico Roberto Lent na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) para uma sessão de fotos e filmagens. Desejavam registrar em detalhes o funcionamento de uma máquina que começaram a criar sete anos antes e que agora ficou pronta: o fracionador celular automático, que eles pretendem patentear. E o cenário não podia atrapalhar.
O equipamento de nome complicado e quase um metro de altura é uma espécie de triturador tamanho família. Tem motores elétricos que fazem girar a 400 voltas por minuto seis pistões plásticos presos a uma base móvel. Cada pistão funciona mergulhado em um recipiente de vidro contendo amostras de tecido cerebral banhadas em uma solução com detergente. Uma vez acionado o fracionador, seus pistões agitam o líquido incolor criando turbilhões que desfazem as amostras. Duas horas mais tarde, pedaços de tecido cerebral estão dissolvidos em uma mistura leitosa. É o que os pesquisadores apelidaram carinhosamente de suco de cérebro.
A máquina em teste no Laboratório de Neuroplasticidade do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da UFRJ é uma versão turbinada de um fracionador bem mais simples – um tubo e um pistão, ambos de vidro, acionados manualmente – que Lent e a neurocientista Suzana Herculano- Houzel usam desde 2004 para desmanchar pedaços de cérebro e contar suas células. Criada por eles próprios, essa técnica vem permitindo conhecer com mais precisão algo que já se imaginava sabido: quantos neurônios existem no cérebro e nos outros órgãos do encéfalo, que ficam abrigados no crânio.
Hoje se sabe, em parte graças ao trabalho do grupo do Rio, que há 86 bilhões de neurônios no cérebro humano, e não os 100 bilhões de que se falava anos atrás. Também se pode afirmar com mais segurança que esses neurônios estão acompanhados de 85 bilhões de células da glia, o outro tipo de célula que compõe o cérebro. Um número bem inferior ao trilhão anunciado antes.
Não são apenas detalhes. Verificar com mais exatidão quantas são e onde estão as células cerebrais é importante para compreender como o cérebro funciona e tentar conhecer as estratégias adotadas pela natureza para construir um órgão tão complexo que, no caso humano, permitiu surgir a mente autoconsciente. Também pode ajudar a identificar características que distinguem um cérebro normal de outro doente.
Mas olhar só para o número de células não é suficiente para desvendar um dos mais intrigantes e fascinantes órgãos do corpo. Hoje a neurociência considera o cérebro bem mais que uma coleção de neurônios, células que se comunicam por meio de eletricidade. Tão ou mais importante quanto o total de neurônios são as conexões efetivas que eles estabelecem entre si, criando redes que processam a informação de forma distribuída, segundo o neuroanatomista italiano Alessandro Vercelli, da Universidade de Turim. “O número, o padrão e a qualidade dessas conexões variam no espaço e no tempo”, conta Martín Cammarota, neurocientista da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, que estuda a formação e a evocação das memórias. “Ter mais neurônios ou menos neurônios não necessariamente torna um indivíduo mais inteligente que outro ou uma espécie mais inteligente que outra”, diz.
Apesar dessas considerações, os resultados que Suzana e Lent colecionam desde 2005 os levaram a questionar algumas ideias tidas como verdades absolutas a respeito da composição e da estrutura do cérebro. No ano passado, Lent considerou que os dados gerados pelo seu grupo e o de Suzana já eram consistentes o suficiente para serem consolidados em uma crítica mais direta. Com três pesquisadores de seu laboratório, ele escreveu a revisão publicada em janeiro no European Journal of Neuroscience na qual afirma que ao menos quatro conceitos básicos da neurociência precisam ser repensados.
O primeiro dogma discutido no artigo é o de que o cérebro humano e o restante do encéfalo têm, juntos, 100 bilhões de neurônios. Conhecido até por quem não é especialista, esse número circula em artigos científicos e livros didáticos há quase 30 anos. O próprio Lent tem um livro, publicado em 2001 e adotado em cursos de graduação, com o título Cem bilhões de neurônios.
A origem
Esse livro, a propósito, está de certo modo na origem das dúvidas que motivaram os pesquisadores da UFRJ a investigar quantas células há no cérebro. Pouco antes de seu lançamento, Suzana havia iniciado um estudo para avaliar o conhecimento de estudantes de ensino médio e universitário sobre neurociência. Uma das 95 afirmações que eles tinham de dizer se estava certa ou errada era: usamos apenas 10% do cérebro.
