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Isaias Raw

Isaias Raw: Cientista bom de briga

O presidente da Fundação Instituto Butantan, Isaias Raw, fala sobre o ensino de ciência e a produção de vacinas

Desde o tempo em que era estudante na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), no final dos anos 1940, Isaias Raw conviveu com dois tipos de fama: a de empreendedor e a de brigão. Ao unir os dois qualificativos, ele se transformou num extraordinário agitador educacional, com idéias e projetos dirigidos a professores e alunos que iam do ensino médio ao curso superior – no caso, medicina. Até ter seus direitos cassados pelo regime militar, por meio do Ato Institucional nº 5, Raw foi responsável por grande movimentação nesse setor. A nomeação para o Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura (Ibecc), em 1952, o liberou para organizar pioneiramente feiras, clubes de ciência e museus, a elaborar currículos, treinamento de professores e produção de equipamentos de laboratórios. Raw também criou e liderou a fabricação dos famosos kits de química, eletricidade e biologia, caixas repletas de experiências que podiam ser realizadas em casa por estudantes comuns.

Ainda nessa primeira fase, entre os anos 1950 e 1969, Isaias Raw manteve um ritmo alucinante de atividades. Fundou a Editora da Universidade de São Paulo e a da Universidade de Brasília, unificou os exames vestibulares de São Paulo (junto com o professor e sanitarista Walter Leser), dirigiu a Fundação Brasileira para o Desenvolvimento do Ensino de Ciências (Funbec), criou a Fundação Carlos Chagas e o Curso Experimental de Medicina da FMUSP. Em meio a gestões de programas e fundações, continuou um pesquisador atuante em bioquímica, publicando em revistas especializadas no exterior. Quando de sua cassação, trabalhou em Israel e em universidades norte-americanas.

Nos anos 1980 em diante, de volta ao Brasil, Raw instalou-se no Instituto Butantan e ajudou, de modo decisivo, a transformá-lo no maior centro produtor de vacinas do país, com 200 milhões de doses anuais – hoje é o presidente da Fundação Instituto Butantan. Este ano ganhou o Prêmio Conrado Wessel de Ciência e Cultura, edição 2004, na categoria Ciência Geral. Aos 78 anos, casado, com os três filhos divididos entre os Estados Unidos e Israel. e três netos, ele ri quando percebe a quantidade de informação que despejou sobre os entrevistadores: “Sei que é impossível enquadrar, em uma única entrevista, uma vida de 65 anos, contando o laboratório na garagem, de atividades, onde me diverti fazendo ciência”.

Como o senhor se interessou por educação científica?
Comecei estimulando a observação em análise experimental, criando uma feira de ciências em São Paulo nos anos 1950. A idéia era ocupar um salão da Galeria Prestes Maia com uma exposição a cada três ou quatro meses. A feira de ciências, naquele tempo, era uma forma de estimular a criançada a fazer e apresentar seus trabalhos. Depois inventei de levar dez estudantes selecionados, do ensino médio, para a reunião da SBPC [Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência] e eles se apresentavam como se fossem pesquisadores que mostram seus resultados. A coisa começou nos anos 1950 também porque existia um organismo chamado Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura, o Ibecc. Era a tradução do nome Unesco e representava esse organismo no Brasil.

O objetivo era atrair o jovem para a ciência desde cedo?
Se não atraíamos os jovens no equivalente, naquele tempo, ao colégio, para se dirigir a uma carreira científica, já perdíamos o aluno. Tem que começar muito cedo. Colocávamos dez ou 20 jovens escolhidos por nós para fazer experiências – construir aparelhos, por exemplo, com um torno que era da Escola Politécnica num tempo em que não tinha motor, que era com pedal, e iam fazer a experiência. Mas rapidamente ficou claro para mim que 20 pessoas não iam mudar o Brasil. Tínhamos que achar um outro jeito de multiplicar esse processo. E esse processo era o clube de ciência – que foi redescoberto muitos anos depois, no Rio de Janeiro, pelo bioquímico Leopoldo de Meis, da UFRJ [Universidade Federal do Rio de Janeiro]. O problema é que nossos clubes eram muito modestos em termos de número. Achei que, em vez de investir na formação de uma elite, deveria intervir na escola secundária e partir para a massificação usando os kits e minikits de química, eletricidade e biologia.

