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Elza Berquó

Elza Berquó: Marcas do pioneirismo na demografia

Pesquisadora que revelou as mudanças no comportamento reprodutivo do brasileiro quer saber mais sobre os jovens

Léo Ramos ChavesElza Salvatori Berquó é uma especialista em estatística e demografia que tem um gosto especial em abrir frentes de pesquisa inesperadas. Foi assim quando estudou a reprodução humana na cidade de São Paulo, em meados dos anos 1960, na Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP), e observou pela primeira vez uma queda na fecundidade das mulheres paulistanas. E continua assim ao instar, em maio deste ano, os pesquisadores do Núcleo de Estudo de População da Universidade Estadual de Campinas (Nepo-Unicamp) a mergulharem em um novo projeto para entender o suicídio de adolescentes, que estaria crescendo em todo o mundo.

Colecionadora de prêmios e homenagens, em 8 agosto deste ano Elza recebeu aquela que considerou definitiva. O auditório do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), de São Paulo, recebeu o seu nome. “Essa homenagem do Cebrap era o que faltava para mim”, diz. “Agora não falta mais nada.” Em 2014 o Nepo, criado por ela em 1982, fez algo parecido e incorporou o nome da demógrafa ao do núcleo. Recentemente, a Editora Unicamp lançou Demografia na Unicamp – Um olhar sobre a produção do Nepo, organizado por ela.

A felicidade de Elza tem razão de ser. Quando foi compulsoriamente aposentada pelo Ato Institucional nº 5, o AI-5, em 1968, ela se viu sem chão. Suas pesquisas na FSP foram interrompidas e ela proibida de entrar na instituição. No ano seguinte, veio a alegria ao receber o convite para ser uma das fundadoras do Cebrap juntamente com Fernando Henrique Cardoso, José Arthur Giannotti, Cândido Procópio Ferreira de Camargo [1922-1987] e poucos outros. “Ela chegou com um projeto definido, já sabendo o que ia fazer e nos mostrou a revolução que estava acontecendo na reprodução dos brasileiros”, lembrou Giannotti durante a homenagem.

Elza Berquó nasceu em Guaxupé, Minas Gerais, em razão das constantes mudanças do pai, funcionário dos Correios. Decidiu cursar matemática na Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas) quando a família estava radicada naquela cidade. A oportunidade de trabalhar na FSP ocorreu três anos depois de formada, em 1950. Nesses quase 70 anos como matemática, estatística e demógrafa fundou e ajudou a criar centros, núcleos e instituições e foi a principal responsável pelo ensino formal e regular da demografia no Brasil.

Casou-se duas vezes. A primeira com o matemático Rubens Murilo Marques, que teve papel relevante nos primeiros anos da Unicamp. O segundo marido foi o administrador público José Ademar Dias, com quem ficou por 36 anos e de quem está viúva há 10 anos. Por opção, não teve filhos.

Os 92 anos, completados no dia 17 de outubro, é um fator limitante apenas no que se refere à parte mecânica. “Parar de trabalhar, nunca parei”, afirma. Até sofrer uma queda, frequentava o Cebrap ao menos três vezes por semana. Recentemente retomou as idas, de modo mais espaçado. Fica bastante em casa, na zona sul de São Paulo, uma construção assinada pelo amigo e arquiteto Villanova Artigas (1915-1985), professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP também cassado pelo AI-5. A casa – construída por encomenda de Elza e do primeiro marido – ficou pronta em 1968 e se tornou uma das obras mais admiradas de Artigas. Com certa frequência, a pesquisadora abre as portas para grupos de alunos de arquitetura e documentaristas que desejam mostrar seu interior. Foi na sala ampla, repleta de recordações de viagens, livros e revistas, que Elza concedeu a entrevista abaixo.

Idade
92 anos
Especialidade
Demografia
Formação
Graduação em matemática na PUC-Campinas (1947), doutorado em bioestatística pela Universidade Columbia, nos Estados Unidos (1958)
Instituição
Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap)
Produção científica
Cerca de 100 artigos científicos e 26 livros escritos ou organizados

Caso a reforma da Previdência em discussão seja aprovada, as pessoas terão de ficar mais tempo no mercado de trabalho para conseguir se aposentar. Isso pressiona os jovens, que precisam de emprego. A senhora vê alguma solução para esse conflito?
Não. O que vem acontecendo é que as pessoas podem se aposentar até com 50 anos de idade por conta do tempo de serviço. Como começavam a trabalhar muito cedo, se aposentavam também cedo. Não vemos o mesmo no exterior. Não vejo ninguém na Alemanha, por exemplo, se aposentando com 50 anos. Acho que se tem de se mexer nisso para não ser injusto com ninguém. Agora, se é o momento do atual governo fazer isso é outra história.