Quase 60% dos 2,2 mil entrevistados responderam que, sim, estava correta. Essa afirmação – incorreta, pois usamos todo o cérebro o tempo todo – decorre de outra, apresentada em 1979 pelo neurobiólogo canadense David Hubel, que recebeu o Nobel de Medicina ou Fisiologia em 1981. Hubel afirmava haver no cérebro 100 bilhões de neurônios e 1 trilhão de células da glia. Repetida em outras publicações, a informação se disseminou. Como os neurônios são as unidades processadoras de informação – e representariam só um décimo das células cerebrais –, concluiu-se que os outros 90% do cérebro não seriam usados quando se caminha, planeja uma viagem ou dorme.
O resultado incomodou Suzana, que buscou na literatura científica a fonte original desses números e não encontrou. Ela, que havia colaborado para o livro de Lent, levou a dúvida para ele: “Como você sabe que são 100 bilhões de neurônios?”. Ao que Lent respondeu: “Ora, todo mundo sabe, todo livro diz isso”. Muitos artigos e livros traziam a informação. Mas não diziam de onde a haviam extraído. “Eram dados aparentemente intuitivos que se consolidaram e as pessoas citavam sem pensar muito”, comenta Lent.
Um dos motivos pelo qual não se encontram facilmente esses números é que não é simples contar as células cerebrais. Além de ser um órgão grande – o cérebro humano tem cerca de 1.200 gramas e o encéfalo, 1.500 –, sua arquitetura é complexa. Áreas distintas contêm concentrações variadas de células e a técnica então disponível para contá-las, a estereologia, só funciona bem para regiões pequenas, com distribuição celular homogênea. Sua aplicação na contagem das células cerebrais gerava estimativas pouco confiáveis, que variavam até 10 vezes para algumas regiões e deixavam o cérebro humano com algo entre 75 bilhões e 125 bilhões de neurônios.
À época recém-contratada pela UFRJ, Suzana contou a Lent que tinha uma ideia “ousada e meio maluca” de como contar neurônios, mas não tinha laboratório. E ele a convidou para trabalharem juntos. A proposta de Suzana era simples: tornar homogêneas as regiões cerebrais antes de contar suas células. Como? Desmanchando as células.
A principal razão da heterogeneidade do encéfalo é que as células e o espaço que as separam variam de tamanho. Ao dissolver as células, a questão estaria resolvida, contanto que fosse possível preservar seus núcleos – a porção mais central, que abriga o DNA. Como cada célula cerebral possui um só núcleo, a conta fica simples. A soma dos núcleos daria o total de células. Corantes que marcam apenas os neurônios permitiram em seguida distingui-los de outras células cerebrais.
Usando compostos químicos que preservam as estruturas das células, Suzana conseguiu destruir apenas a membrana externa sem danificar o núcleo e, com Lent, descreveu a técnica em 2005 no Journal of Neuroscience. “É um método inteligente, simples e fácil de usar e replicar”, comenta Vercelli. “Eu me pergunto por que não pensei nisso antes.” Na opinião de Zoltan Molnar, neurocientista da Universidade de Oxford, na Inglaterra, foi um avanço importante. “A genômica, a transcriptômica e a proteômica são áreas quantitativas e acuradas que progrediram muito, enquanto nós, anatomistas, permanecemos na idade das trevas. Não desenvolvemos métodos que possam medir o número, a densidade e variações na arquitetura das células”, diz.
O primeiro teste foi com cérebros de ratos. O total de células do encéfalo foi 300 milhões, dos quais 200 milhões eram neurônios. Diferentemente do esperado, só 15% deles estavam no cérebro, a parte mais volumosa. A maior parte (70%) se encontrava em um órgão menor na região posterior do crânio: o cerebelo.
Era assim nos ratos. Mas e nas outras espécies? Suzana em seguida analisou o cérebro de outros cinco roedores (camundongo, hâmster, cobaia, paca e capivara). Como já se sabia, quanto maior o animal, maior o cérebro e o número de neurônios. O camundongo, com apenas 40 gramas, é o menor deles e tem 71 milhões de neurônios armazenados em um cérebro de 0,4 grama. Quase 1,2 mil vezes mais pesada, a capivara tem um encéfalo 183 vezes maior (76 gramas), mas só 22 vezes mais neurônios (1,6 milhão).