Como surgiram os kits de ciência?
Eu tinha um laboratório no quintal da minha casa. Naquele tempo se comprava ácido na esquina, na loja de ferragens. Tive a idéia de fazer algo mais organizado, que as pessoas pudessem comprar – um pacote de material, com reagentes e o que fosse necessário para trabalhar em casa, que pudesse ser fechado e guardado. Isso já existia comercialmente na Alemanha nos anos 1930. Criei uma mala, na verdade um caixote de madeira com uma alça. Aí surgiram os kits de química, de eletricidade, de biologia e até de matemática.

O senhor bolou os kits, mas quem financiava a fabricação?
Fazíamos na Faculdade de Medicina, primeiro no 4º andar, depois ocupamos a garagem. Quando o Ulhôa Cintra foi reitor da USP, de 1960 a 1963, ganhamos um galpão na Cidade Universitária e tudo passou a ser industrializado. Chegamos a ter 650 operários. Quando saí do projeto, a Editora Abril topou fazer isso comercialmente. Inicialmente recebíamos doação da Fundação Rockefeller e, logo após, da Fundação Ford. Depois fui ao Ministério da Educação e vendi a idéia para o Anísio Teixeira, um educador brilhante. A cada 15 dias eu ia lá, para conversar. O problema era que o Anísio não era cientista, mas filósofo. Tudo o que ele dizia numa semana desdizia 15 dias depois, com a mesma tranqüilidade.

O que é um defeito grave, diga-se de passagem.
Não é não, porque era uma conversa lógica, encadeada. O Anísio Teixeira foi o primeiro sujeito que concebeu a escola como deveria ser: pública, gratuita e universal.

O senhor geria a fábrica de kits e fazia pesquisa ao mesmo tempo?
Ao mesmo tempo. Fazia pesquisa em bioquímica. O foco da pesquisa foi mudando. Antes da genômica o importante era entender metabolismo e enzima. Naquele tempo a grande promessa era que, se se conhecia a diferença entre, digamos, o homem e um parasita, você era capaz então de identificar uma droga que ia inibir a enzima do parasita, que difere da do homem, e curava a doença. Foi naquele momento que se começou a fazer bioquímica. Comecei com o Tripanossoma cruzi quando era aluno, nos anos 1940. Vi que aquela área do conhecimento estava vazia e comecei a trabalhar nisso.

Como o senhor foi parar no Instituto de Química?
Havia a necessidade de criar massa crítica, com gente de todas as áreas conversando e trocando experiências. A Faculdade de Medicina era muito fechada e não deixava contratar profissionais não-médicos. Aí veio a idéia, ainda no tempo do Ulhôa Cintra, de pegarmos o Departamento de Bioquímica, que eu chefiava, pôr no caminhão e levar para o Instituto de Química, cujo prédio nem estava completamente construído. A Faculdade de Medicina reagiu extremamente mal a isso. Mas foi essa ação que levou a criação, na prática, da USP. Até então a universidade era apenas um condomínio. Mesmo já implantada, a Cidade Universitária era um condomínio, as faculdades eram isoladas e ninguém falava com ninguém. O Cintra me deu cobertura naquela ocasião. Ele mandou construir o Instituto de Química, que era diretamente ligado à Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Depois que eu mudei para lá, com o tempo, mudou a Farmácia, praticamente inteira, e as outras. Houve uma evolução clara da universidade depois dessas mudanças.