Projeção do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o IBGE, baseada em dados das Nações Unidas de 2015, indica que o perfil da população do Brasil se aproxima de países desenvolvidos, mais envelhecidos. Seus estudos já não previram isso há muito tempo?
Essa questão foi muito bem estudada por nós, demógrafos. A primeira fase da transição demográfica no Brasil começou mais ou menos nos anos 1940 com o início da queda da mortalidade. A segunda fase se deu entre os anos 1960 e 1970 quando constatamos a queda da fecundidade. Quem encarou isso profundamente foi o sociólogo Vilmar Faria [1942-2001], do Cebrap. Na análise dele, as famílias precisavam ser grandes porque morriam muitos filhos, mas outros sobreviviam e eram esses que iriam cuidar dos pais na velhice. Uma das razões para a queda da fecundidade estaria ligada à evolução da seguridade social: as famílias perceberam que não era preciso ter muitos filhos porque no futuro haveria aposentadoria. Outro fator foi o surgimento da pílula anticoncepcional, em 1965. E houve a revolução dos meios de comunicação, principalmente a televisão, que também contribuiu para a queda de fecundidade.

Por quê?
Porque todas as novelas, que sempre tiveram grande audiência, mostravam um modelo de família pequena. Tive a oportunidade de entrevistar vários diretores de novela quando, posteriormente, estudei a influência da TV na queda da fecundidade. Na época, entre 1996 e 1997, passava O rei do gado, da TV Globo. Eu perguntei para os diretores: “A Globo é a responsável por vocês terem um modelo de família pequena?”. Eles diziam: “De jeito nenhum, nós preferimos novelas com vários núcleos familiares pequenos porque fica mais interessante, em vez de fazer como as mexicanas, onde tem o rico e o pobre, o bem e o mal, em duas grandes famílias”. Essa pesquisa ganhou muita fama. Foi um grupo importante de pesquisadores que participou do projeto “Impacto social da televisão no comportamento reprodutivo”. A antropóloga Esther Hamburger, da USP, foi uma das coordenadoras do estudo que tiveram participação do pessoal do Cedeplar [Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional da Universidade Federal de Minas Gerais], do Nepo e da Universidade do Texas, dos Estados Unidos. Pesquisamos na cidade de São Paulo e em Montes Claros, em Minas. Tudo para poder ver na prática a influência que a televisão tinha na capital e em uma cidade do interior.

Há mais fatores que ajudaram a explicar a queda de fecundidade dos anos 1960 para cá?
O último é a política de crédito ao consumidor. Quando se tem crédito e aspirações de consumo, é preciso pensar em como ajustar isso com o número de filhos. Esses quatro fatores – seguridade social, anticoncepcional, televisão e crédito –, no dizer do Vilmar Faria, não foram previamente pensados para reduzir a fecundidade, mas, de uma forma ou de outra, reduziram. Agora, no século XXI no Brasil, a mulher tem 1,8 filho em média. O que quer dizer que se pode ter dois ou um. Trabalhamos em uma pesquisa, feita no Cebrap e publicada em parte na Revista Brasileira de Estudos da População, da Abep [Associação Brasileira de Estudos Populacionais], em 2014, sobre um fenômeno que está acontecendo agora. As mulheres casam mais tarde ou não casam e vão adiando a reprodução. De repente, o tempo passa e elas não conseguem mais engravidar. Uma coisa é a fecundidade e outra é a fertilidade. A fertilidade é a capacidade de conceber; a fecundidade é a capacidade de, em tendo concebido, gerar um nascido vivo. São conceitos diferentes. Quando a mulher adia muito a reprodução, ela se coloca na parte descendente de uma curva de fertilidade, que vai diminuindo com a idade. Quando jovem, ela é alta. Quando não consegue engravidar, pode usar a reprodução assistida, se tiver recursos. À medida que a fertilidade – e a mortalidade – cai, cada vez teremos menos nascimentos e, portanto, menos jovens. Mas a outra parte da população vai vivendo mais. Como se morre menos e vive-se mais, aumenta o envelhecimento.

