EDUARDO CESARNo laboratório, o ciclista parece uma marionete, tal a quantidade de fios que saem de seu peito, costas, mão e perna. Ele sofre de doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC), uma doença causada pelo tabagismo que combina danos irreversíveis nos alvéolos pulmonares com sintomas de bronquite crônica, como estreitamento das vias aéreas e tosse. Até agora o estudo da doença se concentrou nos pulmões, apesar das queixas dos pacientes de que, junto com a falta de ar, era freqüentemente o cansaço nas pernas que os impedia de subir um lance de escadas sem descansar. Ao fazer testes de esforço em bicicletas ergométricas, alguns pacientes agora têm a chance de fazer mais do que explicar seus sintomas: ajudar o pneumologista José Alberto Neder, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), a entender as relações entre pulmões e pernas.
A aparelhagem que parece enredar o paciente, um conjunto único no país, dá a Neder um quadro completo que o põe em situação privilegiada para entender como funciona a deficiência pulmonar. Eletrodos no peito e nas costas monitoram os batimentos cardíacos e registram o volume de sangue que o coração do paciente bombeia a cada contração; um grampo no dedo indicador mede o teor de oxigênio no sangue; a máscara, além de ajudar na respiração quando regulada para isso, também mede quanto oxigênio o ciclista exala e permite ao pesquisador calcular quanto o organismo absorveu; e um detector na perna lança um facho de luz (espectroscopia por raios quase-infravermelhos) que mede quanto oxigênio chega aos músculos da coxa. Tudo isso sem a necessidade de espetar uma agulha que seja no paciente. Até agora nenhum estudo tinha reunido todos esses parâmetros. Com essa visão integrada, Neder demonstrou que pacientes com DPOC têm algo em comum com atletas de elite: os pulmões roubam o sangue das pernas, que não conseguem manter o esforço físico sem o oxigênio trazido pelos glóbulos vermelhos circulantes.
O estudo é inovador porque trata a circulação e a respiração como sistemas interligados, embora normalmente sejam estudados por especialistas diferentes. É em sua passagem pelos pulmões que o sangue se abastece do oxigênio que em seguida leva a todas as células do corpo. Quando uma pessoa está em atividade física intensa, correndo ou subindo uma ladeira de bicicleta, a maior parte do sangue precisa ser mandada para os músculos em ação, que para manter o movimento precisam de grandes quantidades de oxigênio. O corpo enfrenta então o desafio de manter um equilíbrio delicado: suprir as pernas e, ao mesmo tempo, mandar uma quantidade suficiente de sangue para os músculos que movem os pulmões, onde é oxigenado.
Usando o aparato completo do laboratório, o grupo da Unifesp submeteu dez homens com DPOC a testes de esforço e avaliou os parâmetros circulatórios e respiratórios. Os resultados, em processo de publicação na revista Journal of Applied Physiology, mostram que a doença reduz o volume de sangue bombeado a cada batimento cardíaco e leva a uma perda rápida de oxigênio na musculatura das pernas – como a oxigenação é deficiente, todo oxigênio que chega aos músculos é rapidamente consumido, causando uma sensação de peso nas pernas, como se estivessem recheadas de chumbo. Mais surpreendente, o trabalho revela o que há de comum entre esses pacientes e atletas de elite.
Esportistas como velocistas profissionais desenvolvem sua técnica e musculatura – inclusive os músculos respiratórios e cardíacos – para atingir o rendimento máximo exigido nas competições. Mas às vezes exageram na dose e o esforço ultrapassa a velocidade com que o sangue pode levar oxigênio aos tecidos. Há cerca de dez anos a equipe do pneumologista norte-americano Jerome Dempsey, da Universidade de Wisconsin, descreveu o que acontece quando esses atletas excedem sua capacidade de fazer exercício. Nesse ponto, a encruzilhada que reparte o fluxo de sangue entre pulmões e pernas funciona quase como a de uma ferrovia, em que um mecanismo subitamente altera a trajetória do trem. Os músculos dos pulmões produzem substâncias que, quando atingem uma determinada concentração, mandam um aviso ao cérebro. O órgão central do sistema nervoso age instantaneamente reduzindo o calibre dos vasos das pernas. O fluxo de sangue é então desviado em grande parte para os pulmões. Com menos sangue – e menos oxigênio – as pernas se tornam pesadas. “Quando surge uma competição entre os músculos das pernas e os da respiração, estes últimos ganham”, explica Neder. “De nada adianta manter o sangue fluindo para os músculos que estão se exercitando se faltar sangue para os músculos que movem os pulmões, justamente os órgãos que fornecem o oxigênio tão vital para a musculatura.” Órgãos fundamentais para manter o organismo funcionando – como o cérebro, o coração e os pulmões – têm preferência na hierarquia do corpo.