O senhor sempre quis ser pesquisador?
Eu entrei na faculdade definitivamente interessado em fazer pesquisa, não em ser médico. A Faculdade de Medicina era um dos poucos lugares onde havia tempo integral, laboratórios e permitia fazer pesquisa. Eu tinha um tio que era um médico “de massa”, atendia mil pessoas por mês. Ele tinha alguns livros de química farmacêutica que me interessavam. Meu interesse e vontade de pesquisar surgiram quase por geração espontânea.

Mas foi a partir dessas leituras que o seu entusiasmo cresceu, não foi?
É. De alguns livros, um em especial sobre o Louis Pasteur, que ficou obsoleto, obviamente, ninguém tinha descoberto uma porção de coisas na época. Mas era um livro muito bom, contava as histórias do Pasteur, que foi outro sujeito que surgiu assim, quase por acaso, também. Toda a ciência do século 19 surgiu desse jeito, alguém que se interessou por alguma coisa e foi fazer. O Pasteur inventou um modelo, que acho que é o modelo que tentei ressuscitar no Butantan. O Pasteur dizia “vou fazer pesquisa, fazer desenvolvimento, produzir o produto, ganhar dinheiro e financiar minha pesquisa”.

Seus caminhos como pesquisador não são nada convencionais.
Vou dizer uma coisa: me diverti muito na minha vida. Eu assisti a poucas aulas na Faculdade de Medicina, sabe por quê? Porque eram sempre as mesmas aulas. Nada mudava. E você, em metade do tempo, lê um livro sério e aprende mais do que ouvindo um professor às vezes não muito competente. Meu grande problema era saber que matéria tinha sido dada, para poder estudar para o exame. Olhando os cadernos dos meus colegas da primeira fila, que enchiam páginas e páginas, descobri que não chegava à conclusão sobre qual era o tema da aula. Quer dizer, esse sujeito, por mais que ele estudasse aquele maldito caderno, não podia ter uma nota adequada porque não tinha a visão do que foi ensinado.

Em 1964 o senhor foi preso acusado de subversão. Como foi esse episódio?
Fui preso como um sujeito altamente periculoso. Vinte e cinco soldados vieram me prender às 11 horas da noite, quando estava entrando em casa. Foi um momento terrível porque, naquela época, minha sogra estava morrendo e meus três filhos eram pequenos. E há algo muito sério: como é que você explica para os seus filhos pequenos que a polícia está errada e você certo? Não existe isso. Não tem explicação.

O que alegaram para o senhor?
Que eu era um violento e subversivo comunista. Fiquei 13 dias preso e fui libertado por dois motivos. O primeiro deles é que eu iria para um congresso de bioquímica em Nova York e uns 12 professores, incluindo sete ganhadores de Prêmio Nobel, escreveram um telegrama de protesto para o presidente da República, o marechal Castello Branco, e isso foi notícia na Folha de S.Paulo. Então criou-se um caso. O segundo motivo é que o então diretor de ensino de ciências da Unesco, Albert Baez, estava no Brasil e tinha uma hora marcada para conversar comigo sobre ensino de ciências. Como estava preso, ele foi ao quartel. Esses dois fatos ajudaram a me libertar. Na verdade, minha prisão ocorreu porque o Exército era ignorante, mal- informado e foi enrolado. Na USP tinha professores importantes que formaram uma comissão de extrema direita e envolveram o Exército. Eu era candidato imbatível para professor catedrático da Faculdade de Medicina e essa comissão envolveu meu nome em atividades subversivas para me tirar do páreo.

O senhor participava de organizações de esquerda?
Não. Uma vez a antiga TV Record noticiou que eu era chefe de uma célula comunista que se reunia em Washington. O que houve é que o programa de ensino de ciência do qual eu estava à frente foi assimilado pela Unesco, que tinha interesse muito grande pelo tema. Durante algum tempo houve uma série de reuniões internacionais financiadas pela Opas [Organização Pan-americana de Saúde] para rever o ensino de física, de química, de biologia, assim por diante, algumas delas em Washington, no fim dos anos 1950. E eu era o denominador comum, porque a Funbec [Fundação Brasileira para o Desenvolvimento do Ensino de Ciências], que eu dirigia, trabalhava em todas essas áreas.

