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Física

O frio e o calor que vêm dos ímãs

Equipe da Unicamp descobre propriedades inesperadas de materiais magnéticos

Novos conceitos científicos estão transformando o modo como os eletrodomésticos funcionam. Primeiro foi a televisão, cuja imagem não é mais gerada apenas pela colisão de elétrons ultra-acelerados com uma tela fluorescente. Aparelhos com telas de cristal líquido ou de plasma, por meio de correntes elétricas ou de gases que originam os sinais luminosos, oferecem imagens mais nítidas, ainda que a um preço equivalente ao de um carro – de R$ 20 mil a R$ 80 mil. O próximo aparelho a passar por uma metamorfose similar deve ser a geladeira: a próxima geração não vai funcionar por meio da expansão e da contração de um gás, que retira calor do ar ao circular pelos canos das paredes do refrigerador, mas por meio da ação de campos magnéticos, que devem cumprir a mesma tarefa com maior eficiência e menor perda de energia.

Nos protótipos de refrigeradores magnéticos – já em desenvolvimento em alguns países como Estados Unidos, Japão e França – o material adotado para reduzir a temperatura é o gadolínio, um metal escolhido por ser maleável e por apresentar uma eficiência aceitável à temperatura ambiente. Mas é quase certo que o gadolínio seja provisório: para os novos refrigeradores, buscam-se materiais capazes de esfriar ou esquentar com maior eficiência quando submetidos a um campo magnético. Descobertas recentes realizadas em Campinas mostram que podem de fato existir alternativas com melhor capacidade de refrigeração.

Físicos da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) verificaram que um composto formado por manganês e arsênio, sob alta pressão, apresenta uma capacidade de retirar calor do ambiente 20 vezes maior que a do gadolínio à pressão ambiente, de 1 atmosfera, a mesma sob a qual vivemos na superfície do planeta. É um achado científico relevante, ainda que por enquanto esteja longe de aplicação. A alta pressão a que esse composto de manganês e arsênio – o MnAs – tem de ser submetido para exibir esse resultado é apenas uma das limitações que impedem essa propriedade de ser usada de imediato nos protótipos de refrigeradores magnéticos.

Mas pode sair daí algo novo até mesmo em termos práticos porque essa capacidade tão intensa de absorver calor – batizada pelos físicos da Unicamp de efeito magnetocalórico colossal – não havia sido observada antes em nenhum outro material. “Essa descoberta abre um campo de pesquisa de outros compostos que apresentem o efeito colossal e consigam extrair muito mais energia da região a ser esfriada, sem as limitações do manganês-arsênio”, comenta o físico Sérgio Gama, pesquisador da Unicamp e coordenador desse estudo, relatado na edição de 3 de dezembro da Physical Review Letters.

Nesse mesmo artigo, Gama também propõe uma explicação para o efeito colossal. Como ele e sua equipe verificaram experimentalmente, o manganês-arsênio esfria por meio de três efeitos associados. O primeiro é o mecanismo mais comum dos materiais desse tipo: o desalinhamento dos spins dos elétrons. O spin é uma propriedade magnética das partículas atômicas elementares, com direção e sentido, assim como o campo magnético da Terra. A orientação do spin de uma partícula pode ser afetada por um campo magnético externo ou pelos spins das partículas vizinhas: quando os spins se alinham no mesmo sentido, a temperatura de um corpo qualquer aumenta – esse é o princípio pelo qual se pretende chegar a uma refrigeração mais eficiente. O segundo mecanismo que explica o efeito colossal é a transformação da própria estrutura atômica – a rede cristalina – do MnAs. Finalmente, o terceiro e mais importante artifício do MnAs para absorver energia resulta da interação da rede cristalina com o campo magnético, expressa por meio da deformação do material.

Até agora, o efeito magnetocalórico – a capacidade de um material magnético absorver ou liberar calor quando submetido a um campo magnético – era explicado essencialmente por meio do alinhamento ou desalinhamento dos spins, sem que as mudanças na rede dos átomos tivessem muita importância. Quando submetidos a um campo magnético, em um ambiente termicamente isolado, os spins dos elétrons se alinham em um só sentido, abdicando assim do habitual pandemônio em que vivem. Esse ordenamento significa uma diminuição da entropia – ou desordem – de um sistema físico. Como não há troca de calor com o ambiente, a entropia total deve ser constante: em conseqüência, os átomos ou moléculas do material submetido ao campo se desorganizam de modo a compensar o alinhamento dos spins. Maior desordem, maior agitação atômica – e a temperatura do material aumenta.

É por meio do alinhamento de spins que um pedaço de gadolínio esquenta 4°C quando colocado em um ambiente isolado termicamente, ao qual se aplica um campo magnético de 1,5 Tesla, cerca de 30 mil vezes maior que o campo magnético terrestre. Como o efeito é reversível, se retirado do campo, o gadolínio esfria os mesmos 4°C. Parece pouco para manter a cerveja bem gelada? Acontece que a construção dos refrigeradores magnéticos prevê o uso de trocadores de calor especiais, chamados regeneradores, que ampliam essa variação de temperatura. Para se tornar comercialmente viável, a refrigeração magnética depende também de novos arranjos geométricos de ímãs permanentes – como os já usados no leitor de disco rígido do computador ou nos motores que movem o limpador de pára-brisa dos carros – para que se formem campos magnéticos intensos e de baixo custo.

