Quem já ouviu o insistente canto do sabiá-laranjeira durante os dias, ou em horas inusitadas das madrugadas de primavera nas cidades brasileiras, há de ter percebido as notas repetidas incansavelmente. Uma possível explicação para os aspectos repetitivos desse canto acaba de surgir do estudo do cérebro de outro passarinho: o mandarim (Taeniopygia guttata), uma espécie muito usada em experimentos comportamentais em laboratório. Um dos tipos de células da complexa e adaptável rede neuronal responsável pelas manifestações vocais em pássaros canoros se mantém estável nos mandarins, de acordo com artigo publicado em outubro na Nature Neuroscience.
“O canto dos adultos tem repetições praticamente idênticas umas às outras”, explica o neurocientista Tarciso Velho, professor no Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e um dos autores do estudo. “Isso faz desses animais um modelo ideal para o estudo da relação entre a atividade neuronal e o comportamento.” O grupo, coordenado pelo físico norte-americano Timothy Gardner, da Universidade de Boston, nos Estados Unidos, analisou a ação de dois grupos de neurônios em uma área específica do cérebro responsável pelo controle do canto, conhecida como HVC. Os neurônios inibitórios têm uma ação intensa local, dentro do HVC. A hipótese vigente é de que quando a atividade deles diminui, outro tipo de célula neuronal, os neurônios excitatórios, entra em ação e ativa uma cadeia de neurônios que controla a musculatura ligada à produção do canto.
O mistério quanto à estabilidade vocal vem da plasticidade que caracteriza o núcleo cerebral que controla o canto. No cérebro do pássaro, e em algumas áreas do de mamíferos, há um processo constante em que algumas células morrem enquanto novas são geradas. Além disso, mesmo em uma população estável de células, as conexões entre elas podem passar por rearranjos. Essas alterações na conectividade neuronal são interpretadas como as bases neurais do aprendizado, um processo no qual o sono parece exercer um papel importante. “Quando registramos imagens durante o canto, observamos que a atividade dos neurônios excitatórios variava de um dia para o outro, com células entrando e saindo do conjunto que participava da produção do canto, de maneira que os participantes da atividade neural não eram sempre os mesmos”, explica Velho. Mas apesar desse cenário dinâmico, o canto permanece estável. O segredo parece estar nas células inibitórias: nos experimentos feitos em Boston, sua atividade variou pouco (ver infográfico). Isso parece ser responsável pela constância de um atributo central ao reconhecimento dentro da espécie, sem o qual as fêmeas teriam mais dificuldade de encontrar seus pares reprodutivos.
A cabeça por dentro
Esses resultados foram possíveis graças a minúsculos equipamentos desenvolvidos por Gardner. “Se o pássaro fica preso, ele não canta”, explica Velho. “Precisamos deixá-lo solto na gaiola, com aparelhos que não atrapalhem a sua movimentação.” Atendendo a essa necessidade, os pesquisadores implantaram eletrodos no cérebro dos passarinhos para monitorar as células inibitórias por vários meses. Ainda mais impressionantes são microscópios miniaturizados pesando menos de 2 gramas. Produzidos com o auxílio de uma impressora 3D, esses microscópios foram implantados no cérebro dos pássaros e permitiram detectar a fluorescência emitida pela atividade das células excitatórias graças a uma proteína inserida por meio de vírus para funcionar como sensor de cálcio – elemento central à atividade elétrica dos neurônios. “Ambos os métodos permitiram fazer registros do cérebro em aves que estavam acordadas, se comportando e movimentando livremente”, afirma Gardner.
Para o físico norte-americano, o comportamento distinto que essas técnicas detectaram nos dois tipos de células é o que está por trás da estabilidade do canto. Mesmo que a atividade de cada neurônio excitatório varie, eventuais falhas são compensadas pela ação de células vizinhas, que tendem a disparar simultaneamente. “Essa redundância sugere que, se uma célula deixa de funcionar, outra poderá desempenhar um papel semelhante e manter a estabilidade da rede e, consequentemente, o resultado motor”, analisa. O estudo mostrou também que a ação local das células inibitórias é o que modula o funcionamento dessa rede. “Neurônios individuais poderiam otimizar sua atividade dentro de uma estrutura maior que permanece imutável por anos.”
Com seus comportamentos previsíveis e inalterados na vida em gaiola imposta pela condição de cobaia de laboratório, os mandarins são os queridinhos de pesquisadores concentrados em compreender o desenvolvimento vocal – um comportamento aprendido, repetitivo e estereotipado. Gardner defende que eles podem contribuir ainda para a elucidação de aspectos da fala humana. “Redes neurais no cérebro de mamíferos precisam resolver problemas semelhantes”, diz. “Seria interessante investigar se esses programas motores são controlados e mantidos de maneira parecida.” Dizem que uma vez que se aprende a andar de bicicleta, nunca mais se esquece. Resta saber se mecanismos envolvendo neurônios inibitórios e excitatórios podem estar por trás desse tipo de capacidade motora de longa duração.
Artigo científico
LIBERTI III, W. A. et al. Unstable neurons underlie a stable learned behavior. Nature Neuroscience. On-line. 10 out. 2016.