Como foi sua cassação?
Em 1969 já foi diferente. Quando me soltaram, em 1964, minha vida continuou normalmente. Fiz o concurso para catedrático, embora tentassem me impedir, assumi meu posto e continuei trabalhando. Em 1969 fui aposentado pelo o AI-5 [Ato Institucional nº 5]. Mas entre 1964 e 1969 surgiu uma porção de coisas. O Ibecc tinha virado Funbec, uma fundação muito importante, não só para o ensino de ciência – era a primeira indústria de eletrônica médica. No Brasil ninguém tinha equipamento médico. Só se tirava eletrocardiograma quando o médico tinha importado, por conta própria, um aparelho de eletrocardiograma. Monitor, desfibrilador, não tinha nada disso. Eu também estava profundamente envolvido com o vestibular unificado, que era feito pela Fundação Carlos Chagas.

Isso foi na época que o senhor era presidente da Fundação Carlos Chagas?
É. Havia todo um complexo relacionado à educação e ao ensino de ciências que funcionava harmonicamente. No fundo, isso representava poder. Em 1969 eu tinha a soma desse poder todo e não era submisso. Era um peão que tinha que ser removido do caminho.

Uma vez cassado o senhor fez o quê?
Fui embora do Brasil. Primeiro, para a Universidade Hebraica de Jerusalém, em Israel. Eles estavam atrás de mim havia muito tempo por causa do ensino em ciências. Mas não funcionou. Independentemente do problema de língua, que não é fácil, é muito difícil interferir na educação de um outro país, se você é estrangeiro. Não tem jeito.

E para onde o senhor foi?
Entrei no MIT [Massachusetts Institute of Technology] primeiro, nos Estados Unidos. A vida lá foi conturbada porque caí de pára-quedas e sem minha equipe de pesquisa. Pesquisa não é uma atividade individual, mas de um grupo que trabalha harmonicamente. Pensei, vou fazer aquilo que sei, que é trabalhar com ensino em ciências. Era um negócio que nós tínhamos começado no Brasil, onde éramos pioneiros. Nos Estados Unidos se dizia o seguinte: o ensino de ciências é muito sério para se deixar nas mãos de um professor. É a comunidade científica que tem de dizer para onde vai a ciência. No MIT tinha algo parecido com a Funbec e começamos um projeto, que chegou a ter um impacto muito grande e era o reverso do que eu fazia no Brasil: como é que você ia ensinar ciência para quem não quer aprender ciência? Então nós inventamos um projeto. Como o americano é louco para saber o que come, decidimos que cada estudante juntaria tudo o que  comia num dia dentro de um único saco: Coca-cola, hambúguer, tudo. E depois passamos meio ano analisando com método o que ele tinha comido naquele dia. Esse programa teve grande impacto e me deu a capa do Chemical News, o que naquela época era um brutal prestígio. Esse trabalho acabou saindo em livro em 1972.

Quanto tempo o senhor ficou no MIT?
Quatro anos. Quando o programa morreu, fui convidado para ir para a Escola de Saúde Pública da Universidade Harvard, no Departamento de Nutrição. Lá fiz um outro negócio que foi muito importante na época e hoje voltou a ter importância. Recentemente foi feita uma análise das escolas de medicina, das inovações do ensino médico e quem ganhou primeiro lugar? Londrina. O que Londrina fez? De certa forma repetiu o Curso Experimental de Medicina que fiz em 1969 na Cidade Universitária. Naquela época havia duas idéias em jogo: trazer o curso de medicina para a Cidade Universitária e inovar. Não era para repetir a mesma coisa. Então nós conseguimos aprovar na congregação da faculdade o curso experimental, que preparava os alunos para o estudo de uma medicina científica.

