EDUARDO CESARUma perereca verde com listras negras e alaranjadas ao lado do corpo produz uma secreção cutânea que mantém sua pele úmida mesmo sob o sol intenso da Caatinga do Rio Grande do Norte, onde vive a maior população dessa espécie na América Latina. É uma gelatina viscosa e transparente que protege a Phyllomedusa hipocondrialis da desidratação e a torna uma refeição indigesta para seus predadores por conter uma mistura de proteínas tóxicas. Analisando sua composição, biólogos de São Paulo e Minas Gerais descobriram que ela pode ser útil também para os seres humanos. Eles identificaram na secreção da Phyllomedusa hipocondrialis peptídeos (fragmentos de proteína) capazes de eliminar bactérias causadoras de diarréias ou infecções hospitalares e até mesmo de reduzir a pressão arterial.
A equipe coordenada por Daniel Pimenta, do Instituto Butantan, em São Paulo, coletou amostras de secreção de 12 exemplares da Phyllomedusa capturados em Angicos, no Rio Grande do Norte. Ao diluí-la em diferentes solventes, os pesquisadores conseguiram separar três peptídeos que ainda não haviam sido identificados. Testes em laboratório mostraram que dois deles – a filosseptina-7 e a dermasseptina-1 – são potentes bactericidas, capazes de eliminar quatro espécies de bactérias ligadas a problemas de saúde que afetam os seres humanos: a Micrococcus luteus, que provoca lesões de pele conhecidas como impetigo; a Staphylococcus aureus, causadora de infecção hospitalar; a Escherichia coli, associada à diarréia; e a Pseudomonas aeruginosa, comum nas infecções respiratórias.
Tanto a filosseptina-7 como a dermasseptina-1 atuam da mesma forma. Abrem pequenos poros na parede celular das bactérias, matando-as, como descreveu a equipe de Pimenta, formada por pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) e da Fundação Ezequiel Dias, em Minas Gerais, em um artigo na Peptides de dezembro de 2006. Outra descoberta amplia o interesse sobre o potencial farmacológico dessas moléculas. Misturadas ao sangue humano, a filosseptina-7 e a dermasseptina-1 não danificam as hemácias, responsáveis pelo transporte de oxigênio. “Essa é uma indicação de que provavelmente essas moléculas não sejam tóxicas para os seres humanos”, explica Pimenta, que há cinco anos investiga as propriedades medicinais de compostos encontrados na secreção de anfíbios.
Mas o que mais chamou a atenção do grupo do Butantan foi o terceiro peptídeo: o Phypo Xa, abreviação do nome da perereca somada à indicação do tamanho desse peptídeo, formado por dez aminoácidos. Pimenta e a bióloga Kátia Conceição descobriram que o Phypo Xa prolonga a ação de outro peptídeo: a bradicinina, que relaxa a musculatura dos vasos sangüíneos e diminui a pressão arterial. “É a primeira vez que se identifica no veneno de um anfíbio uma molécula com essa função”, diz Kátia. Antes só se conheciam peptídeos com efeito semelhante no veneno de serpentes. O primeiro deles, descoberto em 1965 no veneno da jararaca pelo farmacologista Sérgio Henrique Ferreira, da USP em Ribeirão Preto, inspirou a criação do captopril, um dos medicamentos anti-hipertensivos mais vendidos no mundo. Em um artigo na edição de março da Peptides, Pimenta e Kátia relatam que nos testes com ratos o Phypo Xa mostrou efeitos apenas um pouco menos intensos que o captopril.
Sopa de peptídeos
Apesar dos resultados promissores com os peptídeos da Phyllomedusa, a equipe do Butantan mostra-se cautelosa. Afinal, ainda serão necessários anos de pesquisa até que se consiga produzir algum medicamento a partir deles. Isso, claro, se alguma indústria farmacêutica se interessar pela produção de uma forma sintética dessas moléculas ou se até lá se descobrir uma forma mais eficiente de separá-las dessa sopa de peptídeos que é o veneno. “Há uma grande variedade de moléculas na secreção cutânea da Phyllomedusa, razão por que se estuda tanto essa perereca”, diz Pimenta. “Os anfíbios, muitas vezes, são quase como boticários, pois entre os compostos que produzem há até medicamentos”, conta o biólogo Carlos Jared, que participou da pesquisa de Kátia e Pimenta.
Além da variedade, outro fator complica a extração dos componentes do veneno. “O veneno de uma perereca que vive debaixo de pedras pode conter substâncias diferentes do produzido por outra que se esconde sob folhas, ainda que ambas sejam da mesma espécie e vivam em um ambiente semelhante”, explica Jared, do Butantan, que há mais de 20 anos investiga a relação entre as peculiaridades da pele dos anfíbios e a capacidade de adaptação a ambientes hostis. E não é só o ambiente que influencia essa variedade de componentes do veneno, descobriu recentemente o biólogo Daniel Nadaleto, da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Botucatu. Ele criou em laboratório, em ambientes idênticos, duas espécies de sapo (Bufo ictericus e Bufo schneideri) e constatou que os animais de uma mesma desova – ou seja, sapos-irmãos, não necessariamente eram idênticos do ponto de vista genético – produziam venenos com composições diferentes. “Provavelmente há uma influência genética”, diz Nadaleto.
O Projeto
Centro de Toxinologia Aplicada
Modalidade
Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid)
Coordenador
Antonio Carlos Martins de Camargo – Instituto Butantan
Investimento
R$ 16.674.509,82 (FAPESP)