Imprimir PDF Republicar

ENGENHARIA ESPACIAL

Gravidade zero

Etanol e oxigênio líquido compõem combustível de foguete suborbital desenvolvido no Brasil

Foguete suborbital VSB-30

Léo RamosFoguete suborbital VSB-30Léo Ramos

A expectativa é alta nas instalações do Instituto de Aeronáutica e Espaço (IAE), braço de pesquisa do Departamento de Ciência e Tecnologia Aeroespacial (DCTA), localizado em São José dos Campos, no interior de São Paulo. O órgão, vinculado ao Ministério da Defesa, planeja lançar no segundo semestre deste ano quatro foguetes suborbitais, que ultrapassam 100 quilômetros de altitude num voo em forma de parábola e propiciam ambiente de microgravidade. O primeiro a ir ao espaço, o veículo de sondagem VS-30, terá como carga útil o chamado Estágio Propulsivo de Foguete a Propelente Líquido (EPL), um conjunto composto pelo primeiro motor-foguete produzido no país a empregar combustível líquido e seu respectivo sistema de alimentação. Esses dois equipamentos, de elevado conteúdo tecnológico, são essenciais para que o país avance no domínio da tão almejada tecnologia de veículos lançadores de satélite. O combustível líquido a ser testado no foguete brasileiro apresenta um aspecto inovador: é formado por uma mistura de etanol feito a partir da cana-de-açúcar e oxigênio líquido, o que inclui o Brasil entre as nações que contribuem para a inovação tecnológica sustentável no setor aeroespacial.

A campanha de lançamento do VS-30/EPL, batizada de Operação Raposa, está prevista para começar em 12 de agosto no Centro de Lançamento de Alcântara (CLA), situado a 30 quilômetros de São Luís, a capital maranhense. Se tudo ocorrer como programado, o foguete deverá ser lançado ao espaço depois de três semanas, no início de setembro. Além dele, o IAE planeja lançar ainda este ano o veículo suborbital VS-40M. Esse foguete, projetado no início dos anos 1990, lançará no espaço o Satélite de Reentrada Atmosférica (Sara), que abrigará uma série de experimentos em microgravidade. Nessa condição, é possível realizar vários tipos de experimentos científicos destinados, por exemplo, a conhecer melhor a estrutura de proteínas para criar novos medicamentos. Com a ausência de gravidade, os cristais de proteínas ficam maiores porque na Terra o crescimento deles é limitado. Conhecendo melhor a estrutura das proteínas que fazem parte de um parasita é possível desenvolver fármacos mais eficazes contra várias doenças. Na microeletrônica, a microgravidade propicia o preparo mais fácil do silício ultrapuro para estudos de semicondutores.

Foguete sonda IV, em São José dos Campos

Léo RamosFoguete sonda IV, em São José dos CamposLéo Ramos

O último lançamento, previsto para o segundo semestre, do qual estão sendo preparados dois foguetes, é do tipo VSB-30, um bem-sucedido veículo suborbital construído em parceria com o Centro Aeroespacial Alemão (Deutsche Zentrum für Luft- und Raumfahrt, ou DLR, na sigla em alemão). Dotado de dois propulsores, o VSB-30 fez seu voo inaugural há 10 anos, em outubro de 2004. Desde então já foram lançados com sucesso 14 foguetes.

Grupo seleto
“O Brasil tem um programa consistente de desenvolvimento de foguetes suborbitais. Esses veículos espaciais de baixo custo são ideais para a realização de pesquisas científicas da atmosfera e da ionosfera e para o estudo de novos materiais e de processos em ambientes de microgravidade”, afirma o pesquisador e chefe da subdiretoria de espaço do IAE, coronel Avandelino Santana Júnior. “Esses foguetes também ajudam na formação de recursos humanos para a área espacial e têm se mostrado o objeto ideal para a manutenção de programas de cooperação com instituições estrangeiras de pesquisa desse setor.” Desde o início de suas atividades, no fim dos anos 1960, quando ainda era chamado de Instituto de Atividades Espaciais, o IAE já desenvolveu sete diferentes modelos de foguetes suborbitais: Sonda II, Sonda III, Sonda IV, VS-40, VS-30, VS-30/Orion e VSB-30. Esse feito insere o país no seleto grupo de nações que dominam a tecnologia de fabricação desses veículos, ao lado de Estados Unidos, França, China e Inglaterra. O emprego de um propelente líquido à base de etanol (ou álcool etílico) para mover os seus motores é, segundo Santana Júnior, mais um avanço na área. “Até onde temos conhecimento, é inédito o uso de etanol como combustível líquido em veículos desse gênero.”