Qual era o conceito do Curso de Medicina Experimental?
Acabar com a separação das disciplinas e tentar integrar ciência básica, clínica e medicina social desde o primeiro dia do curso. As matérias do curso médico são totalmente artificiais, porque cresceram além dos limites delas. Também tinha um segundo porém: naquele tempo, 40% do curso médico era de anatomia descritiva, do mesmo jeito que se ensinava no século 18. Hoje isso mudou, naturalmente. Nossa idéia era misturar a medicina logo no primeiro ano com as outras coisas de ciência básica. Nós, os professores que davam o curso, nos reuníamos uma vez por semana para decidir o que ensinar. “Hoje eu tenho que ensinar citologia do fígado, você fala sobre mitocôndria…” Funcionou tão bem que, no primeiro ano, quando abriu, os 80 melhores alunos escolheram Experimental. Mas, assim que eu saí, durou mais um ano e a faculdade acabou com o curso.

Depois das experiências bem-sucedidas nos Estados Unidos, por que voltou para o Brasil?
Porque o sistema americano de pesquisa foi pervertido. Deixou de ter uma estrutura mais ou menos permanente para ter uns tantos líderes geniais que fazem pesquisa e um exército de escravos, que trabalham sete dias por semana, 18 horas por dia. Quando acaba a bolsa, se o pesquisador quiser ter família, horários menos ruins, um ordenado mais decente, tem de ir embora. O pesquisador é temporário. Fazer propriamente a pesquisa não é mais uma atividade permanente de ninguém, a não ser de 1% que está no topo. O resto é um exército de escravos. Isso ocorre por causa da máquina poderosa que eles têm montada lá, da quantidade de dinheiro existente. Agora, ninguém interfere na pesquisa, a liberdade é total. O problema é que há uma estrutura em que se tem de trabalhar muito, ser muito bom e correr à beça para ficar no mesmo lugar. E é impessoal, totalmente impessoal.

Na volta para o Brasil o senhor fez o que da vida?
Tentei voltar para a Funbec, mas também lá o processo havia se pervertido, num outro sentido. Eles estavam sem uma boa administração e haviam perdido a inovação. Depois de uns dois anos surgiu a oportunidade de ir para o Instituto Butantan e começar do zero. Na época, começo dos anos 1980, não havia permeabilidade entre o Butantan e a USP e o instituto não tinha pesquisa nem aluno. Nesse momento, o Willi Beçak era o diretor da instituição e pediu a contratação de dez professores da universidade. Eu já estava aposentado e não havia voltado para o Instituto de Química por dois motivos. O primeiro era que a condição da Anistia, dos militares, era de perdoar, não  de reintegrar. Tinha de assinar um documento dizendo que você aceitou o perdão e eu não aceitei o perdão de ninguém. O segundo motivo era que eu tinha deixado cinco ótimos professores lá que não precisavam mais de mim – eles eram melhores do que eu. Os mais conhecidos são o Walter Colli, hoje também assessor adjunto da diretoria científica da FAPESP, e o Ricardo Brentani, diretor  do Instituto Ludwig de Pesquisa contra o Câncer e diretor presidente da FAPESP.

O Butantan começou a ser recomposto com esses dez professores?
Sim. Entrei em uma área diferente dos outros, porque eu já tinha conseguido que a Finep [Financiadora de Estudos e Projetos] me desse um pouquinho de dinheiro para fazer biotecnologia na Funbec. Só que lá não havia mais condições. Quando vim para cá a coisa mudou. O mundo desabou em 1985 quando o pouco soro antiofídico que o Butantan fazia foi testado em um laboratório central de controle de qualidade, no Rio de Janeiro, e descobriu-se que era inativo. Então, o Brasil não tinha soro. A essa altura, eu já estava tentando resolver o problema dentro do Butantan. Isso começou a abrir os caminhos e fui reconstruindo instalações e comprando máquinas com a ajuda do governo federal. Da FAPESP nós conseguimos muita ajuda com auxílios pontuais, individuais, para os pesquisadores.

