Como se soubessem que só unidas conseguirão sobreviver, versões defeituosas de uma proteína conhecida como príon – abreviação de partícula infecciosa proteinácea – formam aglomerados semelhantes a um novelo de lã e se instalam em neurônios que formam o cérebro e os nervos que se estendem por todo o corpo. Lá dentro seqüestram as moléculas conhecidas como proteínas príon celular – a forma normal dos príons -, fazendo-as aderir ao bloco. Escapam das enzimas que as destruiriam se estivessem sozinhas, acumulam-se e são enfim liberadas. Começam então a infectar outras células e, em cada uma delas, mudam a estrutura da proteína príon celular. E até morrerem as células produzem esses príons alterados, que assim se propagam continuamente, como se fossem vírus.
O passo-a-passo desse processo de infecção foi agora descrito pela primeira vez por uma equipe da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em um estudo realizado com um grupo de uma das unidades dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH) dos Estados Unidos. Os resultados, publicados no Journal of Neuroscience, ajudam a entender melhor, a detectar e talvez a deter as doenças causadas por essas proteínas defeituosas, cujos movimentos dentro da célula permaneciam desconhecidos.
Anos atrás, milhares de bois foram sacrificados na Europa por terem contraído uma doença transmissível, a encefalopatia espongiforme bovina, ou mal da vaca louca. Só foi controlada a partir do momento em que se descobriu que era causada por variantes de príons. Em ovelhas, essas partículas causam uma doença similar, que também deixa o cérebro semelhante a uma esponja, conhecida como scrapie. Uma versão próxima em seres humanos chama-se doença de Creutzfeldt-Jakob, enfermidade neurodegenerativa rara, mas igualmente fatal.
Os pesquisadores trabalharam com linhagens de células derivadas de neurônios de camundongo, escolhidas por resistirem à invasão e acumulação dos príons – nos experimentos foram acompanhadas por duas semanas, mas podem sobreviver muito mais. Os neurônios são bem mais frágeis e morreriam logo no início do processo de infecção, acredita Marco Antonio Prado, biólogo celular da UFMG e um dos coordenadores desse trabalho. “Além dos danos da própria infecção”, diz ele, “a proteína príon celular pode se tornar tóxica ou deixar de exercer tarefas importantes para a célula quando é convertida em príons”. Acredita-se que as formas saudáveis dessas proteínas estejam ligadas à manutenção da memória e ao crescimento das células nervosas, de acordo com estudos recentes conduzidos por um grupo do Instituto Ludwig de Pesquisas sobre o Câncer, de São Paulo.
Na fronteira com o Canadá
Ana Cristina Magalhães, que desenvolveu seu doutoramento sob a orientação de Prado, trabalhou por um ano com bolsa-sanduíche da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) no Laboratório das Montanhas Rochosas, uma das unidades NIH, até desvendar os movimentos do príon dentro da célula. Ana Cristina foi para lá convidada por Byron Caughey, o líder de um grupo que se especializara na pesquisa desse tipo de proteína, para pilotar um equipamento diante do qual já se sentia à vontade: um microscópio confocal, que permite a observação do movimento de proteínas em células vivas. Ela já havia trabalhado em Belo Horizonte em um desses aparelhos para descrever o comportamento da proteína príon celular nas células.
Ana Cristina teve, antes de aprender a conviver com os caprichos das células de camundongo, que nem sempre cresciam como ela esperava, além de se adaptar ao frio e à calma de Hamilton, uma cidade de 3 mil habitantes próxima à divisa com o Canadá. Em paralelo, ela tratava dos príons alterados, adicionando-lhes um corante fluorescente, para que depois pudessem ser identificados sob o microscópio. Após meses de preparativos, sentou-se à frente do microscópio e se pôs a examinar as finas camadas de células atravessadas por um feixe de laser. Fez cerca de mil imagens tridimensionais e, analisando-as, pôde reconstituir os movimentos do príon no interior da célula nervosa.
