Com as vitórias espetaculares de Guga, o Brasil pode deixar de ser o país do futebol para se tornar a terra do tênis, e os iniciantes no manejo da raquete também já podem contar com uma ajuda da ciência. Junto com especialistas de vários países, liderados pela psicóloga alemã Dagmar Sternad (da Universidade Estadual da Pensilvânia, Estados Unidos), o físico brasileiro Marcos Duarte, professor da Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo (USP), descobriu uma receita infalível para controlar a bolinha, tão fácil que até um robô é capaz de seguir.
“A idéia convencional é que a pessoa fica o tempo todo olhando para a bolinha e a raquete e, inconscientemente, faz os ajustes necessários para corrigir o movimento. Mas isso demanda muita atenção e contrasta com a facilidade desse ato. Então, propusemos um modelo alternativo, baseado na teoria do caos”, afirma o pesquisador.
Sua pesquisa foi publicada em janeiro na Physical Review E, da American Physical Society, e teve uma resenha na página da revistaNature na Internet. Outro artigo do grupo será veiculado em outubro no Journal of Experimental Psychology. Mas a investigação do movimento de bater bola é, por assim dizer, uma estrada vicinal no itinerário desse jovem físico, pós-doutorado pela Universidade da Pensilvânia. Seu principal objeto de estudo são os mecanismos de controle da postura e do equilíbrio humanos. Tanto numa área quanto na outra, Duarte tem feito descobertas instigantes e úteis.
Para descrever o movimento de bater bola, ele utilizou um modelo criado, no estudo dos raios cósmicos, pelo físico italiano Enrico Fermi (1901-1954). “Trata-se de um modelo de sistemas dinâmicos, cujas equações não-lineares trazem embutida a idéia de caos”, diz Duarte. “A partir dele, concluímos que, em vez de controlar a cada instante as posições e velocidades da bolinha e da raquete, tudo o que a pessoa precisa fazer é frear a raquete antes de bater na bolinha.” Se esse único fator – a freagem da raquete, ou seja, sua aceleração negativa (menor que zero) – for respeitado, o resultado será um sistema dinamicamente estável, em que qualquer perturbação no movimento da bolinha será atenuada ou corrigida pelas interações consecutivas com a raquete.
Visão e impacto
Ocorrerá exatamente o contrário se a aceleração da raquete for positiva. Nesse caso, uma eventual perturbação será acentuada, até tornar o movimento da bolinha incontrolável. A terceira possibilidade, uma aceleração nula (igual a zero) – isto é, o deslocamento da raquete com velocidade constante -, produzirá um estado indiferente, em que as perturbações tanto podem progredir quanto regredir, dependendo de outros fatores.
Se o modelo remonta a estudos de Fermi no final da década de 1940, a novidade está em sua aplicação ao tênis. “Inicialmente, fizemos uma simulação do modelo em computador. Depois confirmamos a previsão em experimentos com seres humanos”, relata Duarte. “Esses indivíduos não tinham nenhuma experiência anterior com o tênis, mas, após aprender a tarefa, chegaram, empiricamente, muito perto da aceleração ideal: um valor negativo, mas não excessivo. Bastou controlar essa única variável para que obtivessem a perícia.”
Para isolar o fenômeno e evitar efeitos produzidos por outros fatores – como a inclinação lateral da raquete, por exemplo -, num dos experimentos, os pesquisadores acoplaram a ela um dispositivo tipo gangorra. Os testados moviam a “gangorra” e esta comunicava o movimento à raquete. Desse modo, a trajetória da raquete ficava rigorosamente inscrita num plano vertical.
“Procuramos eliminar também várias informações sensoriais, como as proporcionadas pela visão e pela sensação cinestésica decorrente do impacto da bolinha na raquete”, informa o físico. Para cumprir a primeira condição, bastou vendar os olhos das pessoas. A segunda exigiu um expediente mais complicado: acoplar um braço robótico entre o sujeito e a raquete. “Para nossa surpresa, verificamos que a performance dos indivíduos é mais prejudicada pela eliminação da informação cinestésica do que pela supressão da visão.”