Com o gadolínio, a capacidade de absorver ou ceder calor é de origem puramente magnética: resulta principalmente do alinhamento dos spins. É assim que acontece também com outros materiais que apresentam o efeito magnetocalórico clássico, o mais tênue dessa categoria. É também o mecanismo básico pelo qual funcionam os materiais que apresentam o outro efeito conhecido até agora, o chamado efeito magnetocalórico gigante, evidentemente mais intenso que o clássico, mas inferior ao colossal. Algumas ligas que exibem o efeito gigante – como a chamada 5:2:2, formada por cinco átomos de gadolínio, dois de germânio e dois de silício – contam também com outro artifício: absorvem um tanto de energia, o chamado calor latente, enquanto sua temperatura permanece constante. É o mesmo fenômeno que se verifica com um bloco de gelo derretendo: o gelo absorve calor, que é usado em sua transformação para o estado líquido; sua temperatura estaciona ao chegar a 0°C e só volta a subir depois de todo o gelo ter derretido.

Deformação
Gama demonstrou experimentalmente que, no caso do manganês-arsênio, além do alinhamento dos spins dos elétrons e do calor latente, o próprio conjunto dos átomos do material, que os físicos chamam de rede cristalina, contribui de modo decisivo para explicar essa notável capacidade de extrair calor do ambiente: submetido a pressão e a um campo magnético, o manganês-arsênio também se deforma, provocando o efeito colossal, que é sete vezes maior que o efeito gigante. Outros materiais apresentam essa propriedade, chamada de efeito magnetoelástico, que normalmente causa sua deformação. Mas o MnAs é notável: contrai 3%. “É um valor absurdamente alto”, diz Gama, “já que a deformação de outros materiais é dezenas ou centenas de vezes menor”.

Embora dotado dessas propriedades, o manganês-arsênio não é um material conveniente para aplicações porque uma de suas características gera um problema insuperável: mesmo à pressão ambiente, não retorna ao ponto de origem quando submetido a um ciclo de aquecimento e resfriamento. Quando a temperatura aumenta, os spins se desalinham e seu arranjo atômico se modifica ao atingir 43°C – é esse o ponto em que ocorre a chamada transição magnética e estrutural. Mas o MnAs só volta ao estado inicial, com os spins alinhados e com a estrutura hexagonal, em uma temperatura muito mais baixa, de 35°C. É como se a água virasse vapor a 100°C e, resfriada, só voltasse ao estado líquido a 80°C. Se o MnAs fosse usado em um refrigerador, seria necessário uma energia extra para fazer o ciclo de refrigeração se fechar e outro ciclo recomeçar – algo bastante ineficiente.

“Os ciclos de refrigeração precisam começar e terminar à mesma temperatura ou com variações mínimas, para reduzir as perdas de eficiência”, comenta Gama. Para complicar, quando o MnAs é submetido a altas pressões, essa diferença de temperatura aumenta ainda mais: chega a 32°C. Em busca de alternativas, o grupo da Unicamp descobriu, em estudos de outros grupos, que a diferença de temperatura entre o início e o fim do ciclo, a chamada histerese, aproxima-se do zero à pressão ambiente quando se substitui uma pequena parte (5%) do arsênio por antimônio. “Os compostos com maior quantidade de antimônio parecem promissores”, diz o coordenador do grupo da Unicamp, “embora ainda se observe histerese sob pressão”.

Célula brasileira
Gama trabalha com materiais magnetocalóricos desde 2000, mas começou a estudar o comportamento de materiais sob pressão a partir do que ele e seu grupo conheceram em um congresso de magnetismo realizado em julho de 2003 em Roma, capital da Itália. Foi ali que viram um dispositivo do tamanho de uma caneta – uma célula de pressão -, produzida, como descobriram em seguida, por um carioca que havia criado uma empresa em Cambridge, na Inglaterra. Como o preço era alto – cerca de US$ 20 mil -, os físicos da Unicamp resolveram construir uma célula semelhante no Brasil. Fizeram um projeto próprio e conseguiram, aproveitando a habilidade dos técnicos do Instituto de Física. Construíram três células, já utilizadas por outros grupos de pesquisa do país. Cada uma delas custou menos de R$ 3 mil em materiais.

A célula brasileira, que estava pronta dois meses depois do congresso na Itália, é um cilindro de cobre-berílio de 10 centímetros de comprimento por 8 milímetros de diâmetro, com dois pistões travados por dois parafusos. Os pistões pressionam uma cápsula com uma amostra de manganês-arsênio com 1 a 2 milímetros imersa em óleo mineral. Esse cilindro é colocado dentro de um aparelho chamado magnetômetro com um sensor supercondutor por interferência quântica (do tipo Squid, na sigla em inglês), que mede o magnetismo do material que se deseja estudar, colocado dentro de uma cápsula de teflon. Com esse aparato, a equipe de Gama pôde então medir o efeito magnetocalórico sob pressão, que na época ainda não havia sido descrito.

O primeiro material a ser medido sob pressão foi justamente o manganês-arsênio, já estudado pelos físicos da Unicamp por apresentar dois efeitos gigantes: o magnetocalórico e o magnetoelástico. Gama só não foi o primeiro a reportar o efeito magnetocalórico sob pressão porque um grupo espanhol da Universidade de Zaragoza, junto com outro, de Praga, República Tcheca, publicou antes, também na revista Physical Review Letters, os resultados a que haviam chegado com um composto formado por térbio, germânio e silício. Mas era apenas o efeito gigante, não o colossal.

O Projeto
Estudo do efeito magnetocalórico em compostos intermetálicos (nº 01/05883-0); Modalidade Projeto Temático; Coordenador
Sérgio Gama – Unicamp; Investimento R$ 2.285.714,11 (FAPESP)

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