O declínio da indústria de papel, associado a progressos em tecnologia de materiais, colocou em cena um novo ator, que tem despertado interesse empresarial: a nanocelulose. A celulose em escala nanométrica (para ser considerada como tal, ao menos uma das dimensões precisa ter menos de 100 nanômetros, ou nm) pode ter formato de nanofibrilas ou nanocristais. As primeiras têm a forma de espaguete e são facilmente entrelaçáveis, destinadas preferencialmente ao reforço de embalagens plásticas. Já os nanocristais de celulose, que medem de 5 a 20 nm de largura e de 100 a 500 nm de comprimento, têm a aparência de arroz e são considerados um material mais nobre porque podem ter carga elétrica na superfície e propriedades químicas, ópticas e eletrônicas. Esse novo material é caracterizado por uma estrutura cristalina nanométrica existente no interior de qualquer fibra vegetal.
Extraídos da celulose, matéria-prima da fabricação do papel, os nanocristais podem ter origem em madeira de reflorestamento, mas também em sobras de madeira, bagaço de cana, cascas de coco e de arroz, resíduos da produção de óleo de soja e de palma (dendê). Os nanocristais são de origem renovável, leves e biodegradáveis, levando vantagem sobre outros materiais sintéticos – muitas vezes originários de derivados de petróleo. São várias as potenciais aplicações: no reforço de materiais plásticos e de cimento, em sensores da indústria de petróleo e gás, em curativos especiais e próteses, em tintas, revestimentos, cosméticos e, com acréscimo de outras substâncias, na indústria eletroeletrônica. Não existem, por ora, produtos comerciais fabricados com os nanocristais: a ainda incipiente produção mundial desse material é destinada a clientes que possam desenvolver aplicações e criar mercados.
O Brasil tem investido nesse material promissor, adquirindo participação em empresas estrangeiras produtoras de nanocristais. Em 2013, a Granbio, empresa brasileira de biotecnologia industrial, adquiriu 25% da American Process Inc. (API), dos Estados Unidos. A API anunciou, em 2015, uma nova tecnologia de baixo custo para extração de nanocelulose a partir de biomassa e iniciou a produção em fase pré-comercial. A Granbio, uma das duas companhias no país que detêm a tecnologia para fabricar etanol de segunda geração a partir do bagaço de cana (ver Pesquisa FAPESP nº 235), investiu na API para ter acesso à tecnologia de pré-tratamento de biomassa. Em comunicado, a empresa brasileira declarou que investe em pesquisa e desenvolvimento (P&D) de nanocelulose há quatro anos e atua, por meio de sua afiliada API, em uma planta nos Estados Unidos. As amostras de nanocelulose produzidas são ofertadas para potenciais clientes.
A Fibria, empresa brasileira líder mundial na venda de celulose de mercado, passou em novembro de 2016 a ser sócia da canadense CelluForce, primeira produtora comercial de nanocristais de celulose. A Fibria investiu cerca de US$ 4 milhões, adquirindo 8,3% de participação no capital da CelluForce, startup da FPInnovations, centro de pesquisas do setor florestal canadense. A FPInnovations (antiga Pulp and Paper Research Institute of Canada) é detentora da primeira patente referente à produção de nanocristais de celulose, concedida em 1997. Além da FPInnovations, fazem parte do capital da empresa a também canadense Domtar, produtora de celulose e papel, e a Schlumberger, de origem francesa, maior fabricante de sistemas e equipamentos para a indústria de petróleo. Formada em 2010, a CelluForce inaugurou sua planta-piloto em Montreal, Quebec, em 2012. Hoje com capacidade de produzir 300 toneladas por ano, sua produção também é destinada a amostras fornecidas a potenciais clientes.
Para Vinicius Nonino, diretor de Novos Negócios da Fibria e agora integrante da diretoria da CelluForce, já se sabe que os nanocristais serão úteis em setores como papel, cimento e produtos medicinais. Essas aplicações, que ainda precisam ser desenvolvidas para cada setor, segundo Nonino, poderão significar uma importante diversificação dos negócios da Fibria. A empresa tem os direitos de produção no país e de distribuição dos nanocristais em toda a América Latina. Tanto a Celluforce como a Fibria serão inicialmente fornecedoras de matéria-prima. A Fibria prevê montar uma fábrica-piloto para produção de nanocristais de celulose no seu Centro de Tecnologia em Aracruz (ES), ainda em 2017.
