ROSI BRASIL / ABRA Lei de Biossegurança, sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva no dia 24 de março, alargou as perspectivas para a biotecnologia no país: autorizou e regulamentou as investigações com células-tronco embrionárias de seres humanos e liberou o plantio e comercialização de organismos geneticamente modificados (OGMs). Os sete vetos do presidente não comprometeram o projeto.
A decisão do Congresso, ratificada pelo presidente da República, é um reconhecimento da capacidade dos pesquisadores brasileiros de fazer ciência na fronteira do conhecimento. A aposta na competência da pesquisa nacional poderá transformar a nova lei num instrumento de independência tecnológica e ao mesmo tempo garantir que a sociedade usufrua dos resultados dos investimentos em ciência e tecnologia.
A nova lei permitirá que pelo menos uma dezena de laboratórios – muitos deles já desenvolvendo pesquisas com células-tronco de medula e cordão umbilical – inicie as investigações com células-tronco embrionárias que, no futuro, podem apontar caminhos para o tratamento de doenças como mal de Parkinson, diabetes, lesão da medula espinhal, entre outras. As duas linhas de pesquisa já contam com investimentos programados de R$ 28,3 milhões, conforme anunciou o ministro da Ciência e Tecnologia, Eduardo Campos.
Na área dos transgênicos, as pesquisas estão mais avançadas. As perspectivas são promissoras e em curto prazo. Na próxima safra, por exemplo, agricultores de todo o país terão acesso a sementes de soja geneticamente modificadas desenvolvidas pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), com ganhos de produtividade e renda. Empresas como a Monsanto, Bayer Seeds e Syngenta Seeds também estão prontas para colocar novos produtos no mercado.
Mobilização de pesquisadores – A tramitação da lei no Congresso, até a sua aprovação, foi marcada por intensa polêmica e exigiu a mobilização de cientistas. Patrícia Pranke, especialista em células-tronco umbilicais, das faculdades de Farmácia e de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), por exemplo, esteve em Brasília pelo menos umas 20 vezes no último ano para fazer “um trabalho de formiguinha”, como ela diz. Junto com a geneticista Mayana Zatz (veja entrevista), Marco Antonio Zago, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto e coordenador do Centro de Terapia Celular, e Drauzio Varela, médico oncologista, Patrícia participou de audiências públicas no Senado e de diversos encontros com deputados na Câmara com o objetivo de esclarecer eventuais dúvidas de parlamentares.
Os resultados compensaram. “Foi a primeira vez que senadores, deputados e cientistas se uniram. Vencemos uma guerra santa”, diz Darcísio Perondi (PSDB-RS), relator da matéria na segunda rodada de votação na Câmara.
A votação da lei também levou a Brasília integrantes do Movimento em Prol da Vida (Movitae), que reúne entidades representativas de pais e pacientes com doenças neuromusculares. O Movitae foi criado em 2003, quando o Congresso Nacional iniciava os debates sobre clonagem terapêutica, técnica que ficou fora da Lei de Biossegurança. “No dia da votação reunimos na Câmara cerca de 50 pessoas de todos os cantos do país”, conta Andréa Bezerra de Albuquerque, presidente do Movitae, que permaneceu em Brasília, de prontidão, até a sanção presidencial.
Entre os doentes mobilizados pelo Movitae estavam seis representantes da Associação Brasileira de Distrofia Muscular. Eles circularam pelos corredores da Câmara, aglomeraram-se no plenário e, junto com pesquisadores e deputados, comemoraram a aprovação da lei. “Perguntamos a um de nossos pacientes, com 8 anos, o que mais o tinha agradado em Brasília. E ele respondeu: a vitória”, lembra Munira Tenezi Guilhon Sá, diretora-executiva da associação.
A mobilização dos doentes comoveu o presidente da Câmara, deputado Severino Cavalcanti (PP-PE). Ele já tinha se mostrado contra a aprovação da matéria, alegando motivos religiosos, apesar dos apelos da filha, a terapeuta ocupacional e deputada estadual em Pernambuco Ana Cavalcanti. “Antes mesmo de ser eleito presidente da Casa, eu já vinha conversando com ele para fazê-lo mudar de idéia”, revelou Ana. Mayana e Patrícia também tentaram convencer o deputado. “Mas o que mais sensibilizou meu pai foi a presença dos portadores de distrofias e suas mães na entrada do plenário”, disse Ana. Cavalcanti colocou a proposta em debate, impediu a suspensão da sessão, pleiteada pelos opositores do projeto, mas retirou-se do plenário antes do final da votação. De qualquer forma, a rapidez com que a Câmara aprovou a matéria surpreendeu os pesquisadores.
Vencer a resistência da Câmara, no entanto, não foi uma tarefa fácil. Por razões religiosas ou por falta de informação, muitos deputados temiam que, ao autorizar as pesquisas com células-tronco, estivessem legitimando a clonagem de seres humanos. Outros iam até mais longe: suspeitavam estar estimulando a prática do aborto. Essa preocupação foi uma das razões que levaram o mesmo plenário a negar autorização para as pesquisas com células embrionárias, na primeira votação da matéria, em fevereiro de 2004.
