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biologia molecular

Previsões otimistas

Pesquisadores apostam no surgimento de um fármaco nacional eficiente contra o mal de Chagas em médio prazo

023_chagas_esp50-01Um bom candidato a fármaco contra a centenária doença de Chagas poderá surgir em quatro anos, segundo uma visão otimista dos pesquisadores do Centro de Biologia Molecular Estrutural – um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) da FAPESP.

“Se um dia existir um medicamento eficiente contra a doença de Chagas, ele será feito a partir de uma tecnologia que é 100% nacional”, afirma Adriano Andricopulo, um dos coordenadores do centro da USP de São Carlos.

O caminho tem muito obstáculos, e os bons resultados obtidos nos últimos anos não são garantia de que o tempo previsto para a chegada do fármaco será realmente curto.

Apesar de vários avanços no conhecimento biológico do problema nas últimas décadas, o comportamento do Trypanosoma cruzi ainda impõe grandes desafios aos cientistas que se debruçam sobre o mal.

O estágio atual das pesquisas para domar o parasita que causa a doença reforça a importância de um casamento entre a biologia molecular estrutural, no campo da ciência básica, e a química medicinal para o desenvolvimento de novos fármacos, do lado da chamada ciência aplicada.

Desde os anos 1970, quando as pesquisas moleculares começaram com mais ênfase, poucos avanços no campo prático ocorreram. Fármacos foram descobertos. Mas eles, até hoje, são considerados bastante tóxicos. Os remédios no mercado também não funcionam para a fase crônica da doença, a que mais preocupa os responsáveis pelos setores da saúde. A maior parte do pacientes registrados hoje está neste grupo.

Dentro dos laboratórios, o processo é tentar identificar as proteínas que possam ser vitais para a proliferação da doença. Depois de conhecida esta etapa, então, será preciso tentar desligar bioquimicamente este mecanismo. O que, na prática, poderá cessar a infecção causada pelo parasita.

Entre todas as proteínas-alvo testadas pela equipe de São Carlos, a cruzaína, até agora, mostrou-se a mais promissora. Ela tem importância vital para o T. cruzi. As pesquisas mostram que a proteína tem a ver, por exemplo, com a replicação do parasita. Desestruturá-la, então, pela ação de um composto químico, pode ser uma forma eficiente de controle da doença. Números da Organização Mundial da Saúde (OMS) mostram que 18 milhões de pes-soas têm Chagas. A maioria deste contingente está na América Latina.

Depois de a pesquisa básica mostrar que o candidato a fármaco realmente atinge o alvo já validado pelos pesquisadores, é que novos desafios serão vencidos. Um fármaco, para ser usado do ponto de vista clínico, precisa ser absorvido, metabolizado e distribuído no organismo. Ele precisa agir tanto em nível molecular quanto em escala sistêmica. Ou seja, matar realmente o T. cruzi. E não provocar, junto, a intoxicação do paciente.

A importância da biologia molecular nas pesquisas de Chagas está sedimentada desde os anos 1970, quando avanços importantes neste campo começaram a ocorrer porque os grupos de pesquisa paulistas passaram a focá-lo com bastante ênfase. O objetivo desse olhar voltado mais ao nível molecular era tentar barrar a proliferação de protozoários dentro das células hospedeiras, no caso, humanas.

Projetos e programas de pesquisa voltados ao tema começaram a ser criados e incentivados pelos órgãos de fomento, como a FAPESP. Os resultados científicos gerados nas bancadas dos laboratórios paulistas desde aquela época podem ser divididos em dois grandes grupos, de acordo com o médico Walter Colli, professor titular do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP) e um dos protagonistas da história da pesquisa sobre Chagas no país nestas últimas quatro décadas.

“No Brasil, o enfoque molecular começou a ser dado realmente em São Paulo, nos anos 1970. O Trypanosoma cruzi é um modelo para estudos biológicos. Nesse período, houve muita evolução no campo da pesquisa básica. Mesmo assim, estamos muito longe de ter um conhecimento completo da biologia do cruzi”, afirma, convicto, o cientista.

A busca pelo entendimento de como a relação entre parasita agente transmissor e hospedeiro ocorre gerou muito conhecimento em pesquisa básica ao longo dos anos, diz Colli. Além de formar muitos profissionais qualificados nas áreas da bioquímica e da genômica, principalmente. Um olhar mais molecular para o problema sucedeu a visão morfológica, que era antes predominante.