Arquivo pessoal Cândido Procópio Ferreira de Camargo no lançamento de A fecundidade em São Paulo, de Maria Coleta de Oliveira e Elza (à dir.), em 1968Arquivo pessoal

Como surgiu a proposta de pesquisar o adiamento da reprodução?
Há cinco anos, ao conversar com demógrafos que moram em São Paulo e não estão na universidade verifiquei que eles tinham uma certa ansiedade porque só encontravam com os outros nas reuniões da Abep. Eu não sentia isso porque tinha meus grupos no Cebrap e Nepo. Resolvi criar o Café Demográfico no Cebrap. Uma vez por mês eu reunia esses pesquisadores que estavam soltos para tomar um café, sem agenda. Vinham do Seade [Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados], da Fundação Carlos Chagas, da Santa Casa, do Instituto de Saúde da Secretaria Estadual de Saúde… Nós nos reuníamos sem pauta para conversar um pouco sobre o que cada um estava fazendo. Conversa vai, conversa vem, achamos que era importante estudar o adiamento da reprodução. Aí ficou diferente: ganhamos uma pauta. O pessoal do Seade tinha as informações para São Paulo porque tem acesso aos atestados de nascimento, com a idade da mãe, condição socioeconômica etc. Esse trabalho envolveu a Bernadette Waldvogel e o Carlos Eugenio Ferreira, os dois do Seade, a Sandra Garcia e a Tânia di Giacomo do Lago, parceiras do Cebrap, e o Luís Eduardo Batista, do Instituto de Saúde. Trabalhamos juntos até fechar esse texto. Publicamos o primeiro trabalho na revista da Abep em 2014. Antes fizemos um seminário com essa equipe. No artigo confirmamos a queda dos níveis de fecundidade entre 1960 e 2010 e mostramos que aumentou a proporção de nascimentos de primeiros filhos entre as mulheres de 30 a 39 anos no período 2000-2010. Foram esses dados que nos levaram a supor a existência de adiamento, temporário ou definitivo, da reprodução da mulher paulista.

Esse projeto é o mesmo que recebeu o nome de “Mulher de 30”?
Sim, ganhou esse nome por causa do adiamento da maternidade. O Luiz Eduardo lembrou, de brincadeira, uma canção do Miltinho [1928-2014], que se chama “Mulher de 30”. No primeiro refrão, a letra diz: “Você, mulher / Que já viveu, que já sofreu / Não minta / Um triste adeus nos olhos seus / A gente vê, mulher de 30”. Essa lembrança acabou batizando o projeto. Agora estamos estudando a mesma questão para o Brasil porque antes estávamos restritos a São Paulo.

Já há informações que permitam dizer se os dados do país são diferentes dos de São Paulo?
Temos alguns resultados, mas ainda não começamos a análise. Na minha vida inteira aprendi que onde há uma fenda que dê para passar um pensamento, ele vai longe. Talvez a Sandra Garcia já esteja vendo resultados e tirando algumas conclusões sobre isso. A velocidade do trabalho dela hoje é muito maior do que a minha.

O Nepo não participou desse estudo?
Não. Eu continuo pondo ovos nos dois lugares. Quando fui para a comemoração dos 35 anos do Nepo, em maio deste ano, na minha vez de falar avisei que não faria um recordatório das atividades. Eu já havia feito isso antes, quando o Nepo fez 30 anos, 25, 20… Em vez disso, sugeri aos pesquisadores refletir sobre uma questão importante, mundial, que é o suicídio de adolescentes. Esse é meu mais recente interesse, para o qual estou muito voltada. Quero trabalhar nisso em conjunto com o Cebrap. No Brasil, a questão começou a ficar grave com o jogo que veio da Rússia, o Baleia Azul [trata-se de 50 desafios que o jogador adolescente tem de cumprir, incluindo automutilação; a última tarefa é o suicídio].