EDUARDO CESARAtletas frustrados
Neder mostrou que esse mesmo mecanismo limita a capacidade de os pacientes com DPOC se exercitarem, mas neles bastam alguns degraus ou uma caminhada até a padaria da esquina para que os músculos respiratórios reclamem um volume maior de sangue. Entender isso abre o caminho para buscar maneiras de proporcionar uma vida mais ativa para as pessoas que sofrem de deficiências respiratórias e cardíacas.
No setor de pneumologia da Unifesp, Neder vem testando alternativas para que esses pacientes tenham mais facilidade nas atividades cotidianas como trabalhar ou fazer compras. Por enquanto já obtiveram bons resultados no laboratório. Ajudar o paciente com uma máscara por onde entra ar normal sob pressão ou heliox – ar menos denso por ser rico em hélio, um gás mais leve – reverte o processo e lhe devolve a vitalidade na bicicleta ergométrica. Em termos mensuráveis, o tempo em que agüentam manter exercício intenso triplica ou até quadriplica, com menos sensação de falta de ar e cansaço nas pernas. O tratamento não aumenta o teor de oxigênio respirado, ele simplesmente lança o ar nas vias respiratórias de maneira que reduz o esforço exigido dos músculos pulmonares. O efeito do heliox é mais intenso porque o ar menos denso se difunde com mais facilidade pelas vias respiratórias. “O ar entra como uma flecha”, conta Neder. Mas tem um efeito colateral que restringe ainda mais o tratamento ao laboratório: o hélio tem um efeito temporário sobre as cordas vocais que deixa a voz parecida com a do Pato Donald nos desenhos animados. Por isso, o pneumologista recomenda que o paciente não fale durante o tratamento. O artigo, em processo de publicação na Thorax, deixa claro que basta facilitar o acesso do ar aos pulmões para aumentar a proporção de sangue oxigenado em circulação e nos músculos.
O mesmo vale para quem sofre de insuficiência cardíaca crônica (ICC). Ao contrário do que se acreditava, o que limita a capacidade física desses pacientes não é o coração, mas a oxigenação dos músculos. Neder testou o mesmo tratamento nesses pacientes e mostra, em artigo disponível desde março no site da revista American Journal of Physiology – Heart and Circulatory Physiology, que a respiração assistida aumenta a quantidade de oxigênio que chega às pernas e torna possível o exercício. Essa melhora, porém, não reflete um aumento no teor de oxigênio geral no sangue – este continua o mesmo, conforme medido pela presilha no dedo indicador. Os autores postulam que o auxílio à respiração elimina os sinais de cansaço dos músculos respiratórios, que por isso deixam de induzir o fechamento dos vasos sangüíneos que alimentam as pernas. A circulação mais eficiente leva consigo mais oxigênio.
O tratamento com respirador é limitado às sessões de exercício no laboratório ou, no futuro, em sessões de fisioterapia e reabilitação. Mas seus efeitos são duradouros e se fazem também sentir nas atividades cotidianas normais dos pacientes tratados. “Os músculos dessas pessoas se tornam atrofiados pela falta de uso, o que agrava cada vez mais suas condições físicas”, explica o pneumologista. Tornar a musculatura mais eficiente lhes permite usar o oxigênio de maneira mais eficaz, o que acelera a melhora.
Neder não pretende parar por aí e agora tenta desenvolver um tratamento mais acessível às pessoas. “Já começamos a testar uma forma de treinar os músculos respiratórios”, conta o pneumologista. Os pacientes são instruídos a fazer várias sessões diárias em que respiram usando um aparelho que exige maior esforço, como um canudo levemente entupido. Algo como uma musculação respiratória que, segundo os testes preliminares, pode ser uma solução eficaz para melhorar a oxigenação de quem tem deficiência pulmonar. Outra terapia que Neder começará a testar em breve é o sildenafil – o princípio ativo do Viagra. “É uma droga que dilata os vasos sangüíneos e melhora a circulação sangüínea, então esperamos que ajude a difundir o oxigênio de maneira mais eficiente pelos músculos do corpo”, explica.
O Projeto
A oxigenação muscular periférica durante o exercício dinâmico em pacientes com DPOC: efeitos da redução do trabalho ventilatório induzido pela ventilação não-invasiva com pressão positiva (nº 05/00722-0); Modalidade Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa; Coordenador José Alberto Neder Serafini – (EPM/Unifesp); Investimento R$ 277.572,52