Treinando robô
Com tudo o que aprenderam nos experimentos, chegaram à etapa mais divertida: ensinar robô a bater bola. Não fizeram isso do modo clássico, com câmeras de TV acompanhando os movimentos da raquete e da bolinha e computadores calculando, momento a momento, suas trajetórias. Bastou programar o robô para imprimir à raquete uma aceleração negativa na intensidade apropriada. “Esse robô não está sendo desenvolvido para jogar tênis com o Guga. Ele tem a habilidade de uma criança de 2 anos. E isso é o máximo que podemos almejar no momento”, diz Duarte. “Quando consideramos que, num jogo essencialmente mental como xadrez, o robô Deep Blue foi capaz de vencer o campeão mundial russo Garry Kasparov, nos damos conta de como é complexo o movimento corporal humano.”
O físico sabe bem do que fala, porque sua linha de pesquisa, focada no controle da postura e do equilíbrio, evidencia toda a complexidade envolvida numa atividade tão simples como ficar de pé. Nesses estudos, que já lhe renderam oito artigos em revistas especializadas internacionais, o brasileiro teve por supervisor no pós-doutorado o matemático russo Vladimir Zatsiorsky. Trata-se do ex-diretor do lendário Instituto Central de Cultura Física da antiga União Soviética, a fábrica de campeões responsável pelas medalhas de ouro das equipes olímpicas. Zatsiorsky, que vive hoje nos Estados Unidos e redirecionou sua atuação dos ginásios esportivos para a área de saúde, continua como colaborador de Duarte.
“Queremos saber como o ser humano controla sua postura, para entender como ele perde esse controle”, sublinha o pesquisador. Essa questão é especialmente significativa para os idosos. Uma em cada três pessoas com mais de 65 anos cai pelo menos uma vez ao ano. E essas quedas, que geralmente provocam fraturas de quadril ou fêmur, são, por suas complicações, o segundo fator de morte por acidentes. Nos Estados Unidos, o ônus desses acidentes para o sistema de saúde é de alguns bilhões de dólares por ano.
Por isso, governos e instituições privadas de vários países investem grandes somas no estudo dos mecanismos naturais de controle da postura e do equilíbrio. Como parte de seu projeto, Duarte acaba de montar, na Escola de Educação Física da USP, um laboratório com o que há de mais avançado em aparelhagem de investigação sobre o tema.
Placa de força
O pesquisador aponta, numa pequena plataforma no solo de seu laboratório, um equipamento que considera o mais importante: uma placa de força que mede qualquer esforço feito sobre ela. O funcionamento é análogo ao de uma balança, mas, enquanto esta só determina o peso – uma força vertical, de cima para baixo -, a placa é capaz de detectar forças exercidas em todas as direções, bem como seus pontos de aplicação. “Pedimos a uma pessoa que fique de pé, em cima dela, durante meia hora, e, por meio de um software que desenvolvemos, somos capazes de identificar, classificar e quantificar todas as mudanças posturais ocorridas nesse período de tempo”, diz ele.
Um dos objetivos é estudar a chamada postura ereta natural, a que as pessoas assumem, por exemplo, quando estão de pé, esperando o ônibus. “Jamais ficamos totalmente imóveis”, assegura Duarte. “De pé, nosso corpo realiza o tempo todo pequenas oscilações que nos ajudam zaliviar a fadiga. Na média, realizamos uma mudança postural a cada 30 segundos.”
Essas mudanças podem ser reduzidas a três tipos básicos. O primeiro é a transferência (shift) que ocorre quando o sujeito muda sua posição média, deslocando, por exemplo, o peso de uma perna para a outra. O segundo, o sobressalto (fidjet), é um movimento rápido, com volta à posição anterior. O terceiro, chamado deriva (drift), é a tendência que as pessoas têm de derivar, ou seja mover-se muito lentamente para um lado e depois voltar à posição inicial.