Essa não é a primeira vez que a senhora mira o comportamento dos jovens.
Em 2012 concebi um projeto no Cebrap junto com a Fundação Carlos Chagas, chamado “Dar voz aos jovens”. Fizemos em duas cidades, São Paulo e Itapeva, no interior paulista. Eu ficava muito intrigada com a sexualidade dos jovens. Até hoje a Aids não para de aumentar entre eles. A gravidez não planejada também, mesmo com a pílula do dia seguinte e vários outros meios para evitar a concepção. A pergunta era: o que eles estão querendo? Então achei que devia ouvir os jovens sobre sua sexualidade. Para isso, fizemos uma convocatória por meio do site do Cebrap. Precisei da ajuda de especialistas em comunicação para usar uma linguagem que fosse atraente. A convocatória foi estudada palavra por palavra e divulgamos nas redes sociais. A ideia era que alunos de ensino médio de escolas públicas de 14 a 19 anos mandassem uma narrativa abordando qualquer aspecto sobre sexualidade – amor, sexo, namoro, desejos, preferências, medos e gravidez na adolescência. Recebemos 200 delas e selecionamos as 20 melhores. Precisei desse mesmo comitê que pensou a convocatória para ajudar na consultoria. Participaram, entre outros, a Tânia Lago, a Clarice Herzog, que é publicitária, a Vera Paiva, psicóloga da USP que trabalha com Aids, a Sandra Unbehaum, coordenadora de pesquisas educacionais na Carlos Chagas, a Maria Coleta de Oliveira, demógrafa da Unicamp, o Alessandro de Oliveira dos Santos, da psicologia da USP, e o Jairo Bouer, médico e educador. Depois de selecionadas as narrativas, oferecemos oficinas de roteiro no Cebrap.

Arquivo pessoal Bacharel em matemática pela PUC-Campinas, em 1947: três anos depois, foi para a Faculdade de Saúde Pública da USPArquivo pessoal

Como foi esse processo?
Os que foram selecionados fizeram 90 horas de oficina. Tínhamos 20 narrativas. Na primeira oficina cada um dos jovens recebeu todas as 20 narrativas para ler. Eles podiam escolher os temas nos quais deveriam trabalhar junto com o roteirista. Com os roteiros prontos, a diretora de audiovisual Paula Garcia saía de carro com o adolescente pela cidade procurando o melhor ambiente para fazer um filme a respeito do que escreveu. No final saíram 10 vídeos, de 10 a 15 minutos cada um, cinco feitos em São Paulo e cinco em Itapeva. Maravilhosos. Estão todos no YouTube. Itapeva foi escolhida porque eu queria ver como eram os jovens do interior e a cidade tinha uma taxa de suicídio um pouco acima da média. Eu já andava intrigada com o problema do suicídio e resolvemos fazer lá.

E depois, o que foi feito desses vídeos?
Apresentamos em um palco aberto, no Centro Cultural de Heliópolis, em São Paulo. Também foram assistidos nas casas dos adolescentes juntamente com gestores que trabalham com jovens para ver a reação da família. Para nós isso era importante porque há muita gente conservadora. Nesse ponto, nosso trabalho terminou. A médica Albertina Duarte, da Faculdade de Medicina da USP, costuma usar os vídeos quando lida com jovens. Tudo foi registrado, mas não publicamos artigo com esse relato.

A pesquisa sobre suicídio já começou?
Estamos buscando financiamento porque queremos construir um aplicativo. Existem 123 aplicativos para ajudar a evitar o suicídio no mundo. No Brasil temos apenas um, que é péssimo. Na Argentina tem um muito bom, chamado Calma. Quando a pessoa está no auge da depressão, ela aperta um botão e ouve: “Calma”, e começa a ser ajudada. Queremos fazer um aplicativo bom. Estou criando um grupo de reflexão.

Como a senhora chegou à conclusão sobre a necessidade de pesquisar o suicídio de jovens?
Primeiro por meio do contato com eles. Quando escrevem as narrativas, sinto que eles pedem ajuda. A homoafetividade apareceu muito nos relatos que recebemos. Tivemos dois vídeos sobre esse tema. Segundo me disse um dos jovens, a família levou um susto danado quando viu aquilo. Eles foram exibidos também com a ajuda do Jairo Bouer. Na apresentação que fizemos em Heliópolis, alguns familiares ficaram assustados ao ver, mas esse é um caminho pelo qual se tem de passar. Me aproximei de muitos jovens lá. Olhando as estatísticas, pensei que se eles sabem como prevenir a Aids e a gravidez e ainda assim assumem comportamento de risco é porque querem correr risco. E, se querem, é porque já atingiram um limite de desinteresse pelo que está aí. Esse foi meu raciocínio.

