Uma memória eletrônica que guarda a informação mesmo desconectada de uma fonte de energia, utilizada em chips de cartões inteligentes (smart cards) em bilhetes de transporte público, celulares, TV digital e transações bancárias, será produzida em uma nova fábrica que começará a ser instalada em 2009 na cidade de São Carlos, no interior paulista. A presença na região do Centro Multidisciplinar para o Desenvolvimento de Materiais Cerâmicos, um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) da FAPESP que conta com a participação da Universidade Estadual Paulista (Unesp), de Araraquara, e da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), foi decisiva na escolha da cidade para sediar a fábrica de semicondutores ferroelétricos. Parceiro na empreitada, o centro de materiais cerâmicos já formou 25 doutores e 17 mestres em materiais ferroelétricos desde 2000, quando esse Cepid foi criado. Muitos desses profissionais ou formandos poderão trabalhar na fábrica brasileira.
Inicialmente, a memória de acesso aleatória ferroelétrica, ou FeRAM, também conhecida como memória não-volátil, será produzida com tecnologia desenvolvida pela empresa norte-americana Symetrix, criada há 18 anos nos Estados Unidos pelo brasileiro Carlos Paz de Araújo, professor de engenharia elétrica na Universidade do Colorado. O centro também terá participação ativa no desenvolvimento de novas memórias ferroelétricas e de novos materiais. “Vamos direcionar a pesquisa em novas memórias ferroelétricas porque sabemos que ela pode ser aplicada, mas não vamos deixar de lado a pesquisa básica”, diz o físico José Arana Varela, professor do Instituto de Química de Araraquara e pró-reitor de Pesquisa da Unesp, além de ser o responsável pela divisão de inovação do Cepid.
Um filme fino ferroelétrico – constituído de camadas muito finas de material semicondutor – desenvolvido pelo centro de cerâmicos por um novo método, relativamente simples e de baixo custo, é forte candidato a ser utilizado futuramente nos chips de memória que serão produzidos na fábrica de São Carlos. “Conseguimos obter novos materiais com capacidade de armazenamento até 250 vezes maior do que as memórias convencionais”, diz o químico Elson Longo, diretor-geral do Centro Multidisciplinar para o Desenvolvimento de Materiais Cerâmicos, conhecido pela sigla CMDMC. Esses novos materiais são feitos a partir de uma solução orgânica obtida de ácidos cítricos, presentes em frutas como laranja e limão (ver Pesquisa FAPESP nº 52), misturada a bário, chumbo e titânio. “O composto é levado a um forno simples com temperatura de até 300º Celsius para retirar alguns elementos orgânicos, como o carbono”, explica Varela. Em seguida é feita a cristalização do material em um aparelho de microondas doméstico para a obtenção de um filme fino de titanato de bário e chumbo. “Inicialmente vamos usar o processo da empresa norte-americana. No futuro poderemos trabalhar com outros materiais além dos que já desenvolvemos para fabricar filmes (camadas muito finas de material semicondutor) menos espessos”, diz Varela. Quanto mais fino o filme, maior a integração que pode ser feita no sistema semicondutor e menor o custo final. Entre as vantagens do uso de filmes finos ferroelétricos na preparação dos dispositivos eletrônicos, em comparação com as cerâmicas magnéticas utilizadas para memória, estão menor tamanho, baixo peso, alta velocidade de escrita e leitura e baixa voltagem de operação.
Os materiais ferroelétricos permitem a construção de memórias eletrônicas que não necessitam de nenhum tipo de energia para funcionar. “A capacidade de armazenar informações está ligada ao arranjo de seus átomos”, diz Longo. Cada célula de memória consiste de um único transistor de acesso conectado a um capacitor ferroelétrico, dispositivo que armazena energia num campo elétrico. O transistor atua como um interruptor, permitindo que o circuito de controle leia ou escreva os sinais 0 e 1, do sistema binário, a serem armazenados no capacitor. O princípio utilizado é o mesmo dos semicondutores magnéticos empregados nos cartões de crédito comuns e bilhetes de transporte. “A diferença é que os cartões magnéticos precisam ser encostados a uma leitora para passar a informação, enquanto os cartões ferroelétricos podem ser lidos a uma distância de até seis metros”, explica Longo. A leitura é feita por radiofreqüência. O chip, de cerca de dois milímetros quadrados de tamanho e espessura, não é aparente. Embutido nos cartões ou em celulares, por exemplo, ele possui um sistema de proteção contra hackers.