Mas como o instituto se tornou um grande centro de produção de vacinas?
O orçamento para fazer vacinas imunobiológicas no Butantan era zero. O governo do estado não financia conscientemente a produção de vacina. Se antes era zero e agora produzimos 200 milhões de doses de vacina, de onde veio esse dinheiro? Tivemos que criar uma estrutura onde esse dinheiro se retroalimentasse. Essa era uma parte do problema. A outra era desenvolver tecnologia. O pesquisador da universidade imagina que desenvolve tecnologia. Na verdade, ele desenvolve uma idéia de bancada. O pesquisador está sempre sonhando com uma coisa que mesmo no Primeiro Mundo leva muitos anos. Na área de medicamento e vacina leva dez anos depois de o produto estar estabelecido para se chegar no mercado. Outro conceito fundamental é que, se você não faz o produto aparecer, não se realizou nada. Quer dizer, a medida de tecnologia não é o trabalho publicado, muito menos a discussão interna. Se não tem um produto, você pouco fez do ponto de vista industrial. E, se em uma instituição pública esse produto não é da sociedade como um todo, você não fez saúde pública. Para fazer saúde pública tem que ter um custo que o país comporte. Há um outro problema: no Brasil, aceitou-se a idéia americana de que se o cientista tem uma participação nos lucros ele tem mais interesse em criar tecnologia.

Isso não é verdade?
Pode até ser. O negócio é que, se for assim, ninguém vai fazer nada que não tenha perspectiva de lucro. Você mata a pesquisa. Não dá para imaginar que a solução de todos os problemas passa pela empresa lucrativa. Acredito que o Brasil está, na área de saúde, na contramão dessas idéias.

Por quê?
Houve uma evolução considerável da tecnologia, do controle da qualidade, para fazer um produto como vacina. Quando descobriram que não tinha soro bom aqui e não dava para importar porque não era produzido usando veneno extraído das cobras brasileiras criou-se um programa de auto-suficiência de vacinas. Esse programa derivou para um monopólio estatal. Quando a instituição pública faz a vacina, o governo compra sem questionamento, não entra em licitação. Claro que ele paga o preço mais baixo possível e atrasado, ainda por cima. Freqüentemente tenho de comprar matéria-prima previamente, antes da encomenda do governo para dar tempo de produzir a vacina. No momento, estou devendo US$ 30 milhões usados para fabricar a vacina da gripe.

Isso vale para todas as vacinas?
Não. As outras nós também fazemos, mas sempre tem que ter dinheiro. Criamos uma estrutura que é pública, mas não pode ser pública, porque se for pública, stricto sensu, quando o dinheiro volta, volta para o Tesouro e desaparece. O governo pensa – por causa da regulamentação e não por causa de vacina em especial – que, se ele está financiando o instituto, se houver lucro, é natural que vá para o Tesouro. O drama é que aí o dinheiro desaparece, não é reinvestido no instituto.

O dinheiro nunca fica no Butantan?
Não, não. O instituto pode ter esse dinheiro, mas desde que o governo não o enxergue. Se enxergar o dinheiro, no dia seguinte ele é recolhido ao Tesouro. É uma questão de legislação. Até os primeiros auxílios grandes que o Ministério da Saúde nos deu desapareceram no Tesouro. A Secretaria Estadual da Saúde e o Butantan nunca receberam nada. Precisa ser muito burro para inventar uma lei desse tipo. O orçamento é imaginado pelo menos um ano antes, se não dois anos antes, então, se vem dinheiro, é como se o governo dissesse: “Não tenho nada previsto no meu orçamento, portanto não aceito o dinheiro”. É completamente esquizofrênico. Então, a Fundação Instituto Butantan, criada em 1985, resolveu esse problema. A fundação opera como uma empresa privada, mas de modo muito mais flexível.