O cérebro humano
Sob a orientação de Suzana e Lent, o biólogo Frederico Azevedo fez a contagem das células em cérebros humanos. Antes, no entanto, teve de adaptar a técnica. “O que funcionava para os roedores não dava certo com humanos”, conta. Foram meses até descobrir que o problema estava na maneira de fixar o tecido antes de fracioná-lo. Quando o cérebro passava tempo demais mergulhado em compostos que evitam sua deterioração, o pesquisador não conseguia corar os neurônios para depois contá-los ao microscópio. Frederico fracionou à mão as amostras do cérebro de quatro pessoas (com idade entre 50 e 71 anos), cedidos pelo banco de cérebros da Universidade de São Paulo (USP). “Foi nessa época que comecei a pensar em uma forma de tornar esse trabalho automático”, diz o biólogo, que faz doutorado no Instituto Max Planck, na Alemanha.
A contagem das células revelou que o cérebro humano tem, em média, 86 bilhões de neurônios. Esse número é 14% menor que o estimado antes e próximo ao proposto em 1988 por Karl Herrup, da Universidade Rutgers. “Há quem diga que a diferença é pequena, mas discordo”, diz Suzana. “Ela corresponde ao cérebro de um babuíno ou a meio cérebro de um gorila, um dos primatas evolutivamente mais próximos dos seres humanos”, explica a neurocientista, chefe do Laboratório de Neuroanatomia Comparada do ICB-UFRJ.
Cauteloso, Lent comenta: “Não podemos afirmar que esses números são representativos da espécie humana. É provável que sejam representativos de adultos maduros.” Ou nem isso, já que foram analisados apenas quatro cérebros. Nos mais jovens também pode ser diferente. “Quem sabe indivíduos na faixa etária dos 20 anos não tenham 100 bilhões de neurônios, que perdem com o tempo?”, questiona o pesquisador. Seu grupo agora estuda o cérebro de pessoas mais jovens e compara cérebros de homens e mulheres. Enquanto não responde essa questão, Lent alterou o título da segunda edição de seu livro, publicada em 2010, para Cem bilhões de neurônios?, com um ponto de interrogação no final.
O cerebelo
Assim como nos roedores, a maior parte desses neurônios não está no cérebro, mas no cerebelo. O cérebro – mais especificamente o córtex cerebral, até pouco tempo atrás considerado o principal responsável por funções cognitivas como atenção, memória e linguagem – é a parte do encéfalo que mais se agigantou ao longo da evolução. No caso humano, tem 1.200 gramas e ocupa mais da metade do crânio, mas abriga apenas 16 bilhões de neurônios. Já o cerebelo, com seus 150 gramas, tem 69 bilhões.
Como então se explicam tamanhos tão diferentes para esses órgãos? A resposta é múltipla. Primeiro, o cérebro tem menos neurônios que o cerebelo, mas quase quatro vezes mais outros tipos celulares, como as células da glia. Essas células, antes consideradas apenas suporte físico dos neurônios, desempenham outras funções essenciais: auxiliam na transmissão dos impulsos, nutrem os neurônios e defendem o sistema nervoso central de microrganismos invasores. E, claro, ocupam espaço. Em segundo lugar, cérebro e cerebelo são formados por tipos diferentes de neurônios, que se conectam de modo distinto.
Com esse trabalho, o grupo do Rio constatou também que a evolução não privilegiou só o desenvolvimento do cérebro. Entre os mamíferos, a classe de animais a que pertencem os seres humanos, cérebro e cerebelo ganharam neurônios no mesmo ritmo. Esse resultado, segundo Vercelli, corrobora o de pesquisas indicando que o papel do cerebelo não se restringe ao controle dos movimentos. Ele é fundamental para o aprendizado, a memória, a aquisição da linguagem e o controle do comportamento e das emoções. “Cada vez mais se mostra que o cerebelo participa de processos que antes associávamos apenas ao córtex cerebral”, comenta Herrup, da Rutgers.
As estratégias
Desde que desenvolveu a técnica, Suzana já a aplicou para estudar o encéfalo de 38 espécies de mamíferos e verificou que, nos últimos 90 milhões de anos, a natureza adotou ao menos duas estratégias de construir cérebros. Uma para os roedores e outra para os primatas.