No Japão, onde a tecnologia desenvolvida por Araújo e sua equipe foi licenciada para a empresa Panasonic, ela é utilizada em cartões de metrô, trens e nas carteiras de habilitação. Também é possível pagar as compras usando o celular, sem necessidade de recorrer aos cartões de crédito ou débito. No Brasil, desde que foi feito o anúncio da instalação da fábrica, várias empresas já se interessaram pela tecnologia. Elas querem substituir os cartões magnéticos pelos ferroelétricos em diversas aplicações. “Um grande banco brasileiro, que não quer importar a tecnologia por questão de segurança, nos procurou para produzir cartões”, diz Varela, que não revela o nome da instituição financeira porque as negociações ainda estão em andamento. Para o setor automotivo, por exemplo, poderá ser desenvolvido um sistema anticolisão, tecnologia patenteada pela Symetrix. “Com essa memória é possível instalar um sistema de segurança no carro com sensores na faixa do infravermelho, que funcionarão como câmeras de visão noturna para detectar a presença de pessoas, animais ou carros parados, numa faixa de 100 a 200 metros à frente do veículo”, explica.
Controle integrado
Nos supermercados, a utilização da memória ferroelétrica no lugar dos códigos de barras permitirá um controle integrado dos produtos. Informações como data de validade do produto, nome do fabricante, preço, estoque e quantidade comprada serão colocadas em um dispositivo do tamanho de uma pontinha de alfinete. “Não é apenas um código de barras, mas uma memória inteligente”, diz Longo. “Cada etiqueta com um chip embutido custará menos de R$ 0,01”, ressalta Varela. O consumidor que for às compras saberá antecipadamente quanto gastou ao passar a uma distância de três ou quatro metros de um painel. Caso concorde em finalizar a compra, antes de sair pela porta será feito o débito ou crédito do cartão que carrega no bolso. “Enquanto um cartão magnético (igual aos de crédito ou débito) dura de quatro a cinco anos, o ferroelétrico pode ser utilizado até 1 trilhão de vezes nas funções escrever e ler de forma magnética (a forma como as informações são gravadas na memória ferroelétrica), o que dá uma média de vida útil de 2 mil anos”, explica Varela. Uma das razões para esse menor tempo de vida útil dos cartões magnéticos é a necessidade do contato direto para a leitura.
Desde 1992 que pesquisadores ligados ao grupo que deu origem ao CMDMC começaram a estudar os materiais ferroelétricos. O conhecimento originado desses estudos resultou na publicação de 112 artigos científicos em revistas nacionais e internacionais. “Começamos as pesquisas na mesma época que o Carlos Araújo, na Universidade do Colorado”, diz Longo. “Trabalhamos basicamente com os mesmos compostos desde então, mas ele patenteou o conhecimento gerado pela equipe dele e montou uma empresa.” Araújo, professor de engenharia elétrica, criou a Symetrix com recursos do Small Business Innovation Research (SBIR), programa norte-americano de apoio às pequenas empresas inovadoras que inspirou a criação do programa Pesquisa Inovativa na Pequena e Microempresa (Pipe) da FAPESP. Hoje a empresa tem mais de 200 patentes internacionais.