Vamos falar um pouco sobre sua trajetória. A senhora se graduou em 1947 em matemática e poucos anos depois foi trabalhar com o professor Pedro Egydio de Oliveira Carvalho (1910-1958) na FSP. O que a motivou a sair de Campinas?
A PUC-Campinas, na minha época, trazia professores do exterior. Os cursos que eu tive foram muito bons. A matemática mudou meu conceito de crença. Éramos educados na geometria euclidiana. Mas tive professores que me ensinaram outras geometrias, onde as retas paralelas se encontram. Não era aquela coisa de se encontrar no infinito porque o infinito era onde estava Deus… Não. Na geometria de Nikolai Lobachevsky [matemático russo, 1792-1856], por exemplo, essas retas se encontram porque ela é construída sobre outros axiomas. Antes de vir para São Paulo fui lecionar em um ginásio em Capivari. Quando estava em férias com minha família, em Serra Negra, conheci um rapaz que morava na capital, também formado em matemática, que tinha sido convidado para ir para a FSP. Como não pôde, porque iria para o exterior, perguntou se eu não estava interessada. Marquei uma entrevista com o Pedro Egydio de Oliveira Carvalho, que dirigia o Departamento de Estatística. Era médico e matemático, um craque da estatística. Ele me aceitou, mas impôs as regras dele. Na época havia um casal de americanos dando aulas na Faculdade de Filosofia, Ciência e Letras e tive de ir com ele assistir às aulas. Minha tarefa era escrever toda a aula. Quando voltava para a faculdade, eu tinha de passar aquilo a limpo, ele conferia e dizia: “Tomou nota direitinho”. Quando fui fazer uma especialização na Universidade Columbia, Estados Unidos, entre 1954 e 1956, ele disse: “Mande cópia para mim de tudo o que estudar lá, que é para quando você voltar não saber mais do que eu”.

O que a fez mudar da matemática para a estatística e dali para a demografia?
Obviamente, eu gostava da matemática. Mas havia um certo determinismo que fazia me sentir meio aprisionada. Quando entrei na estatística, achei os modelos probabilísticos uma delícia porque as coisas têm um tanto de probabilidade de ser e um tanto de não ser. Aqueles modelos me encantaram. Fiz muita coisa boa em estatística. Mas chega uma hora em que dizemos, e daí? Qual a explicação que está por trás dos resultados para que tudo aconteça? Quais são os determinantes sociais, econômicos, culturais, políticos que estão por trás de tudo isso? Eu quis trabalhar com esses elementos. E isso é a demografia.

A senhora chegou a essa conclusão nos Estados Unidos?
Não, foi aqui mesmo. Quando o Pedro Egydio morreu precocemente, com 48 anos, em 1958, voltei por dois meses à Columbia para preparar minha tese de doutorado e poder fazer o concurso para cátedra na FSP, que ocorreu em 1960. A Ruth Gold [1921-2009] e a Agnes Berger [1916-2002] eram duas estatísticas de primeira linha que haviam trabalhado com Jerzy Neyman [russo naturalizado norte-americano, 1894-1981], um luminar da estatística matemática, na Universidade da Califórnia em Berkeley, que conheci depois e muito me influenciou. Naquele período, Ruth e Agnes estavam em Columbia e me disseram que poderíamos trabalhar juntas na tese. Escolhemos uma análise estatística sequencial, algo bem recente na época, do húngaro Abraham Wald [1902-1950]. Na análise sequencial, o tamanho da amostra não é fixado a priori. A hipótese pode ser aceita, rejeitada ou exigir mais trabalho porque pode não haver evidências suficientes para se decidir sobre ela. Era algo diferente dos testes de hipóteses em que o tamanho da amostra era fixado a priori. Para eu poder usar exemplos na minha tese, estabelecemos uma colaboração com a Faculdade de Medicina de Columbia e utilizei um estudo deles, já encerrado, sobre o uso de dois medicamentos para bebês prematuros. Fiz a minha tese abordando o uso desse método estatístico relacionado a problemas de saúde pública.

