Daniel KondoPesquisas recentes indicam que a perda da capacidade de regular adequadamente processos inflamatórios, desencadeados por diferentes formas de estresse físico ou mental, pode ser um dos fatores associados à ocorrência e à manutenção de um quadro de depressão em certas pessoas. Há também indícios preliminares de que pacientes cujo sangue apresenta altos índices de proteínas ligadas à ativação excessiva do sistema imunológico respondem de maneira menos adequada – quando respondem – aos remédios usualmente empregados contra esse problema psiquiátrico. Os fatores listados como possíveis causas de uma desregulação do sistema imunológico vão desde os conhecidos eventos traumáticos, como a morte de um parente próximo ou a notícia de uma doença grave, até hábitos ligados ao estilo de vida, caso da falta de exercícios físicos e da obesidade.
Em um trabalho publicado em janeiro deste ano na revista Translational Psychiatry, a equipe da bioquímica brasileira Livia A. Carvalho, do Departamento de Epidemiologia e Saúde Pública do University College London (UCL), constatou que 44 de 47 genes ligados à resposta anti-inflamatória apresentavam um padrão elevado de ativação no tipo mais comum de leucócitos, as células brancas de defesa do organismo, de pacientes com depressão severa que não tomavam medicamentos. Dois genes associados aos receptores de glicocorticoides (cortisol), hormônios importantes para regular o funcionamento do sistema imunológico e a resposta ao estresse, se mostraram pouco ativos nas pessoas com problemas psiquiátricos. O estudo comparou a expressão dos genes em 47 pessoas com depressão e 42 indivíduos saudáveis. “É possível que cerca de 30% dos casos de depressão estejam ligados a processos que envolvam uma inflamação pequena, mas crônica”, diz Livia. Essa inflamação pode alterar o estado mental de algumas pessoas mais suscetíveis porque provocam, entre outras alterações, modificações na produção de neurotransmissores, como a serotonina, importantes para o bem-estar cerebral.
Outro artigo recente da pesquisadora sugere que algumas pessoas com o sistema inflamatório excessivamente requisitado são pouco beneficiadas pelo uso de antidepressivos. Ela e colegas ingleses mediram os níveis de cortisol e de vários tipos de citosinas, pequenas proteínas que estimulam ou inibem a resposta inflamatória do organismo, no sangue de 19 pacientes com depressão que não se beneficiavam adequadamente do tratamento médico e de 21 pessoas sem problemas psiquiátricos. Os resultados do trabalho, que ganhou as páginas do Journal of Affective Disorders no final de 2012, indicam que as pessoas continuamente deprimidas apresentam concentrações mais elevadas de cortisol e de citosinas que estimulam a resposta do sistema imunológico. Talvez seja por isso, diz Livia, que os antidepressivos sejam pouco eficazes para minorar os sintomas de depressão em certos indivíduos.
O grupo da brasileira radicada em Londres é um dos que mais têm se dedicado a pesquisar se a inflamação é um dos mecanismos pelos quais o estresse psicológico desencadeia diversos tipos de doença, como depressão, problemas cardiovasculares e processos ligados ao envelhecimento precoce. Mas obviamente não é o único. Embora a esquizofrenia seja o foco central dos trabalhos de Daniel Martins de Souza, do Departamento de Bioquímica do Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas (IB-Unicamp), alguns de seus estudos mais recentes do proteoma (o conjunto de proteínas produzido por um organismo) tiveram como foco a depressão. Esses trabalhos também sugerem que moléculas fundamentais para o processo de inflamação parecem ter um papel importante em modular a eficácia ou não dos medicamentos contra a depressão.
Em artigo publicado em fevereiro deste ano no periódico Biological Psychiatry, Souza mostra que as proteínas integrina (fundamental para a resposta inflamatória) e ras (produzida por gene associado a certos tipos de câncer) apresentaram níveis mais elevados em pacientes com depressão que não melhoraram após terem sido tratados com antidepressivos do que em pessoas que se beneficiaram do uso dos medicamentos. “Estamos procurando marcadores biológicos que possam indicar se o paciente vai responder ou não ao tratamento”, afirma Souza, que retornou ao Brasil no início de 2014 após ter trabalhado por dois anos no Departamento de Psiquiatria da Ludwig Maximilians Universität (LMU) e ter sido colaborador no Instituto Max Planck de Psiquiatria, ambos em Munique.
O trabalho analisou as concentrações de 1.919 proteínas presentes nos leucócitos de 20 pacientes com depressão crônica que participavam de um estudo tocado pelas instituições alemãs. Os níveis das moléculas foram medidos no momento em que os pacientes deram entrada no hospital da universidade e após terem recebido antidepressivos por seis semanas. Cerca de 30 proteínas apresentaram níveis distintos antes e depois de as pessoas começarem a ser medicadas. Entre as pessoas que melhoraram sua condição psiquiátrica com a medicação, os pesquisadores viram que a concentração da maioria das proteínas diminuiu depois de 42 dias de tratamento. O oposto ocorreu com os indivíduos que não responderam ao tratamento com antidepressivos. Nesses pacientes, os níveis das proteínas se elevaram. “Nossos dados sugerem que os antidepressivos afetam processos biológicos similares nas pessoas que respondem e nas que não respondem ao tratamento, mas em direções opostas”, diz Souza, que toca um projeto de Jovem Pesquisador financiado pela FAPESP na área de neuroproteômica e doenças psiquiátricas.