O novo material tem despertado interesse como substituto de matérias-primas já utilizadas e como base para elaboração de novos produtos. Estimativas indicam que o preço dos cristais de nanocelulose poderá ser mais do que 20 vezes o da celulose. Segundo estudo realizado pela consultoria norte-americana Market Research Store, o mercado de nanocelulose foi de US$ 65 milhões em 2015. A empresa avalia que esse valor subirá para US$ 530 milhões em 2021, um aumento de 30% ao ano.
Interesse da indústria
O primeiro artigo científico sobre a produção de cristais de nanocelulose foi publicado no começo dos anos 1950 pelo químico sueco Bengt Rånby, do Royal Institute of Technology (KTH). Com forte tradição na indústria de papel e celulose, os suecos inauguraram em 2011 a primeira planta-piloto mundial de extração de nanofibrilas de celulose, do instituto de pesquisa Innventia. O uso de nanocelulose para reforçar materiais como papel, compósitos e plásticos já despertava o interesse da indústria, mas o processo de extração demandava muita energia, inviabilizando o processo.
A Holmen AB, empresa sueca de papel e celulose, tornou-se acionista principal da empresa israelense Melodea, desenvolvedora de um processo industrial para a extração de nanocristais de celulose do lodo resultante da fabricação de papel. A empresa pesquisa o uso desse material em espumas sem nenhum tipo de componente plástico e como forma de aumentar a resistência de embalagens, papéis, colas acrílicas e tintas. Em uma parceria da Melodea com a Holmen AB, o Instituto Rise (iniciativa do governo sueco na área de inovação que reúne o Innventia e outros institutos) e o MoRe Research (empresa sueca de P&D para a indústria florestal) estão construindo a primeira planta-piloto de nanocristais de celulose na Europa, a 500 quilômetros de Estocolmo, na Suécia.
No Canadá, outro país com forte tradição na indústria de papel e celulose, além da CelluForce, a empresa Blue Goose Biorefineries vende por US$ 1 mil o quilograma (kg) de nanocristal na forma de um gel claro e quase transparente. Os compradores são empresas e instituições de pesquisa que testam a matéria-prima em várias situações e produtos. A fábrica da empresa, na cidade canadense de Saskatoon, fabrica 35 kg por semana de nanocristais a partir de produtos com alto teor de celulose, como polpa de árvores, papel reciclado, línter do algodão (penugem que fica presa ao caroço) e fibras de linho.
A Blue Goose desenvolveu um processo nanocatalítico oxidativo que exige menos produtos químicos e, portanto, seria ambientalmente mais favorável para transformar a biomassa em um cristal de dimensões nanométricas. Nanocristais são produzidos atualmente por hidrólise ácida (separação das fibras da madeira até extração da celulose e da forma nanocristalina), na maioria das vezes com ácido sulfúrico, mas também com ácido fosfórico ou ácido clorídrico.
Um dos gargalos da área de P&D é a produção de peças de nanocelulose com maior dimensão: passar a produzir eficientemente o material em metros, e não em centímetros, de forma a permitir a análise de suas características mecânicas e funcionais e a avaliação de seus benefícios e usos como produto final. A Melodea e o MoRe Research colaboram em um projeto para transformar protótipos de filmes, papéis e espumas feitas em pequenas dimensões em laboratório, com nanocristais e nanofibrilas de celulose, em produtos prontos para o mercado. Sob a coordenação do KTH, em Estocolmo, e com a participação de universidades suecas e da Processum, empresa de P&D de biorrefinarias, deverão ser produzidos na fábrica-piloto em construção, na Suécia, nanocristais, nanofibrilas e seus produtos.
Na equipe de pesquisadores do projeto está a brasileira Daniele Oliveira de Castro, química formada na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), com mestrado e doutorado sanduíche no Instituto Politécnico de Grenoble, na França, defendidos na Universidade de São Paulo (USP), sob a orientação da química Elisabete Frollini. Na Suécia, Daniele desenvolve processos de produção de papel mais resistentes com nanocelulose. “Também participo da criação de espumas feitas de nanocelulose com propriedades antichama”, conta. A pesquisadora está no MoRe Research desde setembro de 2016 e seu projeto termina em 2018.