Há cinco décadas a demografia parecia ter pouca importância no Brasil. Hoje os gestores públicos praticamente não fazem planejamento sem levá-la em conta. Quando começou essa mudança?
Fundei o Cedip [Centro de Estudos de Dinâmica Populacional], o primeiro núcleo de formação em demografia do país, dentro da FSP, em 1966. Antes, havia passado a dirigir o Departamento de Estatística quando Pedro Egydio morreu. Como a Faculdade de Filosofia não tinha ainda nada de estatística e matemática, e eu sabia que iria precisar das duas coisas, criei a disciplina de estatística matemática com o Rubens Murilo Marques, meu primeiro marido. Consegui um apoio grande para esse grupo. Já para formar o grupo de demografia, convidei o médico João Yunes [1936-2002], que foi secretário estadual de Saúde muitos anos depois, a socióloga Neide Patarra [1939-2013], o matemático e sociólogo Jair Lício Ferreira Santos, o economista Paul Singer e o Cândido Procópio, também sociólogo, que anos depois seria o primeiro presidente do Cebrap. Eu já tinha a visão de que a demografia é multidisciplinar. Com exceção do Procópio, mais velho, os outros eram jovens que saíram daqui com bolsa de estudo da Opas [Organização Pan-americana de Saúde] para fazer pós-graduação em demografia, cada um em um lugar. O Yunes foi para Michigan, o Singer para Princeton, a Neide e o Jair para Chicago. O Procópio tinha notório saber e viajou pelos Estados Unidos e pela Europa para conhecer programas de demografia que nos ajudassem na implantação do Cedip. Foi feito um convênio entre a FSP e a Opas em que, por cinco anos, a organização bancaria as bolsas de pós-graduação e os salários. Depois disso, a faculdade deveria assumir esses encargos. Ocorre que, depois que criamos o Cedip e começamos a trabalhar, a FSP não honrou os compromissos. Por ocasião desse trato com a Opas, o diretor da faculdade era o Rodolfo dos Santos Mascarenhas [1909-1979]. Há uma história curiosa que aconteceu nesse período. Eu era representante dos doutores no Conselho Universitário da USP. Fui para lá com o professor Mascarenhas. A reunião demorou para começar e eu perguntei para ele o que estava acontecendo. A razão era que o representante dos alunos não tinha paletó, estava em mangas de camisa e não podia entrar. Eu disse: “É um absurdo um aluno não poder entrar em mangas de camisa”. Então falaram para mim: “Mas a senhora entraria aqui de biquíni?”. Respondi: “Se eu andasse de biquíni na rua, entraria sim”. Depois dessa eu ganhei a parada. O aluno entrou e alguns dos professores arrancaram a gravata. Lembro da figura desse aluno até hoje. Ele foi entrando e pensei: “É isso que é o Conselho Universitário?”. Eu disse para o Mascarenhas: “Não quero mais vir aqui, não”. E não fui.

Antes do Cedip não se ensinava e pesquisava demografia no Brasil?
Não de modo formal, ligado a uma universidade. Apenas no IBGE, no Rio, o João Lira Madeira [1909-1979] era um demógrafo interessado em formar outros demógrafos. O Giorgio Mortara [1885-1967], que veio da Itália para cá, coordenou dois censos importantes no Brasil, de 1940 e 1950. O Lira Madeira trabalhou com ele. O IBGE era o único núcleo onde havia isso.

Ainda em 1965, a senhora realizou a pesquisa de “Reprodução humana no distrito de São Paulo”. Como foi?
Fizemos esse trabalho com essa turma, Paul Singer, Neide Patarra e Maria Coleta de Oliveira. Tínhamos o Censo de 1940 e o de 1950. O de 1960 foi feito, mas sua publicação só ocorreu em 1978. Há várias histórias sobre isso. Um computador foi usado para acelerar a produção dos dados, mas teve efeito contrário. Uma das versões diz que os dados foram enviados para centros avançados, como Chicago, para computar tudo. O material estaria num avião e a criptografia teria sido perdida por alguma razão. Há gente que coloca a culpa do sumiço dos dados no regime militar, que começou em 1964. E outra história, segundo a versão do sociólogo Nelson do Valle, diz que o material com os resultados ficou perdido dentro de um armazém do próprio IBGE. Como não tínhamos os dados de 1960, não podíamos ver a queda da fecundidade porque só conhecíamos as informações de 1940 e 1950. Fizemos a  pesquisa restrita à cidade de São Paulo e ela mostrou que a fecundidade já estava caindo.

