De que forma os sistemas de ciência e tecnologia de nações emergentes, como Brasil, Rússia, Índia e China, podem ser comparados com os de países desenvolvidos, que têm uma comunidade científica mais consolidada? Um estudo feito por um grupo de pesquisadores da China, publicado no site da revista Scientometrics, mostrou que, apesar das notáveis diferenças entre as estruturas científicas dos chamados Brics e do grupo dos países mais ricos do mundo, o G7, o fosso que separa os dois blocos vem diminuindo. O trabalho, cujo autor principal é Li Ying Yang, da Biblioteca Nacional da Academia Chinesa de Ciências, analisou como as comunidades científicas desses países se distribuem em disciplinas e grandes campos do conhecimento, adotando como parâmetro artigos científicos publicados. Enquanto a produção científica dos países ricos apresenta certa homogeneidade e um equilíbrio entre as várias áreas do conhecimento, com as ciências da vida na liderança, os Brics têm uma estrutura mais heterogênea, sem uma identidade comum, e apresentam um predomínio de disciplinas como física, química, matemática e engenharias – exceção feita ao Brasil, que tem um perfil mais próximo dos países industrializados. Mas essa concentração decresceu nos últimos 20 anos – com os Brics se tornando cada vez mais equilibrados.
De acordo com Yang, a decisão de buscar um equilíbrio entre as disciplinas ou investir pesadamente em áreas estratégicas é sempre complexa e responde a necessidades particulares de cada nação. “As estruturas disciplinadas de cada país são influenciadas por fatores culturais, a história política e a geografia, além de serem afetadas pelo desenvolvimento científico e tecnológico”, observou o pesquisador. “No entanto, a experiência demonstra que uma estrutura assimétrica pode fazer mal para o desenvolvimento sustentado em ciência e tecnologia”, afirmou Yang, referindo-se à importância de manter uma comunidade científica interessada em todos os campos do conhecimento e preparada para enfrentar desafios científicos e tecnológicos futuros onde quer que eles apareçam.
O grupo chinês desenvolveu uma metodologia para comparar a estrutura de disciplinas na ciência do bloco dos Brics e na do G7. Os artigos publicados na base Web of Science, da empresa Thomson Reuters, nos anos 1991, 2000 e 2009 são a matéria-prima de sua análise. Esses artigos foram classificados segundo a lista de mais de 170 disciplinas do Journal Citation Reports, que é usado para avaliar revistas científicas. A metodologia, convém esclarecer, utiliza apenas o número de artigos, e não o de citações e/ou fatores de impacto. Trata, portanto, de volume, e não de qualidade. Da mesma forma, ignora o peso das colaborações internacionais. Cada artigo é creditado a apenas um país, aquele a que pertence o autor correspondente, responsável pelo envio do trabalho para publicação.
Foram calculados parâmetros como a porcentagem do número de artigos de um país em cada disciplina em relação ao número total de artigos do mesmo país, e também a porcentagem dos artigos de cada disciplina no mundo em relação ao total de artigos publicados mundialmente. A relação entre esses dois parâmetros deu origem a um indicador normalizado, o Índice de Atividade (AI), que mensurou o peso de cada disciplina no país em relação ao mundo e ajudou os pesquisadores a comparar as estruturas disciplinares das nações.
O artigo apresenta gráficos expressivos, como os que ilustram a abertura desta reportagem. Num deles, as disciplinas foram reagrupadas em quatro grandes áreas do conhecimento: ciências da vida; ciências agrárias; ciências da Terra, do meio ambiente e energia; e matemática, física, química e engenharias. Foram avaliadas as 10 disciplinas de maior proeminência em cada país, aquelas que apresentaram Índice de Atividade mais elevado. Embora tenham uma estrutura considerada balanceada, os Estados Unidos apresentaram um gráfico de apenas uma cor – todas as 10 disciplinas de maior peso são do campo das ciências da vida, como medicina e biologia. Já no caso da China e da Índia, as 10 pertencem ao campo da matemática, física, química e engenharias. O Brasil apresentou sete disciplinas em ciências da vida, uma em matemática, física, química e engenharias, e duas em ciências agrárias.
Por fim, para cada país, foi calculado o coe-ficiente de Gini na distribuição do peso das disciplinas, medido por meio do AI. O coeficiente de Gini é utilizado para medir desigualdades. Quando inferior a 0,3, os autores consideram que a estrutura disciplinar é balanceada. Quando excede 0,4, consideram que a estrutura é assimétrica e polarizada. A evolução do coeficiente de Gini entre 1991 e 2009 foi capaz de mostrar com acuidade como cada país está mudando. Os Brics estão em um franco processo de redução da concentração e de busca do equilíbrio. O Brasil, por exemplo, tinha um coeficiente de 0,568 em 1991, considerado polarizado, mas esse índice caiu para 0,389 em 2009, na faixa de equilíbrio. O mesmo ocorreu com a Índia, que caiu de 0,471 para 0,360, e a China, que foi de 0,568 para 0,395. A Rússia foi uma grande exceção. O coeficiente de Gini permanece estacionado na casa dos 0,64 desde 1991. O investimento em disciplinas no campo da matemática, física, química e engenharias, que remontam aos tempos da Guerra Fria, ainda segue prevalente. Os Estados Unidos elevaram ligeiramente seu coeficiente de Gini, de 0,182 em 1991 para 0,229 em 2009. Na França, a desigualdade caiu – coeficiente foi de 0,297 para 0,158. “O mundo desenvolvido está estacionado, enquanto nós estamos mudando”, diz Hernan Chaimovich, vice-presidente da Academia Brasileira de Ciências, professor aposentado do Instituto de Química da Universidade de São Paulo e assessor da Diretoria Científica da FAPESP.
