Imprimir PDF Republicar

Geofísica

O calor que faz o chão tremer

Variações na espessura da litosfera causadas por diferenças de temperatura esclarecem a origem de terremotos no Brasil

Era impossível explicar por que a terra treme algumas vezes por ano em regiões tão distintas quanto o oeste de Goiás, o leste do Pantanal, o nordeste do Estado de São Paulo e o Triângulo Mineiro. Também era difícil entender por que reina uma calma quase eterna ao longo do rio Paraná, no norte de Minas, no leste de Goiás ou em quase todo o interior da Bahia.

Todas essas áreas se encontram no interior dos vastos blocos de rocha que formam a superfície terrestre, as placas tectônicas – e deveriam ser igualmente estáveis. Já se sabia que os grandes tremores de terra brotam apenas nos limites das placas tectônicas: a colisão de uma placa com outra, como um pedaço de mármore empurrando outro, gera pressões enormes que deformam e quebram suas bordas, originando os tremores – a rigor, só quando são intensos é que deveriam ser chamados de terremotos.

Tentou-se entender os tremores menores no interior das placas por meio de sinais aparentes que possam ter deixado, como rachaduras, desníveis de blocos de rochas e outras cicatrizes a céu aberto. Mas nenhuma explicação saltou à vista. A razão desses fenômenos parece estar mais embaixo, a centenas de quilômetros da superfície, na litosfera, a camada mais rígida e mais fria de rochas que recobre o planeta.

Com base em informações colhidas nos últimos 12 anos, o geofísico Marcelo Assumpção, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da Universidade de São Paulo (USP), concluiu que as áreas mais sujeitas a tremores no interior das placas apresentam uma litosfera mais fina. Por essa razão, liberam mais facilmente a pressão resultante dos movimentos das placas, a origem dos terremotos.

Contrariamente, nas regiões com litosfera mais espessa, também no interior das placas, a tensão se dilui e só mais raramente provoca os tremores. Em outras partes do mundo, a fragilidade da litosfera está diretamente associada à freqüência de terremotos, como no vale do Mississípi, nos Estados Unidos, em pontos dos Alpes, a extensa cadeia montanhosa do sul da Europa, e no norte da China.

No Brasil, muita gente acha que não, mas há, sim, terremotos – melhor dizendo, muitos sismos, o nome técnico que designa os tremores em geral. São cerca de 80 a 90 por ano, a maioria com magnitude inferior a 4, numa escala que vai até 9 – são, portanto, relativamente fracos, sobretudo quando comparados com os violentos tremores que ocorrem, por exemplo, no Japão, onde um dos terremotos mais intensos já registrados destruiu em 1923 cerca de 440 mil casas e matou 100 mil pessoas.

Situado na parte continental da placa Sul-americana, o Brasil é uma região considerada estável, ainda que sujeita às pressões da placa de Nazca, a oeste, que constituio fundo do Pacífico e gera os abalos nos Andes, e da cadeia submarina Meso-Atlântica, a leste.

É justamente o mergulho da placa de Nazca sob a placa Sul-americana que causa os intensos tremores no Acre: o mais recente, às 3h24 da madrugada de 20 de junho do ano passado, atingiu magnitude 7, mas por ter sido profundo quase não foi sentido pelos moradores de Cruzeiro do Sul – no último século, houve na região cinco sismos com magnitude acima de 7. Os maiores sismos do interior das placas tectônicas foram um pouco mais amenos e chegaram à magnitude 6, liberando, mesmo assim, energia correspondente à de 30 bombas atômicas como a lançada sobre Hiroshima no final da Segunda Guerra Mundial.

Em geral, esses tremores ocorreram nas regiões Central e Sudeste, acompanhadas pelos pesquisadores há mais tempo que as outras.

Foi essa também a área estudada pela equipe do IAG, em conjunto com cientistas da Universidade de Brasília (UnB).Com sua equipe, Assumpção analisou uma área de quase 2 milhões de quilômetros quadrados, equivalente a um quarto do território nacional – um retângulo delimitado ao norte pelas cidades de Cuiabá, em Mato Grosso, e Milagres, a cerca de 150 quilômetros de Salvador, na Bahia, e ao sul por Assunção, no Paraguai, até um ponto no oceano Atlântico situado a cerca de 300 quilômetros da cidade paulista de Santos e a 150 quilômetros de Cabo Frio, no litoral do Rio de Janeiro.

Nesse espaço afluem por ano cerca de dez tremores com magnitude igual ou superior a 3, suficiente para serem percebidos sem o auxílio dos sismógrafos, os aparelhos que detectam as ondas sísmicas, como são chamadas as vibrações causadas pelos abalos.Os pesquisadores determinaram a espessura da litosfera de maneira indireta, por meio de sismógrafos espalhados em 59 localidades que desde 1992 registram as ondas sísmicas.