Uma parte das dificuldades na tramitação do projeto, no entanto, tem que ser creditada à sua abrangência. A proposta enviada pelo Executivo à Câmara, em 2004, buscava solução definitiva para a polêmica em torno do plantio da soja Roundup Ready (RR), da Monsanto, autorizado pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), cuja competência foi contestada por ação civil pública. No meio de um imbróglio jurídico, faltou semente no mercado nacional e os produtores gaúchos compraram e plantaram sementes RR argentinas. Na ausência de um marco legal, o governo teve que editar uma medida provisória para garantir a colheita e comercialização da safra 2002/2003.
O governo então constituiu uma comissão para formular um projeto de lei que encerrasse a batalha dos transgênicos. Juntou à proposta a questão das células-tronco embrionárias e enviou ao Congresso. “Achamos esquisito o projeto juntar as duas coisas”, lembra Mayana. O projeto sincrético foi analisado por uma comissão especial e acompanhado de perto por pesquisadores e representantes de associações científicas. O parecer do deputado Aldo Rebelo (PCdoB-SP) – que autorizava as pesquisas com células-tronco, a clonagem terapêutica e o plantio e comercialização de transgênicos – já estava pronto para ser levado a plenário quando, às vésperas da votação, Rebelo foi nomeado ministro e substituído na relatoria pelo deputado Renildo Calheiros (PCdoB-CE).
Calheiros preparou o seu próprio parecer. Considerou a possibilidade de desmembrar o projeto que tratava de assuntos diferentes, mas, sem respaldo, mudou de idéia. Na primeira versão do relatório manteve a autorização para pesquisas com células-tronco, ele conta. “Mas toda proposta tem que ser negociada”, argumenta. Ante a resistência das bancadas evangélica e católica, vetou a clonagem terapêutica e as pesquisas com células-tronco embrionárias.
No caso dos transgênicos, cedeu à pressão dos ambientalistas: limitou a competência da CTNBio à autorização para pesquisas, conferindo ao Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Renováveis (Ibama) e Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) poder para decidir sobre o plantio e comercialização de OGMs.
O projeto aprovado pela Câmara e então enviado ao Senado foi qualificado como um “Franskenstein jurídico” por Carlos Vogt, presidente da FAPESP. O Conselho Superior da Fundação também se manifestou, apelando aos senadores que ouvissem os argumentos da comunidade científica. Outras 13 entidades, entre elas a Academia Brasileira de Ciências, se posicionaram a favor das pesquisas com células-tronco e contra a limitação de competência da CTNBio.
O Senado ouviu pesquisadores, promoveu audiências públicas e modificou a decisão da Câmara. O relatório do senador Ney Suassuna (PMDB-PB), com o aval dos cientistas, manteve o veto à clonagem terapêutica, mas resgatou a autorização para pesquisas com células-tronco e o poder decisório da CTNBio, no caso do plantio e comercialização de transgênicos. A informação venceu o medo e o projeto foi aprovado por ampla maioria: 53 votos a 2.
O papel da mídia
Na decisão do Senado, é bom que se saliente, teve peso a mobilização da mídia. Antes da votação, o Fantástico, da Rede Globo, exibiu, por três domingos consecutivos, programas da série How to build a human, comprada da BBC de Londres, abordando os benefícios da utilização das células-tronco no tratamento de doenças. Os jornais de maior circulação no país, como O Globo, O Estado de S. Paulo e a Folha de S.Paulo também se manifestaram em editoriais contra o que qualificaram de “obscurantismo” e “bruxaria”.
O projeto, modificado, voltou à Câmara que, nesse segundo round, teria apenas poder de veto. Os opositores bem que tentaram derrubar o artigo 5º do texto, que autorizava as pesquisas com células-tronco. Todos os partidos, com exceção do Prona, demonstraram-se a favor do texto, que foi aprovado por 366 votos contra 59. Os ambientalistas tentaram restringir os poderes da CTNBio, mas a proposta do Senado prevaleceu apoiada por 352 votos contra 60.
Mas ainda era cedo para comemorações. Aprovado nas duas Casas, o projeto de lei de Biossegurança foi encaminhado para a Casa Civil para análise do mérito, constitucionalidade e legalidade, antes de ir à sanção presidencial. Temia-se que, sob pressão de católicos e ambientalistas, o presidente vetasse alguns artigos do projeto.
As preocupações não eram infundadas: um dia depois da aprovação o Ministério do Meio Ambiente divulgou nota reiterando sua posição contra o projeto: o poder exclusivo e vinculante na liberação do plantio e comercialização dos transgênicos conferido pela nova lei à CTNBio relegaria os órgãos públicos que atuam na área ambiental a um papel secundário.
O governo também recebeu manifestações a favor do projeto, como a do Conselho Superior da FAPESP, que, no dia 10 de março, encaminhou carta ao presidente solicitando que sancionasse o projeto de lei, tal como aprovado, “alicerçando, assim, as bases seguras, as esperanças de cura e de melhor qualidade de vida para milhares de pessoas que vivenciaram e vivenciam as expectativas desse grande momento”.
Em artigo publicado em O Globo, no dia 21 de março, o ministro Eduardo Campos afirmou que a liberação das pesquisas com células-tronco de embriões humanos representa “o primeiro grande passo para o ingresso do país na fronteira da medicina”. Agora, disse, “o importante é recuperar o tempo perdido”. Observou que, mais cedo ou mais tarde, o Brasil terá que se preparar para um passo ainda mais ousado: autorizar a clonagem terapêutica. E ressalvou: “Ele será dado quando as condições sociais e políticas estiverem amadurecidas, representando mais um marco na afirmação do trabalho dos cientistas brasileiros”.
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