O desenvolvimento do Motor L5, movido a etanol e oxigênio líquido (LOX), é fruto de um programa de pesquisa em propulsão líquida iniciado no IAE há cerca de 15 anos. Seu objetivo final é movimentar foguetes orbitais, empregados para colocar satélites no espaço, com um combustível líquido mais seguro do que o propelente à base de hidrazina, um líquido corrosivo e tóxico, que precisa ser importado. O etanol e o oxigênio líquido, por sua vez, são menos agressivos ao ambiente, mais fáceis de manusear e emitem baixo nível de fuligem. O L5 foi concebido e projetado pelo IAE com recursos da Agência Espacial Brasileira (AEB), enquanto o sistema de alimentação do motor-foguete (Samf) foi desenvolvido pela Orbital Engenharia, empresa de São José dos Campos, e viabilizado por meio de recursos públicos de aproximadamente R$ 2 milhões da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep). Um passo importante rumo ao lançamento do Estágio Propulsivo de Foguete a Propelente Líquido (EPL) foi dado em dezembro de 2013. Os engenheiros do IAE e da Orbital realizaram com êxito um teste em solo do modelo de voo desse estágio. Na ocasião, verificou-se que todos os componentes do sistema funcionaram conforme esperado. O ensaio consistiu da queima em um banco de prova do motor L5 integrado ao sistema de alimentação, equipamento responsável por armazenar e injetar a mistura de etanol e oxigênio líquido no motor.

Depois do sucesso do ensaio em solo, o conjunto de propulsão líquida precisa ser testado numa operação real de voo – e esse é o objetivo da Operação Raposa. No lançamento programado para o início de setembro, o VS-30/EPL irá decolar movido por um estágio propulsor dotado de combustível sólido. Vinte e quatro segundos depois do lançamento, esse motor se desprenderá da carga útil – no caso, o EPL, que sofrerá ignição. O motor L5 converterá a energia química contida no combustível armazenado nos tanques – etanol e oxigênio líquido – em uma força propulsora para gerar um impulso de cinco quilonewtons, energia suficiente para empurrar um bloco de cinco toneladas.

Movida pelo propelente líquido, a carga útil descreverá uma trajetória parabólica, própria dos foguetes suborbitais, até cair no mar. A missão será considerada exitosa se tanto o sistema de alimentação do motor-foguete quanto o motor L5 funcionarem perfeitamente em voo. “Estamos confiantes de que o lançamento será um sucesso”, diz o engenheiro do IAE Eduardo Dore Roda, gerente das linhas de foguetes VS-30 e VSB-30. “O propelente líquido permite uma queima controlada, o que é ideal para foguetes lançadores de satélites. O último estágio desses veículos normalmente utiliza propulsão líquida, que permite controlar a inserção do foguete em órbita”, diz ele. Segundo Roda, o domínio dessa tecnologia em motor-foguete de pequeno porte, como o VS-30, é um estágio significativo na direção do desenvolvimento de motores maiores. Os foguetes orbitais completam pelo menos uma trajetória inteira ao redor da Terra em altitude acima de 100 quilômetros.

O sucesso da linha de foguetes suborbitais do IAE tem extrapolado as fronteiras do país. Das 14 missões já realizadas com o modelo VSB-30, 11 partiram do Centro de Lançamento de Esrange, situado a 200 quilômetros do Círculo Polar Ártico, próximo à cidade de Kiruna, na Suécia – as outras três missões partiram de Alcântara, no Maranhão. O projeto desses veículos nasceu no início dos anos 2000. “Eles foram fabricados em conjunto com o Centro Aeroespacial Alemão para atender a uma demanda do Programa Microgravidade da Agência Espacial Europeia (ESA). Até aquela época, o DLR utilizava foguetes britânicos Skylark para enviar seus experimentos ao espaço, mas a produção do veículo seria descontinuada e os alemães precisavam de um veículo que o substituísse”, revela o engenheiro Eduardo Roda. O VSB-30 foi projetado para levar uma carga útil de 400 quilos a 260 quilômetros de altitude, com tempo de microgravidade superior a seis minutos. O voo dos foguetes suborbitais é de curta duração e durante alguns minutos ele se encontra em condição de microgravidade. Nesse breve período, uma série de experimentos científicos pode ser executada.

Lançamento do VSB-30 V14 em novembro de 2011, no campo de Esrange, na Suécia

Swedish Space Corporation (SSC) Lançamento do VSB-30 V14 em novembro de 2011, no campo de Esrange, na SuéciaSwedish Space Corporation (SSC)

Até o momento, as agências espaciais do Brasil, Suécia, Noruega e Alemanha, além da própria ESA, já fizeram lançamentos com o VSB-30. Mais dois veículos serão lançados em outubro e novembro deste ano a partir do Centro de Lançamento de Andoya, na Noruega, e um terceiro deverá ser lançado do Brasil em 2015, no âmbito do Programa de Microgravidade da Agência Espacial Brasileira. “O foguete de sondagem é uma alternativa barata para a realização de experimentos científicos em ambiente de microgravidade. E o VSB-30, um veículo suborbital com dois estágios a propulsão sólida, é um foguete muito bem-sucedido”, afirma.