Há dois tipos de ondas geradas pelo sismo e ambas, como a luz do sol mergulhando em uma piscina, sofrem reflexão e refração ao passarem por rochas mais ou menos duras: as ondas P (primárias) que atravessam qualquer parte do interior do planeta e chegam primeiro à superfície, enquanto as S (secundárias) propagam-se em velocidade menor e apenas em rochas sólidas.

A análise dos tempos de chegada das ondas P e S à superfície, após terem sido geradas por um terremoto do outro lado do mundo, tem sido o meio pelo qual avança o estudo das camadas mais profundas da Terra. Foi por meio dessas vibrações que se deduziu, em 1906, como deveria ser o centro do planeta – uma imensa e compacta esfera de ferro que permanece líquido a uma temperatura próxima a 3.500oC. Foi também com elas que se pôde mapear as regiões sísmicas ao redor do globo mais sujeitas aos tremores, que coincidem com os limites das placas tectônicas, por onde a energia interna da Terra escapa mais facilmente.

Agora, devidamente interpretadas pela equipe de Assumpção, as ondas P revelam onde é mais provável a terra tremer – são as regiões em amarelo e em vermelho no mapa. “Nesses pontos, os sismos não resultam do encontro de placas, mas da fragilidade interna das placas”, diz Assumpção. Nas regiões de litosfera mais fina, mais sujeitas ao acúmulo de tensões, o ponto de origem dos tremores – o hipocentro – encontra-se a menos de 5 quilômetros da superfície. “Os sismos são superficiais, mas as causas são profundas.”

Os pesquisadores fizeram uma tomografia da litosfera, do mesmo modo que os médicos examinam o interior do corpo. Analisaram a constituição das profundezas do planeta de 50 em 50 quilômetros, até chegarem, evidentemente com uma definição menor, a 1.300 quilômetros, quase um quinto da distância até o centro da Terra.Foi também por meio da tomografia das camadas mais profundas do planeta que Assumpção, anos atrás, apresentou a hipótese de que as placas tectônicas não se movem à deriva, como uma jangada sem vela.

Segundo seu modelo, esses imensos blocos de rocha se afastam ou colidem, fazendo os continentes vagarem muito lentamente ao redor do globo e às vezes causando terremotos, em conseqüência dos movimentos de uma grande parte do manto, a camada abaixo da crosta, em profundidades que no Brasil podem chegar a 700 quilômetros. Antes desse estudo, publicado na Nature em 1995, imaginava-se que apenas a camada superior do manto, a no máximo 200 quilômetros, fosse capaz de empurrar as placas (veja revista Pesquisa FAPESP nº 53, de maio de 2000).

Assumpção, desta vez, acompanhou 10 mil registros de ondas P, cuja velocidade pode variar de 6 a 13 quilômetros por segundo, com o propósito de analisar o perfil da litosfera – a dura casca de rochas que inclui a crosta, a camada de até 40 quilômetros que recobre a superfície, e uma faixa mais externa do manto, com 100 a 200 quilômetros de profundidade. Por fim, ele concluiu que a maior atividade sísmica ocorre preferencialmente em regiões nas quais essas ondas eram até 2% mais lentas em profundidades de 150 a 250 quilômetros.

A velocidade menor foi interpretada como resultado de temperaturas mais altas, já que as ondas se propagam mais lentamente em rochas mais quentes. De acordo com essa abordagem, as regiões mais quentes correspondem aos limites mais elevados da astenosfera, a parte maleável do manto, com temperaturas próximas a 1.300oC, que ocupa os primeiros 200 quilômetros abaixo da litosfera.

Depois de descobrir onde a astenosfera estava mais próxima da superfície, foi fácil determinar a espessura da litosfera: com uma temperatura média de 1.000oC, a extensão dessa camada correspondia à distância que faltava para chegar à crosta. Portanto, se a astenosfera fosse pouco profunda, a litosfera seria mais fina.

Foi nascendo assim um conjunto de mapas que indicam que a espessura da litosfera no Brasil pode variar de cerca de 100 quilômetros, exatamente onde há mais tremores, a cerca de 300 quilômetros, onde os abalos são bastante raros. De acordo com esse estudo, que será publicado no Geophysical Journal International, o ponto mais fino da litosfera, com uma profundidade de 100 a 150 quilômetros, encontra-se na região de Iporá, município a oeste de Goiás, onde se registram em média dois tremores por ano de magnitude igual ou superior a 3.
O que parece pouco é na verdade bastante quando confrontado com as vizinhanças de Goiânia, o sul de Goiás e a região de Belo Horizonte, em Minas, onde a litosfera é mais espessa – de 250 a 300 quilômetros – e se tem notícia de apenas um ou outro tremorzinho a cada 200 anos.Esse estudo elucida as razões pelas quais ocorreram alguns dos maiores terremotos no Brasil.