Forma-se inicialmente um aglomerado de príons fluorescentes sobre a superfície das células. Em seguida, cada célula incorpora as proteínas anormais como um minúsculo peixe mordiscando uma bolota de pão. “Os detalhes ainda não estão muito claros”, diz Prado. Não se sabe ao certo quais moléculas conduzem os príons para o interior da célula nervosa, mas é certo: lá dentro, essas proteínas começam a se unir e a constituir aglomerados que circulam de um lado a outro – e assim podem chegar aos dois tipos de prolongamento dos neurônios, tanto os mais curtos, os dendritos, quanto os mais longos, os axônios, responsáveis pela comunicação entre as células.
Os príons encontram as proteínas príon celular e as convertem em anormais, fazendo-as aderir ao bloco que cresce como uma bola de neve. Pouco a pouco, porém, os aglomerados são retidos em dois tipos de compartimento especializados na destruição de proteínas, conhecidos como endossomos tardios e lisossomos. É onde deveriam ser destruídos, por causa do ataque das enzimas. No entanto, os príons sobrevivem, possivelmente porque as enzimas não conseguem penetrar a massa de proteína e ligar-se aos possíveis pontos de ruptura, que as desmontariam.
A célula trata então de eliminar a carga indesejada que, por não ser degradada pelas enzimas, vai se acumulando. “Provavelmente os lisossomos se fundem com a membrana externa e liberam os agregados no meio extracelular, permitindo assim a infecção de outras células”, cogita Prado. Mas as células nervosas não encontram a paz mesmo depois de expelirem os blocos de proteínas defeituosas. Antes de partir, os príons deixam algo que pode ser visto como suas sementes – por meio delas é que modificam a arquitetura de príon celular. Em conseqüência, as células que haviam sido infectadas continuam a fabricar proteínas alteradas a partir de suas versões saudáveis, até que seu funcionamento seja alterado a ponto de perder por completo a habilidade de sobrevivência.
Discreta e bem-comportada
A proteína príon celular – a forma normal do príon – costuma se comportar de modo diferente. Em vez de formar blocos, vive ancorada na superfície celular. É uma proteína abundante, que se movimenta da superfície para o interior da célula, cumpre suas tarefas e sai sem causar problemas, como Ana Cristina havia verificado antes, também por meio da microscopia confocal, em um estudo feito com Kil Sue Lee, aluna de doutoramento de Vilma Martins, do Instituto Ludwig, e publicado no Journal of Neurochemistry e no Journal of Biological Chemistry.
Essas pesquisas estão gerando também ganhos indiretos, à medida que se descrevem processos de adensamento de aglomerados de proteínas semelhantes aos que se formam no cérebro de portadores do mal de Alzheimer – mesmo que neste caso as proteínas sejam outras e os blocos que formam não sejam infecciosos, o resultado é o mesmo: a morte dos neurônios. Em junho, outra equipe do Laboratório das Montanhas Rochosas publicou na Science um estudo com camundongos alterados geneticamente capazes de produzir variantes da proteína príon celular que são liberados para fora da célula, em vez de ficarem presos a ela. Quando esses animais foram infectados com príon, formaram-se aglomerados e lesões cerebrais similares às vistas no Alzheimer. No entanto, apesar de infectados, os camundongos não manifestaram os sintomas esperados, como os tremores e a perda de coordenação motora, observados no outro grupo de camundongos sem alteração genética, nos quais também se aplicaram os príons.
A partir desses indícios, começa-se a repensar as formas de tratar as doenças causadas por príons, não mais combatendo os aglomerados, mas retendo a produção de príon celular. E está emergindo um novo paradigma de transmissão de informações, não mais por meio do material genético, o DNA, mas através da habilidade de uma proteína defeituosa em tornar também defeituosas suas versões normais, como um mau aluno que corrompe o comportamento de todos os outros.
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