Além de entender o papel dos processos inflamatórios no desencadeamento da depressão, trabalhos como os de Livia, Souza e de outros pesquisadores perseguem também o objetivo de encontrar marcadores moleculares que indiquem se uma pessoa deprimida tende a melhorar se tomar antidepressivos. “O ideal era termos um teste de sangue que mostrasse se o paciente vai reagir ao tratamento”, diz Livia, que, desde 2008, investiga se citosinas inflamatórias, como a interleucina 6, podem ser esse marcador. Estudos feitos no UCL indicam que essa substância, produzida em situações de perigo e de estresse e capaz de alterar o funcionamento do cérebro, apresenta níveis elevados em pacientes com depressão. “Alguns trabalhos sugerem até que a interleucina 6 pode ser útil para prever quem desenvolverá quadros de depressão no futuro”, afirma a pesquisadora.
Outra molécula que pode ser útil para prever a eficácia do uso de antidepressivos é o fibrinogênio, proteína fundamental para a coagulação do sangue. Um estudo recente de Souza, também feito quando ainda estava na Alemanha, detectou concentrações mais altas dessa proteína em pacientes que não responderam ao tratamento do que nos que responderam. “Encontramos um candidato a marcador para a resposta ao uso de antidepressivos”, afirma Souza. “Como dois terços dos pacientes não respondem às primeiras tentativas de tratamento, seria ótimo identificar os que têm níveis altos de fibrinogênio e pensar em terapias alternativas.” Se uma resposta imunológica exacerbada pode ser uma das causas de problemas psiquiátricos, combater a inflamação pode ser uma abordagem complementar ao emprego de antidepressivos. Por isso há estudos que testam até o emprego da aspirina ou de dietas anti-inflamatórias, como a mediterrânea (rica em vegetais, frutas, azeite e com pouca carne vermelha), como terapias suplementares contra a depressão.
Estresse, sono e envelhecimento
Uma das vantagens dos trabalhos de Livia na Inglaterra é contar com um grupo de mais de 10 mil pessoas de meia-idade e idosos cujo estado de saúde, inclusive o psiquiátrico, vem sendo acompanhado por pesquisadores do University College London. Trata-se do estudo epidemiológico Whitehall II. Esse contingente de homens e mulheres, que tinham entre 35 e 55 anos de idade no início do estudo, forneceu subgrupos de pacientes que permitiram à pesquisadora brasileira e seus colegas ingleses realizar uma série de estudos relacionando estresse/inflamação à depressão e também a outras doenças.
Um desses trabalhos recentes, publicado em março deste ano na revista Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS), mostra que homens saudáveis, com idade entre 54 e 76 anos, expostos a estresse psicológico contínuo – com poucos amigos, pessimistas diante da vida e personalidade agressiva – apresentam telômeros menores e produzem uma forma menos funcional da enzima que repara essa estrutura celular. A redução no tamanho dos telômeros, que protegem a ponta dos cromossomos, é interpretada como um indicador do processo de envelhecimento celular. Telômeros menores são um sinal de degradação biológica. “O estresse psicológico parece acelerar o processo de envelhecimento, em parte por desencadear uma inflamação crônica”, afirma Livia. Há dois anos, em outro artigo no mesmo periódico, Livia e colegas já haviam mostrado que homens que dormiam cinco ou menos horas por dia apresentavam telômeros 6% menores do que os que tinham sete horas diárias de sono. Em ambos os trabalhos as alterações nos telômeros não foram encontradas nas mulheres que participaram dos estudos. Isso talvez se deva ao fato de as mulheres, devido a suas peculiaridades hormonais, responderem ao estresse de forma diferente dos homens.
Boa parte dos trabalhos que relacionam depressão a diferentes formas de inflamação é feita em adultos de meia-idade ou idosos. Livia se associou recentemente a grupos de pesquisa de universidades brasileiras para estudar esse tema em populações mais jovens e de perfil distinto. A equipe da pediatra Heloisa Bettiol, professora da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, mediu os níveis de 42 citosinas, ligadas ao processo inflamatório, em um grupo de 1.400 gestantes que já vinham sendo acompanhadas pelos pesquisadores da universidade. Um dos objetivos é ver se mães com altos índices de proteínas inflamatórias teriam maior propensão a ter depressão durante a gravidez ou após o parto. “Ainda estamos tabulando os dados e em breve teremos dados sobre essa questão”, diz Heloisa.
A professora Kênia Mara Baiocchi de Carvalho, da Universidade de Brasília (Unb), aproveitou os trabalhos regionais de um grande estudo nacional sobre a saúde dos adolescentes de 12 a 17 anos, o projeto Erica, para analisar a presença de proteínas ligadas à inflamação no sangue de 1.400 jovens da capital federal. “Não aplicamos um teste para ver se eles estavam deprimidos, mas algumas perguntas feitas no estudo podem nos dar uma ideia de se os adolescentes estavam submetidos a estresse psicológico”, diz Kênia. Como no caso de Heloisa, os dados ainda estão sendo analisados. Mas, se tudo der certo, novas informações sobre possíveis ligações entre estresse/inflamação e depressão na população brasileira devem ser divulgadas.
Projeto
Desenvolvimento de um teste preditivo para medicação bem-sucedida e compreensão das bases moleculares da esquizofrenia através da proteômica (nº 13/08711-3); Modalidade Programa Jovem pesquisador; Pesquisador responsável Daniel Martins de Souza (IB-Unicamp); Investimento R$ 926.108,49 (FAPESP).
Artigos científicos
CARVALHO, L.A. et al. Inflammatory activation is associated with a reduced glucocorticoid receptor alpha/beta expression ratio in monocytes of inpatients with melancholic major depressive disorder. Translational Psychiatry. 14 jan. 2014.
SOUZA, D.M. et al. Blood mononuclear cell proteome suggests integrin and ras signaling as critical pathways for antidepressant treatment response. Biological Psychiatry. 6 fev. 2014.