Um deles, com magnitude 5,4, ocorreu em 1964 na região de Miranda, leste do Pantanal, no Mato Grosso do Sul – Assumpção verificou que se trata de outra área em que a espessura da litosfera não deve ultrapassar 150 quilômetros. Deve ter sido também esse o motivo do tremor de magnitude 6,2 registrado em 1955 em Porto dos Gaúchos, município a 300 quilômetros ao norte de Cuiabá, que se encontra no limite da área analisada nessa pesquisa.

Provas na superfície
Na região Nordeste os tremores são mais freqüentes, mas não tão fortes quanto na região central do país. No final da década de 1980, durante quatro anos, de 1986 a 1989, houve uma sucessão de tremores em João Câmara, no Rio Grande do Norte, os mais fortes com magnitude 5, danificando centenas de casas. Dois meses atrás, em junho, na região de Belo Jardim, a 50 quilômetros de Caruaru, em Pernambuco, houve uma série de tremores pequenos, de magnitude 3. “Ainda não temos medições precisas, mas nas regiões mais ativas do Nordeste, no Rio Grande do Norte e no Ceará, possivelmente a litosfera é mais fina também”, comenta Assumpção.

Mesmo centrado no comportamento das ondas a centenas de quilômetros abaixo da superfície, seu estudo não está desvinculado dos contornos da paisagem, porque as regiões de litosfera mais fina, por serem mais frágeis, são também por onde pode escapar mais facilmente o magma produzido pelo calor da astenosfera. Originam-se assim as chamadas intrusões, que são rochas derretidas da base da litosfera que sobem à superfície – é o mesmo material que, em quantidades muito maiores, formam os vulcões.

O pico de Agulhas Negras, no Parque Nacional de Itatiaia, na divisa dos estados de São Paulo, Rio e Minas, com 2.787 metros de altitude, é um desses pontos de litosfera mais frágeis em que a lava encontrou por onde vazar, há cerca de 60 milhões de anos. Em Goiás, algo mais modesto e mais antigo: o morro do Engenho, de 200 metros, em Iporá, constitui os resquícios de intrusões ocorridas 80 milhões de anos atrás.

Assumpção pretende ampliar a área estudada e concluir o mapeamento da litosfera de todo o país. Feito hoje no ritmo possível, o trabalho conta com a colaboração de um conjunto de instituições nacionais – entre elas, as universidades federais de Mato Grosso do Sul e Rio Grande do Norte, além do Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de São Paulo – e de parceiros internacionais, como o Instituto de Ciencias de la Tierra, da Espanha, e a Northwestern University, dos Estados Unidos.

Não é fácil: só as áreas Central e Sudeste consumiram quase dez anos de trabalho. Mas Assumpção espera ainda contar com a participação de empresas, porque esse tipo de mapeamento – já concluído em países como Estados Unidos, Rússia, China e Austrália, entre outros – facilita a busca de minérios: é mais provável encontrar jazidas de diamante, por exemplo, em regiões antigas com litosfera mais espessa.

Talvez ainda mais difícil seja descobrir de onde vem o calor que torna a astenosfera mais rasa, afina a litosfera e abre as brechas para o magma passar. Os especialistas estão longe do consenso. Assumpção acredita que esses fenômenos possam estar ligados à Pluma de Trindade, uma coluna de rochas muito quentes do manto e relativamente fina (cerca de 100 quilometros de largura).

Proposta há 30 anos por geoquímicos para explicar a ocorrência de intrusões, como o morro do Engenho e o pico de Agulhas Negras, no Brasil, a pluma seria formada por rochas quase fundidas provenientes de um ponto fixo da base do manto, nas proximidades do núcleo, a cerca de 3 mil quilômetros de profundidade, que sobem e esquentam a litosfera. Há milhões de anos, parte dessa pluma que chegou à superfície pode ter formado a cadeia de montes submarinos próxima a Vitória e o arquipélago de Trindade, na costa brasileira.

Como a fonte de calor próxima ao núcleo não deve ter apagado, mais rocha quente continua subindo e provocando vulcanismo e intrusões na crosta, enquanto a superfície se desloca com as placas tectônicas. Se fosse assim – eis o primeiro problema dessa idéia -, as dezenas de intrusões atribuídas à pluma deveriam estar, de algum modo, alinhadas de acordo com a idade. Mas não: parecem misturadas, as mais antigas e as mais recentes juntas, sem uma ordem clara.

O segundo problema é que a pluma é fina e profunda o bastante para escapar dos exames de tomografia e seu efeito sobre as ondas sísmicas é quase imperceptível. Há quem prefira acreditar que o magma não provém de regiões tão profundas, mas de porções mais rasas, a até 700 quilômetros. Neste caso, as elevações da astenosfera seriam causadas por correntes de convecção, como as que movem a água fervendo numa panela, confinadas na parte superior do manto. Também não é fácil provar.

O projeto
Estrutura Crustal e Sismicidade do Sudeste (nº 01/06066-6); Modalidade: Linha Regular de Auxílio a Pesquisa; Coordenador Marcelo Sousa de Assumpção – IAG/USP; Investimento R$ 89.141,42 (FAPESP)

Republicar