Poucos anos depois, o governo baixou o AI-5, em dezembro de 1968, e a senhora foi cassada. No ano seguinte, foi criado o Cebrap. A que se deu tamanha rapidez?
Ao prestígio do Fernando Henrique, que teve apoio dos empresários paulistas
que não estavam de acordo com a ditadura, e da Fundação Ford, que fez um endowment grande ao Cebrap. Além disso, ele é filho e neto de militar, embora isso não tenha diretamente a ver. Foi um período terrível para mim, morando nesta casa, que naquela época era distante de tudo. No dia seguinte ao AI-5, não podia mais entrar na FSP. Morava aqui, longe, e ficava muito isolada.

Mas esse isolamento foi importante em alguns momentos…
Sim, queria contar essa história. Escondi aqui jovens que estavam na luta armada. Esta casa era muito distante do centro e era mais fácil abrigar gente perseguida. Praticamente todos eles, uns 10, foram mortos posteriormente pelo regime, pelo que eu soube, inclusive uma moça grávida que hospedamos. Eles não ficavam muito tempo: vinham, passavam alguns dias, iam embora e vinham outros. Ninguém sabia o nome de ninguém. Nem o meu, nem o do Rubens, meu marido na época, que era ligado ao Partido Comunista Brasileiro, assim como o Villanova Artigas – eu nunca fui de nenhum partido. Os jovens que ficavam aqui se entediavam e pediam para fazer alguma coisa. Eles pintaram aquelas lajotas de óleo queimado [aponta para determinada parte da sala]. Deixaram essa marca histórica nesta casa. A casa estava recém-pronta e as lajotas eram de tijolo aparente.

O Rubens chegou a ser preso?
Foi preso pela Oban [Operação Bandeirantes], em 1971. Uma vez, estávamos nós dois aqui, num sábado, tomando café depois do almoço, quando de repente ele disse: “Não se mexa”. Ele viu que tinha gente que estava começando a descer a rampa em direção à nossa casa. Era o pessoal da Oban e o levaram preso. Ficou algumas semanas lá, muito embora o tio dele fosse o secretário estadual de Segurança Pública na época.

Por que a senhora não voltou para a universidade logo depois da Anistia, em 1979?
Tive convites da FSP, por meio do Oswaldo Forattini [1924-2007], então diretor da faculdade, e do IME [Instituto de Matemática e Estatística da USP]. Com a reforma universitária que ocorreu quando estávamos fora da universidade, a minha disciplina de estatística matemática foi para o IME, que era mesmo o melhor lugar para ela. Para decidir pela FSP ou pelo IME, me tranquei em casa por 72 horas para ver o que prevalecia. O coração decidiu pela FSP. Quando avisei que voltaria, o Forattini me disse que tinha de passar pela Congregação da faculdade, o que achei óbvio. Mas, na votação, tive 50% de votos contra mim. Forattini deu o voto de minerva a meu favor. Com isso, decidi não voltar. Quem ficou na FSP foi o pessoal mais conservador possível. Fiquei só no Cebrap, o que foi muito bom.

Como foi a ida para a Unicamp?
Em 1982, o então reitor da Unicamp, José Aristodemo Pinotti [1934-2009], me convidou. Aceitei com a condição de não ter nenhum contato com a burocracia da universidade. Também pedi carta branca para criar um núcleo. Isso foi na fase de criação de núcleos na universidade. Ele já tinha chegado à conclusão de que os departamentos eram estanques, não se comunicavam, e queria estabelecer comunicações. Os núcleos que ele criou faziam isso. Criei o Nepo e o coordenei por vários anos, mas não quis ocupar cargo nenhum e não acumulei aposentadorias.

Arquivo pessoal Maria Coleta de Oliveira, Maria Isabel Baltar da Rocha, Elza Berquó e Anibal Faundes (da esq. para a dir.) durante curso de saúde reprodutiva do Nepo, em 1993Arquivo pessoal

Quando a senhora considera que a área de demografia foi consolidada de fato?
Está consolidada desde a criação da Abep, em 1976, também com o apoio da Fundação Ford, em plena ditadura. Hoje temos o Cedeplar, da UFMG, que é um belo centro de demografia, o Nepo, o IBGE progrediu muito com a Escola Nacional de Estatística, que faz demografia, e outros mais. A Ford financiou a Abep porque já havia financiado vários centros de excelência, inclusive o Cebrap. Eles tinham experiência de que só centros de excelência não bastavam. Era preciso algo que ligasse tudo isso, como as associações. A Ford financiou várias delas, como a Anpocs [Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais], no mesmo período.