A cooperação entre o IAE e o DLR alemão remonta a 1969, quando o Centro de Lançamento da Barreira do Inferno (CLBI), no Rio Grande do Norte, foi usado para o lançamento de experimentos científicos do Instituto Max Planck para Física Extraterrestre, da Alemanha. A cooperação se fortaleceu nos anos seguintes e redundou na construção do VSB-30, produzido integralmente no IAE e com 70% de seus componentes fornecidos por parceiros comerciais brasileiros. “O acordo entre o IAE e o DLR para o desenvolvimento comum de um foguete de sondagem de dois estágios com base no motor S30 já existente no Brasil surgiu em 2000. Quatro anos depois, em 23 de outubro de 2004, o VSB-30 concluiu com sucesso o seu voo de qualificação”, relembra o coronel Avandelino Santana Júnior.

Há dois anos, o DLR empregou em suas missões outro foguete suborbital nacional, o VS-40M, mais potente do que o VSB-30. Dotado de dois estágios propulsivos e capaz de transportar uma carga útil de 500 quilos a 640 quilômetros de altitude, o VS-40M levou ao espaço o experimento hipersônico alemão de reentrada atmosférica Shefex II (Sharp Edge Flight Experiment). Esses experimentos avaliam, entre outros objetivos, o comportamento de materiais usados na construção de veículos espaciais tripulados quando submetidos às severas condições de reentrada na atmosfera terrestre.

Lançamento do VSB-30 V16 em abril de 2012, do campo de Esrange, na Suécia

Thilo Kranz (DLR)Lançamento do VSB-30 V16 em abril de 2012, do campo de Esrange, na SuéciaThilo Kranz (DLR)

Sistema inercial
A reentrada é também um dos objetivos do Sara, fabricado no IAE e que será lançado do Centro da Barreira do Inferno em novembro deste ano, a bordo do VS-40M, na Operação São Lourenço. O satélite é uma plataforma espacial para experimentos em ambiente de microgravidade, destinado a operar a 300 quilômetros de altitude por, no máximo, 10 dias. Depois desse período, o Sara fará sua reentrada na atmosfera e cairá no oceano Atlântico, de onde será recuperado para avaliação dos experimentos levados ao espaço. “Entre os vários experimentos a bordo do Sara, vale destacar o teste de um sistema inercial, que, no futuro, deverá equipar o VLS-1”, afirma o engenheiro Nelson Snellaert Tavares, gerente do projeto do VS-40M. Esses sistemas de orientação são responsáveis pelo guiamento do veículo.

Equipado com dois propulsores com propelente sólido, o VS-40 fez seu voo inaugural em 1993. Ele foi concebido com o propósito de testar em voo o funcionamento, no vácuo, do motor S44, similar ao quarto e último estágio do VLS-1 – o outro propulsor do VS-40, batizado de S40, equivale ao terceiro estágio do VLS-1. Cinco anos depois, uma segunda unidade do foguete foi lançada de Alcântara. Devido ao bom desempenho desses dois voos, o IAE concluiu que o veículo poderia ser aplicado para experimentos em ambiente de microgravidade e ser mais um dentre os foguetes de sondagem desenvolvidos pelo órgão. “Em 2008, o DLR mostrou interesse pelo foguete. Apesar de naquela época o VS-40 já ser um veículo muito confiável, fizemos modificações e melhoramos sua segurança de operação, de montagem e de integração. Daí, ele passou a ser denominado VS-40M, uma versão modificada da original”, diz Tavares.

A missão inaugural do VS-40M aconteceu em 22 de junho de 2012, quando foi lançado do Centro de Lançamento de Andoya, na Noruega, levando a bordo o experimento Shefex II, avaliado em € 7 milhões. “A missão atingiu plenamente os seus objetivos”, diz o gerente do projeto VS-40M. Segundo o engenheiro Nelson Tavares, os alemães já demonstraram interesse em adquirir um novo foguete e o IAE também foi sondado por uma empresa internacional do setor aeroespacial interessada em uma unidade do veículo. “Já estamos pensando em melhorias e otimizações futuras a fim de tornar o VS-40M ainda mais competitivo do ponto de vista comercial para órgãos e empresas que necessitem de vetores para voos suborbitais e em ambiente de microgravidade”, diz ele.

Republicar