Nos roedores, o aumento no número de neurônios no encéfalo ocorre em escala logarítmica. De modo geral, à medida que o tamanho da espécie aumenta, o encéfalo se torna maior e o número absoluto de neurônios também. Mas quanto maior o roedor, proporcionalmente menos neurônios ganha. Já entre os primatas, que incluem macacos e seres humanos, o aumento é linear: o número de neurônios cresce proporcionalmente ao volume cerebral. “Houve uma transição abrupta entre os mamíferos inferiores, como os roedores, e os superiores, como os primatas”, comenta Vercelli. Essa mudança, segundo Lent, permitiu ao cérebro dos primatas agrupar mais neurônios num volume menor e acumular mais células que o dos roedores.
Esse padrão de desenvolvimento encefálico dos primatas levou Suzana e Lent a questionarem outra ideia em vigor há quase 40 anos: a de que o cérebro humano seria excepcionalmente grande. Em 1973 o paleoneurologista norte-americano Harry Jerison afirmou que nosso cérebro tinha sete vezes o tamanho esperado para o de um mamífero de 70 quilos. A neurocientista Lori Marino diria mais tarde que ele era grande até mesmo para um primata. Com 1.500 gramas, o encéfalo humano é o maior de todos os primatas – o gorila, o maior primata, pesa 200 quilos e tem um encéfalo de 500 gramas. Mas essa ideia parte do princípio de que o tamanho do corpo seria um bom indicador das dimensões do cérebro. Parece que não é.
Quando se deixa a massa corporal de lado e se analisa o número de células, nota-se que o cérebro humano não foge ao padrão dos primatas. “Nosso cérebro tem a quantidade de células esperada para um primata com esse tamanho”, afirma Suzana.
Com base nessa regra e no volume do crânio, Suzana e o neurocientista Jon Kaas, da Universidade Vanderbilt, nos Estados Unidos, publicaram em 2011 na Brain, Behavior and Evolution a estimativa do número de células cerebrais de outros nove hominídeos. Como era de esperar, a espécie que mais se aproxima da humana (Homo sapiens) em termos de número de neurônios é a dos neandertais (Homo neanderthalensis), que habitaram de 300 mil a 30 mil anos atrás a região onde hoje é a Europa. Eles teriam 85 bilhões de neurônios, segundo a estimativa de Suzana e Kaas. Com auxílio do bioan- tropólogo Walter Neves, da USP, Lent ampliou a projeção para outras espécies de primatas que integram a superfamília dos hominídeos e calcula que os neandertais podem ter tido 100 bilhões de neurônios.
Outro dogma em questão é o de que o total de células da glia supera em 10 vezes o de neurônios – origem da ideia de que só se usam 10% do cérebro. “Essa taxa elevada de células da glia era ensinada nos livros didáticos, embora experimentos já indicassem que a proporção era de 1 para 1”, conta Helen Barbas, da Universidade de Boston.
Mais do que o número de células da glia – são 85 bilhões nos seres humanos, mais concentradas no cérebro que no cerebelo –, o que mais surpreen- deu Suzana é o fato de que elas praticamente não sofreram mudanças morfológicas durante a evolução. O tamanho delas é quase constante entre os primatas, enquanto o dos neurônios varia 250 vezes. “O funcionamento das células da glia deve estar ajustado de modo tão fundamental que a natureza eliminou qualquer mudança que tenha surgido”, comenta.
Espera-se que mais resultados instigantes surjam à medida que a técnica brasileira se difunda. “Se for empregada amplamente, ela poderá simplificar o processo tedioso de contagem de células cerebrais”, diz Herrup. Talvez mais horas sejam poupadas se a versão turbo do fracionador for tão eficiente quanto se espera.
Artigos científicos
LENT, R. et al. How many neurons do you have? Some dogmas of quantitative neuroscience under revision. European Journal of Neuroscience. v 35. n. 1. jan. 2012.
HERCULANO-HOUZEL, S.; LENT, R. Isotropic fractionator: a simple, rapid method for the quantification of total cell and neurons in the brain. Journal of Neuroscience. v. 25. n. 10. p. 2.518-21. 9 mar. 2005.