Se a tendência de equilíbrio entre as áreas do conhecimento é uma evidência animadora, os dados suscitam uma discussão sobre qual seria a sintonia fina mais desejável entre as disciplinas – embora o modelo bem-sucedido de um país não necessariamente seja adequado para outra nação. “Nos Estados Unidos há um forte debate sobre a perda relativa de espaço, nos últimos anos, das disciplinas do campo das engenharias, com queda inclusive do número de alunos de graduação, mas não é possível afirmar que essa discussão serve para os demais países”, afirma Rogério Meneghini, coordenador científico da biblioteca eletrônica SciELO. No caso do Brasil, a falta de engenheiros já é apontada como um gargalo para o crescimento econômico sustentado (ver Pesquisa FAPESP nº 149). Segundo Meneghini, o país, ao contrário dos demais Brics , tem uma tradição em disciplinas das ciências da vida. “Isso remonta ao início do século XX, com grandes cientistas como Carlos Chagas e Oswaldo Cruz, que foram influenciados fortemente pela pesquisa que era feita na Europa. Já a China, a Índia e a Rússia não sofreram essa influência”, diz. Ele cita como exemplo os estudos da genética na extinta União Soviética, que ficaram embotados durante boa parte do século passado devido à influência no país do biólogo ucraniano Trofim Lysenko (1898-1976), que renegava a genética mendeliana.
Para Hernan Chaimovich, o debate sobre essa sintonia fina no Brasil é relevante, mas ainda secundário. “O número de cientistas no país ainda é pequeno quando se compara com a média dos países desenvolvidos. Precisamos aumentar o número de cientistas em todas as áreas”, afirma. A questão fundamental, segundo Chaimovich, é o fato de a qualidade da pesquisa brasileira não aumentar na mesma proporção da produção científica. “Quantidade e qualidade precisam crescer juntos. Temos de criar estratégias que favoreçam isso”, diz o professor, que cita como exemplo a estratégia da FAPESP em estimular a internacionalização da ciência brasileira, financiando projetos de pesquisa em colaboração com instituições de outros países.
Embora os países desenvolvidos exibam uma estrutura mais consolidada, é um engano imaginar que formem um monolito. Outro estudo publicado on-line na mesma revista Scientometrics em março, assinado por Peter Schulz e Edmilson Manganote, professores do Instituto de Física Gleb Wataghin, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), mostra que o chamado “modelo ocidental”, em que há predominância da pesquisa médica e biomédica, apresenta, na verdade, uma série de nuanças. Estados Unidos e Reino Unido, de fato, seguem um padrão muito semelhante, com a medicina respondendo por um quarto da produção científica, mas nos países da Europa continental a distribuição é diferente, com uma participação um pouco maior de física e química – e a medicina variando de 18% (Espanha) a 30% (Áustria). “O modelo ocidental divide-se claramente em dois subgrupos”, diz Peter Schulz.
Os pesquisadores da Unicamp basearam sua análise nos perfis de países divulgados pelo Science Watch, da Thomson Reuters, que ranqueia a produção científica de cada país (incluindo citações) acumulada em aproximadamente 10 anos nos 22 principais campos do conhecimento. Com base nesses dados, os brasileiros propuseram um novo indicador, o índice de perfis de países (CPI, na sigla em inglês), também com o objetivo de comparar a estrutura disciplinar das nações. “O artigo dos chineses utilizam uma metodologia mais sofisticada. No nosso caso usamos inicialmente dados abertos, pensando em criar uma ferramenta de análise destinada a um público menos especializado em cienciometria, mas agente importante nas tomadas de decisão no território científico”, explica Schulz. O CPI também mostra a heterogeneidade no perfil dos Brics e indica que o perfil de publicações do Brasil se assemelha mais ao da Argentina e do México, com predomínio da medicina clínica, química, física, botânica e zoologia – e as ciências agrárias ocupando um espaço superior ao da média mundial (4% do total da produção brasileira). Coreia do Sul, Taiwan e Japão formariam outro bloco claramente definido, com um papel mais proeminente das engenharias (ver gráficos). “A estrutura disciplinar pode ser correlacionada com as estratégias de desenvolvimento econômico de cada país, como apontamos brevemente para os casos dos tigres asiáticos e países dos Brics”, diz Schulz.
Tanto o estudo chinês como o brasileiro sugerem uma mudança do perfil disciplinar do Brasil, tornando-o cada vez mais próximo do modelo ocidental. Manganote, da Unicamp, alerta para um viés nesses dados, que foi a inclusão recente de várias publicações científicas brasileiras na base Web of Science. Havia apenas 26 revistas brasileiras nessa base de dados em 2006. Hoje elas são mais de uma centena. “O espectro das publicações brasileiras indexadas na base de dados WoS se expandiu a partir de 2007. Mas esse conjunto ainda não corresponde, certamente, à realidade brasileira. Provavelmente algumas áreas, como ciências agrárias, negócios e economia, ainda estão encobertas pela incompletude da base utilizada”, diz, referindo-se à produção brasileira ainda não indexada internacionalmente. Outro viés importante, dizem os pesquisadores da Unicamp, diz respeito ao baixo peso das ciências humanas e sociais na estrutura disciplinar de vários países, inclusive europeus, que seria resultado do fato de a produção científica nessas áreas não estar representada em revistas indexadas no Web of Science, mas em publicações regionais e livros. “Discutimos em nosso artigo como a base de dados WoS não fornece um retrato totalmente fiel da estrutura disciplinar de um país”, diz Peter Schulz.
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