A química Juliana Bernardes, do Laboratório Nacional de Nanotecnologia (LNNano) do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), coordena uma linha de pesquisa usando nanocristais e nanofibrilas de celulose extraídos de bagaço de cana como espessantes em fluidos. “Esses nanomateriais em pequenas quantidades transformam, por exemplo, a água em gel, uma característica importante em cosméticos”, explica. Juliana fará um estágio de três meses na Universidade de Estocolmo, Suécia, financiado pela FAPESP, para desenvolver um curativo em forma de gel feito de nanofibrilas de celulose e fármacos cicatrizantes.
Um dos usos de nanocristais de celulose que recebe atenção é a aplicação para reforçar cimento. Em um artigo na revista Cement and Concrete Composites, de fevereiro de 2015, essa utilização foi comprovada por um estudo realizado na Universidade de Purdue (EUA). Pesquisadores sob a coordenação do engenheiro Pablo Zavattieri demonstraram que os nanocristais de celulose podem aumentar a resistência à tração do concreto em até 30%. Os resultados indicaram que o biomaterial aumenta a hidratação do concreto, fortalecendo o material. Com isso seria possível usar menos cimento na mistura. Os resultados levaram o grupo de Purdue a estabelecer uma parceria com a P3Nano, uma organização público-privada criada para pesquisar o uso de nanomateriais oriundos da madeira. A iniciativa tem financiamento do Serviço de Silvicultura do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA). A P3Nano pretende avançar na tecnologia e torná-la comercial. Para isso vai continuar com a participação dos pesquisadores de Purdue, agora em ensaios de grande escala.
Pesquisa no Brasil
Vários grupos de pesquisadores estudam a produção e a funcionalidade dos nanocristais de celulose
Há vários grupos de pesquisa no Brasil, em institutos e universidades, que estudam tanto a extração e a purificação dos nanocristais de celulose como as aplicações desse material. Dois trabalhos recentes tratam de uma característica dos nanocristais, a reflexão de luz. Um desses estudos foi capa em janeiro deste ano da Advanced Materials, revista científica na área de materiais. “A novidade foi colocar cristais líquidos sobre os nanocristais de celulose produzindo filmes iridescentes, absorvendo luz e refletindo apenas algumas cores”, conta Antônio Figueiredo Neto, professor do Instituto de Física da Universidade de São Paulo. Ele coordena o grupo que faz parceria com pesquisadores de instituições portuguesas. “Conseguimos com a celulose uma versatilidade de cor maior em relação a dispositivos feitos com material sintético”, relata Figueiredo.
Em projeto de um grupo de pesquisadores das universidades federais de Minas Gerais (UFMG), em Belo Horizonte, e dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), em Diamantina, foi demonstrado que os nanocristais de celulose podem ser precursores de nanomateriais de carbono, os carbon dots. Eles poderão ser utilizados para substituir os pontos quânticos (quantum dots) feitos de materiais semicondutores em dimensões nanométricas. As aplicações possíveis estão em células solares e em aparelhos de captação de imagens médicas e displays. Atualmente, os pontos quânticos estão em TVs que utilizam esse material para dar melhor visibilidade e resolução nas telas de LED. São TVs chamadas de QLed.
“Desenvolvemos um método de pirólise dos nanocristais de celulose que resultam em esferas, os carbon dots, de 4 nm a 8 nm de circunferência, que exibem fotoluminescência nas cores verde e azul. Os carbon dots já são conhecidos desde 2004 e nesse trabalho demonstramos que podem ser feitos a partir de uma fonte renovável e abundante que é a celulose”, explica o químico Fabiano Pereira, professor da UFMG. “Outra vantagem dos carbon dots é o fato de não apresentarem toxicidade.”
Projetos
1. Estudo do uso de nanopartículas de celulose no controle reológico de fluidos complexos (nº 16/04514-7); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisadora responsável Juliana da Silva Bernardes (CNPEM); Investimento R$ 115.773,36.
2. Propriedades ópticas e estruturais de elastômeros e fluidos complexos de interesse biológico (nº 11/13616-4); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Antônio Martins Figueiredo Neto (USP); Investimento R$ 2.519.727,73.