Qual seu trabalho mais significativo no Cebrap? Há algum que goste mais?
Tive vários projetos importantes. Um dos mais interessantes foi “Pesquisa nacional de reprodução humana”, um trabalho multidisciplinar realizado de 1973 a 1978. De certo modo, foi a continuação do trabalho que começamos na FSP em 1965, sobre a reprodução da mulher paulistana, interrompido pelas cassações. Era uma pesquisa grande que explorava as relações entre o comportamento reprodutivo e as diversas formas de organização da produção. Tinha um arcabouço teórico/metodológico inovador. O planejamento da pesquisa resultou de um esforço teórico na busca de tipologias das regiões brasileiras que incluísse duas dimensões: as formas dominantes da organização da produção em cada região e as formas de inserção de cada região na divisão social do trabalho, durante o processo de desenvolvimento. Nessa pesquisa foi montada uma tipologia dos setores rurais e urbanos do Brasil em nove áreas, desde a servidão rural, em Conceição do Araguaia, no Pará, até o capitalismo e estrutura socioeconômica, em São José dos Campos, em São Paulo. Essa estratégia de pesquisa foi montada por Vilmar Faria e Juarez Brandão Lopes [1925-2011]. Quem escrevia a história de cada região eram os pesquisadores do Cebrap, como Cândido Procópio, Fernando Henrique, Juarez, Vilmar, Neide Patarra, Octavio Ianni [1926-2004], Bolívar Lamounier, Vinícius Caldeira Brant [1941-1999], Maria da Conceição Quinteiro e outros. O Fernando Henrique, por exemplo, pesquisou São José dos Campos. Essa pesquisa envolveu o Cebrap de uma maneira talvez única. Não voltou a acontecer depois – pelo menos não na demografia. Outro trabalho que gosto muito é o “Programa para formação de pesquisadoras negras”, realizado entre 1994 e 1996. A Fundação MacArthur financiou, com doação de US$ 2,3 milhões.

Por que pesquisadoras negras?
Aí nós voltamos para os censos. O item raça/cor estava no Censo de 1940, de 1950; o de 1960 não saía publicado; e no de 1970 o regime militar tirou essa informação. Ficamos um tempo grande sem informação sobre cor. Não sabíamos como estava a população negra no Brasil. Sentíamos falta daquilo. Quando saiu o Censo de 1980, a população negra aparecia lá embaixo, em todos os indicadores. Pensei que precisaríamos fazer alguma coisa. Comecei a estudar a demografia do negro, fiz um projeto sobre a saúde reprodutiva da mulher negra, entre 1991 e 1993, publiquei trabalhos e realizamos vários seminários no Cebrap a esse respeito. Eu queria saber também sobre pesquisadoras negras. O problema era que, quando abríamos editais para bolsa de pesquisa, os negros nunca passavam – quem passava eram os brancos. Resolvi abrir um concurso específico com bolsas para pesquisadoras negras. Na primeira edição desse programa, preparei quatro delas, todas graduadas em ciências sociais. Por dois anos foram treinadas para fazer pesquisa de campo e estudaram estatística e demografia. Em seguida fizeram seus doutorados. Elas também pesquisaram a saúde da mulher negra. Foram a campo, preencheram questionários e depois fizemos uma análise. Publicamos esse trabalho. Há um vídeo que se chama Eu, mulher negra, com algumas conclusões da pesquisa. Fiz a segunda edição do programa porque a Fundação MacArthur achou aquilo incrível. Hoje essas pesquisadoras estão em universidades pelo Brasil ou em instituições internacionais.

Depois de pesquisas em frentes tão diversas, quais os temas que ainda a entusiasmam para serem estudados pela demografia hoje?
Em primeiro lugar, os refugiados. O Nepo tem, por exemplo, o Observatório das Migrações, coordenado pela Rosana Baeninger. Esse tema é fundamental. Na área de reprodução é o adiamento. E há os problemas de jovens, como as doenças sexualmente transmissíveis. Todos os problemas dos jovens são relevantes.

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