Apesar de andar na contramão, esse  parece ser o caminho certo…
É o que acho. Dentro do modelo econômico atual nós estamos na contramão. Qual o país que dá remédio para Aids gratuitamente? O Brasil criou uma estrutura que permite fabricar o produto que precisa para a saúde pública a um preço que pode pagar. Aqui na Fundação Instituto Butantan eu cuido mais do preço do que o Ministério da Saúde. Nós estamos testando uma forma de usar um quinto da dose da vacina da gripe para o ano que vem, o que permitirá, com o mesmo dinheiro, baixar a vacinação para 50 anos para cima. Hoje vacinamos de 60 para cima. Também desenvolvemos, com a ajuda da FAPESP, o surfactante para proteger crianças prematuras. O governo vai distribuir para todas as maternidades públicas de graça. Isso porque conseguimos tecnologia para fabricar a um preço muito baixo. O Brasil é o único país da América Latina que produz vacina publicamente.

A inovação torna-se, então, essencial dentro desse processo?
Sem dúvida. E para ter inovação é preciso ter pesquisador que faz pesquisa básica. A convivência entre pesquisa básica e pesquisa aplicada é fundamental. A indústria faz de conta que inventa tudo. Ora, quem inventa é o governo americano, o governo inglês, o francês e assim por diante. O grande financiamento para desenvolvimento de medicamento é público, não privado. E para se receber dinheiro público é preciso uma estrutura que funcione para fazer a pesquisa, que a indústria privada não tem. O mundo não vai ser mais social ou socialista, mas precisa ser socialmente responsável de algum jeito. A relevância social foi trocada pela filantropia – uma concepção americana do tipo “eu fiquei rico, fiz uma estrada de ferro, vou fazer um museu também”.

Precisamos de um novo modelo?
Eu acho que sim. Não diria que o modelo do velho Pasteur seja um bom modelo, mas funciona. Tenho 25 doutores aqui na fundação e eles têm o direito de fazer a pesquisa que querem, desde que façam, em uma parte do tempo, o que foi definido como prioridade. Ele acaba descobrindo que faz tão boa pesquisa trabalhando nas prioridades do Butantan como nas idéias dele.

Como defensor dos alimentos geneticamente modificados, o que o senhor pensou quando viu a notícia, em maio, sobre estudo da Monsanto relativo a anormalidades nos rins e no sangue de ratos alimentados com milho transgênico?
Quanta gente deixou de morrer de fome por causa do milho transgênico? Quanta gente agora pode obter comida para ficar obeso, estupidamente obeso, porque comida deixou de ser importante? O que não é correto é esconder os resultados. O que está acontecendo é que agora, nos Estados Unidos, o ensaio clínico tem de ser registrado – o que não é o caso dos transgênicos. Depois, se não der certo, não pode esconder.

Acredita que há algum risco de se voltar atrás na Lei de Biossegurança depois que o procurador-geral da República, Claudio Fontelles, entrou com uma ação de inconstitucionalidade contra ela?
Difícil saber. Até nos Estados Unidos, um país teoricamente mais racional, não está o presidente Bush tentando enfiar na cabeça dos americanos o que ele pensa do ponto de vista da religião dele? É muito complicado. E esse não é um problema de opinião pública. Nos Estados Unidos é uma catástrofe porque a importância da ciência não é entendida.

Por que isso ocorre?
Eu fiz um esforço muito grande na minha vida a favor de uma educação científica, racional. Hoje o ensino de ciência é um faz-de-conta. Tem até a mistura do conceito da palavra “pesquisa” com “procura no computador”. Esse conceito de pesquisar na internet não é o de descobrir alguma coisa, mas apenas de acreditar que o que está na tela é verdadeiro. Aprender não é adquirir informação. Obviamente, se não há informação não se consegue fazer as coisas nem se entender o mundo. Mas, se você não tem a capacidade de analisar criticamente o que é falso e verdadeiro, complica brutalmente as coisas. E a grande maioria das pessoas não tem.

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