O próprio grupo de Colli, no Instituto de Química da USP, acabou, indiretamente, contribuindo para a descoberta de uma molécula nova, que acabou totalmente conhecida em 1979. A doutoranda Maria Júlia Manso Alves chegou à estrutura a partir de achados do próprio grupo. Ela demonstrou que o cruzi era repleto de açúcares em sua forma. O pesquisador Michael Ferguson, da Escócia, repetiu o trabalho. E depois comunicou aos brasileiros que as âncoras proteicas que ele começara a estudar tinham propriedades muito parecidas com a molécula descrita no Brasil. O encontro de informações contribuiu para a identificação das âncoras. Estruturas glicolipídicas que prendem as proteínas às membranas.

As descobertas no campo molecular, que cresceram ainda mais depois de as técnicas genômicas ficarem mais sólidas, paradoxalmente, dificultam o avanço no segundo grande grupo, o da biologia aplicada. As pesquisas básicas vêm mostrando que o T. cruzi é muito complexo. Por isso, combatê-lo, dentro da célula, é um desafio e tanto.

Uma informação instigante, diz Colli, decifrada nas últimas décadas, é de como o protozoário lê as informações contidas em seu DNA. Na maioria dos seres vivos, a transcrição (processo em que o RNA é feito a partir da fita de DNA) é onde ocorre a regulação gênica. Mas, no caso do causador do mal de Chagas, estudos feitos em vários grupos de pesquisa, como os da equipe do Instituto de Biologia Molecular do Paraná, vinculado à Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), indica algo diferente. Grande parte da regulação da expressão gênica do T. cruzi ocorre depois da transcrição. O que seria um mecanismo novo de síntese de proteína a partir do DNA.

Vários grupos concordam que essa diferença importante entre o protozoário e outros seres vivos no campo molecular pode ser uma ferramenta poderosa que explicaria boa parte do sucesso do parasita em invadir as células de seus hospedeiros.

A investigação minuciosa da genética do T. cruzi é algo que pode contribuir bastante, explicam os pesquisadores, para o avanço das pesquisas em biologia aplicada. Muitos defendem que este caminho, na verdade, é o grande atalho para combater o parasita e a sua invasão.

Saber que o sistema de leitura do DNA até a síntese de proteína, por exemplo, é diferente no protozoário causador de Chagas em relação aos seres humanos tem uma grande importância. Fármacos que venham interferir em um dos processos não devem, em tese, atrapalhar o outro.

O caminho do desenvolvimento de compostos mais certeiros, trilhado, por exemplo, pelo grupo de São Carlos, é o mais viável para os próximos anos, diz Colli. A explicação para isso é o avanço das pesquisas em genética molecular, área do conhecimento biológico em franca expansão.

O cientista Carlos Chagas sobre as águas do rio Negro, em expedição à Amazônia (1913)

Fundação Oswaldo Cruz O cientista Carlos Chagas sobre as águas do rio Negro, em expedição à Amazônia (1913)Fundação Oswaldo Cruz

Uma outra possibilidade, o desenvolvimento de vacinas contra Chagas, já foi praticamente descartada pela comunidade científica. “Não vai ser possível, por essa via, obter uma imunização 100%. Existe uma questão de logística. Em quem aplicar, por exemplo, a vacina? Em todos os 190 milhões de brasileiros?”

Como a transmissão pelo inseto barbeiro praticamente acabou, diz Colli, não se tem um público-alvo bem delimitado para receber a vacina. A forma de transmissão ativa hoje é por meio da ingestão de alimentos contaminados pelas fezes do barbeiro. Os últimos casos, por exemplo, estiveram relacionados com o consumo de garapa (caldo de cana) ou de açaí. Mas, neste caso, todos precisariam ser vacinados. “E não há, também, como medir a eficiência desta vacina.”

Se os estudos sobre vacinas são escassos (nenhum grupo científico dedica 100% do seu tempo a isso hoje), o desenvolvimento de novos fármacos também é bastante complexo, por causa da falta de verbas para este tipo de pesquisa.

O mal de Chagas faz parte das chamadas doenças negligenciadas. Como a maioria das pessoas com a doença é de países ou regiões pobres, sem poder aquisitivo para comprar medicamentos caros, a própria indústria farmacêutica não faz investimentos maciços neste campo da saúde pública.