A parceria com os pesquisadores brasileiros teve início durante um congresso sobre materiais semicondutores ferroelétricos, em Portugal, no final de 2006. Na ocasião, Araújo disse a Varela que gostaria de vir ao Brasil para falar da sua experiência na área. Pouco tempo depois, os pesquisadores do centro de cerâmicos organizaram um simpósio em Natal, no Rio Grande do Norte, cidade onde Araújo nasceu e viveu até os 17 anos, antes de se mudar para os Estados Unidos no final da década de 1960, depois de participar de um programa de intercâmbio estudantil. “Foi a partir do encontro em Portugal que surgiu a idéia de trazer uma fábrica de semicondutores ferroelétricos para o Brasil”, conta Longo. Inicialmente, além de São Paulo, estavam no páreo os estados de Pernambuco e Rio de Janeiro. A escolha de São Carlos deu-se em razão do conhecimento obtido pelo grupo de Longo e Varela nesses anos de pesquisa na área. A Symetrix, que possui patentes licenciadas no Japão, Coréia do Sul, Europa e Estados Unidos, firmou no Brasil uma parceria comercial com o grupo brasileiro Emcalso-Damha, um conglomerado de empresas de construção pesada e empreendimentos imobiliários com mais de 40 anos de atuação em diversos segmentos. “O consórcio internacional viabiliza não só a produção para o mercado interno, como também a exportação”, diz Longo. A empresa de Araújo tem três divisões: a Symetrix Devices, responsável pelo desenvolvimento dos sistemas e das memórias, a Symetrix Systems, que cuida de cartões e etiquetas inteligentes, e a Symetrix Development, responsável pela área de pesquisa, desenvolvimento e inovação e pelo licenciamento das tecnologias da empresa.
Projeto alemão
O Brasil importa por ano cerca de US$ 100 milhões em chips, mas nenhum deles com memória ferroelétrica. A participação brasileira representa cerca de 2% do mercado mundial, da ordem de US$ 52 bilhões. Os planos do consórcio são atender na primeira fase toda a demanda do mercado interno. A tecnologia de memória da Symetrix compete com outros tipos de memória não-voláteis, como a Flash, usada principalmente em cartões de memória para câmeras fotográficas, pen-drives, tocadores MP3 e celulares. O investimento inicial para a instalação da fábrica, que começará a ser construída em 2009 e deverá ficar pronta em 2011, é de US$ 250 milhões. Atualmente, os sócios estão estruturando o plano de negócios. “Como já está definido o tamanho da fábrica, uma empresa alemã foi contratada para cuidar do projeto”, diz Varela. A fabricação dos chips com memória ferroelétrica necessita de um ambiente ultralimpo e de profissionais capazes de fazer a deposição de filmes finos. “Nós temos pessoal qualificado que sabe fazer a deposição química e o tratamento térmico necessário para a construção dos chips”, diz Varela.
Os filmes finos podem ser feitos tanto por deposição física como química. A tecnologia patenteada pela Symetrix, licenciada para o Japão e que será empregada na produção em São Carlos utiliza uma rota química, que é mais barata porque dá para ser usada em grandes volumes de material. “A solução química é depositada gota por gota sobre discos de silício, semicondutor que é a base do chip de memória”, explica Varela. “O tamanho do filme depende da viscosidade da gota.” Vários tipos de filmes com propriedades isolantes, ferroelétricas e condutoras, responsáveis pela funcionalidade do dispositivo, são depositados sobre os discos de silício, conhecidos como wafers. “Para cada tipo de utilização é criada uma arquitetura sob medida do material”, diz Longo. A comunicação entre os materiais que compõem o chip de memória é simultânea. “Quanto maior a condutividade do material, mais rápida é a resposta”, explica.
O Projeto
Memórias ferroelétricas; Modalidade Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid); Coordenador Elson Longo – Centro Multidisciplinar para o Desenvolvimento de Materiais Cerâmicos; Investimento R$ 1.200.000,00 por ano para todo o CMDMC (FAPESP)
Artigos científicos
COSTA, C.E.F. et al. Influence of strontium concentration on the structural, morphological, and electrical properties of lead zirconate titanate thin films. Applied Physics A: Materials Science & Processing. v. 79, n. 3, p. 593-597 ago. 2004.
SIMÕES, A.Z. et al. Electromechanical properties of calcium bismuth titanate films: A potential candidate for lead-free thin-film piezoelectrics. Applied Physics Letters (published online). 17 fev. 2006.