A transferência e o sobressalto eram há muito conhecidos. São mecanismos naturais que permitem transferir o esforço de determinados grupos musculares para outros, estimular a circulação sanguínea e aliviar a pressão sobre os pontos de apoio previamente solicitados, de modo a prevenir edemas. A contribuição do pesquisador foi quantificar rigorosamente esses movimentos, antes apenas relatados de modo subjetivo.
Variação é fractal
Já a deriva é uma descoberta nova, um movimento muito lento, que só pôde ser observado graças aos recursos da aparelhagem. Sua causa é muito mais difícil de determinar. Por que as pessoas derivam? Por que pendemos vagarosamente para um lado e depois voltamos, com igual lentidão, à posição anterior? “Descobrimos que o sinal da placa de força, que informa como o indivíduo controla a sua postura e equilíbrio, é um fractal”, responde Duarte. Fractais são padrões que se repetem em diferentes escalas de espaço ou de tempo ou de espaço etempo, simultaneamente.
Afirmar que o sinal da placa é um fractal equivale a dizer que a transferência, o sobressalto e a deriva são variações, em diferentes escalas, de um mesmo movimento. “Se adotarmos o shift como referência, poderemos dizer que o fidjet é composto por dois shifts muito rápidos, de sentidos opostos, enquanto o drift é um shift de longa duração”, explica.
Para ele, essa associação talvez esclareça o mistério da deriva, que parece ser uma estratégia corporal que permite obter os mesmos efeitos produzidos pela transferência com menor consumo de energia por unidade de tempo. De outro modo: é uma forma inteligente de trocar os pontos de apoio, redistribuir o peso e promover a circulação sanguínea.
A atual fase dos estudos já permite ter uma primeira idéia de como um adulto saudável controla sua postura. A partir daí, é possível começar a entender a progressiva perda de controle que acompanha o envelhecimento, principalmente dos que não praticam uma atividade física adequada e regular. Para controlar o movimento ântero-posterior – as oscilações para frente e para trás -, o ser humano usa basicamente os tornozelos e os quadris. Com o envelhecimento, tende a ocorrer uma perda da chamada sensibilidade distal: quanto mais distante uma parte do corpo está do cérebro, menor a sensibilidade da pessoa na região. Resultado: a estratégia dos tornozelos começa a ser preterida em relação à estratégia dos quadris.
Tornozelos fracos
O problema é que as duas estratégias não são equivalentes do ponto de vista físico. Para demonstrar esse princípio, o pesquisador pede ao repórter que experimente consigo mesmo, ficando de pé e oscilando para frente e para trás. Há realmente uma diferença notável. Se a oscilação é feita a partir do tornozelo, imprimimos ao chão forças sensivelmente verticais. Ao transferirmos a oscilação para os quadris, essas forças se tornam praticamente horizontais. As conseqüências são previsíveis:
“Quando experimenta uma ligeira perda de equilíbrio, o idoso geralmente recorre aos quadris para se reequilibrar. Com isso, aplica ao solo forças quase horizontais. Se estiver andando sobre um tapete com pouca aderência ao chão ou num terreno escorregadio, terá grande probabilidade de cair”, conclui Duarte. Um objetivo dele é construir um protocolo experimental que permita mensurar as duas estratégias e ajudar as pessoas a desenvolver aquelas em que sentem maior dificuldade. Para os idosos que perderam o domínio dos tornozelos, o treinamento oferecerá a perspectiva de recuperar, ao menos em parte, essa habilidade.
Os Projetos
Estudo do Equilíbrio Postural e da Marcha de Idosos em Ambiente Terrestre e Aquático (nº 00/03624-5); Modalidade Programa Jovem Pesquisador; Coordenador Marcos Duarte – Faculdade de Educação Física da USP; Investimentos R$ 223.795,04 e US$ 100.596,04