Estimativas indicam que um medicamento, para ser colocado na praça, custa para uma empresa algo ao redor de US$ 1 bilhão. E o tempo para ele ficar pronto é algo em torno de 20 anos. Outros dez anos devem se passar até o remédio começar a dar retorno comercial. Ninguém, diz Colli, está disposto a fazer isso no caso do mal de Chagas. A maioria das pesquisas em biologia aplicada neste campo, nos últimos anos, é feita a partir de instituições sem fins lucrativos, que investem grande quantidade de dinheiro a fundo perdido.

A busca de medicamentos mais eficazes para adultos é apenas parte do problema. Remédios para crianças, por exemplo, que sejam seguros, também são raros. Mas, em nível sul-americano, a própria transmissão da doença, da forma tradicional, via barbeiro, ainda é um realidade em várias regiões. O pior caso é na Bolívia, onde cerca de dez mil casos novos são registrados a cada ano. Mesmo no Brasil, existem indícios de que a doença pode estar se instalando em algumas regiões da Amazônia.

A aproximação do ser humano de áreas vegetadas é que fez surgir a doença, como ocorreu no interior de Minas Gerais.

A descoberta da relação entre parasita e hospedeiro é do início do século passado. Na época, na distante Lassance, no interior de Minas Gerais, o médico Carlos Chagas (1879-1943) elucidou o mecanismo do mal que leva seu nome. Ele concluiu o estudo em 14 de abril de 1909 (o artigo da publicação científica é de 22 de abril do mesmo ano), descoberta considerada até hoje a mais importante feita por um cientista brasileiro.

Ao contrário de outras doenças transmitidas por insetos, como a dengue ou a malária, no caso de Chagas não é a picada do transmissor o problema principal. O protozoário que causa o mal entra na corrente sanguínea dos seres humanos por meio das fezes. Ao coçar a pele, por causa da picada, as fezes contaminadas entram em contato com a ferida. O T. cruzi vive no intestino do barbeiro. No ser humano, ele vai atacar principalmente órgãos vitais, como o coração e o fígado.

A doença pode matar na sua fase aguda. Ou então arrastar-se por décadas e causar problemas crônicos significativos nas pessoas. Nem sempre ela mata. O caso emblemático de Berenice Soares de Moura mostra bem isso. Carlos Chagas descreveu toda a doença com base em amostras de sangue retiradas de Berenice, quando ela tinha dois anos de idade. A mulher, que vivia em um ambiente rural quando criança, morreu aos 74 anos, de isquemia cerebral.

As estimativas indicam que, ainda hoje, cerca de 5 milhões de brasileiros sofrem de Chagas. Na América do Sul, o número sobe para 12 milhões a 13 milhões de doentes. No berço da descoberta científica da doença de Chagas, por exemplo, centenas de casos são detectados todos os anos. Não é que a transmissão esteja ativa. Mas são casos antigos, que começam a aparecer agora.

Depois de o ciclo da doença ficar conhecido, as formas de combater a doença passaram a ser mais ou menos delineadas. Ficou claro que eliminar o barbeiro, para cortar a transmissão por completo, seria certamente o método mais eficaz de frear o mal. Ou então, por meio da biologia dos agentes envolvidos, impedir que o protozoário saísse do intestino do barbeiro para invadir as células hospedeiras humanas poderia ser outra boa estratégia de combate ao mal de Chagas.

O projeto
Centro de Biologia Molecular Estrutural (nº 1998/14138-2) (2000-2012); Modalidade Programa Centros de Pesquisa (Cepid); Coordenador Glaucius Oliva – IFSC/USP; Investimento R$ 28.449.954,27

Artigos científicos
DIAS, L. C. et al. Quimioterapia da Doença de Chagas: Estado da Arte e Perspectivas no Desenvolvimento de Novos Fármacos. Química Nova. v. 32, p. 2444-57, 2009.
BALLIANO, T. et al. Kinetic and Crystallographic Studies on Glyceraldehyde-3-Phosphate Dehydrogenase from Trypanosoma cruzi in Complex with Iodoacetate. Letters in Drug Design & Discovery. v. 6, p. 210-14, 2009.

De nosso arquivo
O parasita discretoEdição nº 188 – outubro de 2011
Livre do barbeiro, não de ChagasEdição nº 151 – setembro de 2008
Reprodução desvendadaEdição nº 118 – dezembro de 2005
Identidades reveladasEdição nº 76 – junho de 2002

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