Em cinco municípios do Ceará, alguns distantes entre si quase 300 quilômetros, há macacos infectados com o vírus zika. Pesquisadores paulistas e cearenses identificaram o vírus em amostras de soro, mucosa oral e saliva de quatro saguis e três macacos-prego habituados ao convívio com seres humanos, encontrados nas áreas urbana e rural de Fortaleza, Limoeiro do Norte, Quixeré, São Benedito e Guaraciaba do Norte.
Os sete animais infectados representam 29% dos 24 macacos cujo material biológico foi analisado pelos pesquisadores nos últimos meses – cerca de outras 30 amostras devem ser testadas nas próximas semanas. “Esta é a primeira vez que o vírus zika é encontrado em primatas do Novo Mundo”, afirma a bióloga Silvana Favoretto, pesquisadora do Instituto Pasteur de São Paulo e do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP). Silvana e outros seis pesquisadores de São Paulo que integram a Rede Zika, consórcio de laboratórios paulistas que investigam o vírus, descreveram o achado em um breve artigo depositado em 20 de abril no repositório bioRxiv.
O zika foi isolado pela primeira vez em 1947, a partir do sangue de um macaco rhesus (Macaca mulatta) monitorado em uma floresta de Uganda para acompanhar a circulação do vírus da febre amarela. O macaco rhesus integra um grupo de primatas chamados catarrinos, que têm as narinas bem próximas e voltadas para baixo, o mesmo ao qual pertencem os chimpanzés, gorilas e também os seres humanos.
Agora o vírus foi encontrado no Ceará em saguis-de-tufo-branco (Callithrix jacchus) e macacos-prego (Sapajus libidinosus), macacos classificados como platirrinos, primatas com narinas voltadas para os lados. Estima-se que platirrinos e catarrinos tenham compartilhado um ancestral comum entre 37 milhões e 34 milhões de anos atrás. Depois disso cada grupo evoluiu separadamente.
A identificação do zika em primatas das Américas preocupa por uma questão de saúde pública. É que existe um risco de esses animais se tornarem o que os pesquisadores chamam de reservatório silvestre do vírus. Uma vez infectados, eles poderiam manter o vírus em circulação na natureza e, de tempos em tempos, voltar a disseminá-los entre os seres humanos – algo semelhante ao que acontece com a febre amarela em algumas regiões do Brasil.
Por ora, no entanto, isso é apenas uma suposição. Os animais do Ceará identificados com o vírus viviam próximos aos seres humanos. Segundo Silvana, no Nordeste é comum ver saguis visitando os quintais das casas. Também é frequente as pessoas terem saguis e macacos-prego como animais de estimação. “Esses animais são dóceis quando bebês e se tornam mais arredios e, às vezes, agressivos depois que crescem”, ela conta. Por causa dessa proximidade, a pesquisadora suspeita que os macacos tenham sido infectados por mosquitos que picaram pessoas com zika.
“Essa também é minha aposta princi-pal no momento”, diz o primatólogo Júlio César Bicca-Marques, professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). “Se o vírus for encontrado posteriormente em animais silvestres sem contato com o homem, minha interpretação poderá mudar”, consente o pesquisador gaúcho que anos atrás acompanhou um surto de febre amarela silvestre que atingiu os bugios do sul do país. Na época, segundo Bicca-Marques, as pessoas imaginavam que os macacos estavam disseminando a doença e passaram a persegui-los. Bicca-Marques e Silvana temem que agora se inicie o mesmo tipo de perseguição com os saguis e os macacos-prego. “Nossos resultados mostram que lugar de animal silvestre não é preso no quintal, mas solto na natureza, onde os ciclos das infecções acontecem sem prejuízo para as pessoas”, diz Silvana.
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Curiosidade e sorte
Os dois pesquisadores reconhecem que, por ora, quase nada se sabe sobre a ação do vírus zika em primatas não humanos – em especial os do Novo Mundo. “Não sabemos, por exemplo, se adoecem, se os filhotes podem nascer com microcefalia nem quanto tempo o vírus permanece no organismo deles”, conta Silvana. Ela e a veterinária Danielle Araujo, também do Pasteur e do ICB-USP, encontraram concentrações baixas de zika nos saguis e macacos-prego infectados.
A identificação do vírus nesses animais ocorreu por uma combinação de curiosidade e sorte. No ICB-USP, Silvana coordena o Núcleo de Pesquisa em Raiva e há quase duas décadas estuda a doença no Ceará em parceria com a secretaria estadual da Saúde de lá. Causada por um vírus altamente letal para os seres humanos, a raiva tem um ciclo silvestre nesse estado do Nordeste em que um dos reservatórios, identificado tempos atrás por Silvana, é o sagui-de-tufo-branco.
No início deste ano, ao analisar a distribuição dos casos de zika e microcefalia no Ceará, a bióloga verificou que alguns deles coincidiam com as áreas de coleta de amostras do material biológico dos macacos e decidiu testá-las para a presença do zika. “Encontramos amostras positivas para zika em animais que viviam no litoral, em área de caatinga e na região serrana, onde a vegetação é mais densa”, diz a pesquisadora. “Isso mostra que a presença do vírus é disseminada por lá.”
Depois de detectar o zika em algumas amostras, o material genético do vírus foi isolado e sequenciado no Laboratório de Virologia Clínica e Molecular da USP e analisado pelos virologistas Paolo Zanotto e Edison Durigon. O resultado confirmou que o zika encontrado nos animais é o mesmo que infecta os seres humanos no país e pode levar ao nascimento de bebês com problemas neurológicos e o cérebro anormalmente pequeno – do final de 2015 a 23 de abril deste ano, o Ministério da Saúde identificou 1.198 casos de microcefalia, com o zika detectado em 194 deles.
Silvana planeja fazer novas expedições ao Ceará em breve e retornar às cidades em que os animais com zika foram identificados para tentar recapturá-los (eles foram marcados com chips). Se os macacos continuarem a apresentar cópias do vírus no organismo, será um sinal de que podem funcionar como reservatório. “Caso isso se verifique, o zika terá mesmo vindo para ficar, uma vez que não se consegue erradicar doenças que têm reservatório silvestre”, diz Silvana. “Quando muito”, completa, “pode-se controlá-las”.
Projeto
Raiva em silvestres terrestres da região Nordeste do Brasil: Epidemiologia molecular e detecção da resposta imune (nº 2014/16333-1); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisadora responsável Silvana Regina Favoretto (Instituto Pasteur); Investimento R$ 296.307,41.
Artigo científico
FAVORETTO, S. et al. First detection of Zika virus in neotropical primates in Brazil: a possible new reservoir. bioRxiv. 20 abr. 2016.