A fuligem que sobe ao céu durante a queima da palha da cana-de-açúcar no campo durante a colheita e pousa no chão em forma de finos flocos escuros carrega em sua composição cerca de 70 produtos químicos, prejudiciais ao ambiente pela liberação de gases que contribuem para o efeito estufa e causam sérios problemas respiratórios para a população exposta. Enquanto essa prática não é definitivamente banida da cultura canavieira, vários grupos de pesquisa dedicam-se a estudar fins mais nobres para esse material que tem grande potencial para geração de energia elétrica, produção de biocombustível e fabricação de produtos como bioplásticos, carvão para siderúrgicas e até cimento. As possibilidades de aproveitamento do palhiço de cana, material que fica no campo após a colheita composto por folhas verdes, pontas do vegetal, palha e restos do caule, apontam para várias aplicações no setor produtivo. Uma das linhas de pesquisa, conduzida no Departamento de Engenharia de Materiais da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), resultou na obtenção do carbeto de silício, um versátil material sintético, a partir da sílica da palha da cana.
A inovação na escolha da matéria-prima e do processo utilizado para produção do carbeto de silício resultou em um pedido de patente pela universidade. Propriedades como excelente resistência ao desgaste, ao choque térmico e ao ataque de ácidos permitem o emprego desse material, que também é semicondutor, em abrasivos, na indústria de refratários, blindagem de aeronaves, microeletrônica e outras aplicações. A descoberta surgiu como desdobramento de um projeto para a fabricação do carbeto de silício da palha de arroz, desenvolvido anteriormente pelo mesmo grupo de pesquisa. “Quando fizemos a análise química do resíduo da palha de cana queimada, vimos que também era uma fonte rica em sílica”, explica a professora Ruth Kiminami, coordenadora do projeto. A sílica foi então misturada a uma fonte de carbono como grafite e colocada em um forno especial com atmosfera controlada, sem oxigênio, para a formação do carbeto de silício. O material é obtido pela reação de redução carbotérmica, que ocorre em alta temperatura. “Em cerca de quatro a cinco horas, conseguimos produzir partículas bem finas de carbeto de silício, em torno de 1 a 5 micrômetros, utilizadas em aplicações mais avançadas”, diz Ruth.
O método usado atualmente em escala industrial emprega uma mistura da sílica com carbono. O composto, após ser colocado em um forno elétrico com temperatura superior a 2.400°C durante 32 a 40 horas, resulta em blocos de silício que precisam ser processados mecanicamente por britagem e moagem. “O processo que usamos dispensa as etapas adicionais de britagem e moagem, que encarecem o custo do produto”, ressalta.
Em outra pesquisa, a palha de cana picada, colocada em um circuito fechado movido a alta temperatura, resulta no final do processo em três produtos com aplicações em áreas dis-tintas – um bioó-leo com potencial de utilização na indústria química, um fino pó de carvão vegetal que pode ser empregado na produção siderúrgica e um gás com alto poder calorífico, composto de monóxido de carbono, metano e hidrogênio, indicado tanto para alimentar o próprio reator como para geração de energia elétrica. O processo de termoconversão utilizado é chamado de pirólise rápida. “É uma quebra molecular feita com alta temperatura em poucos segundos”, explica o professor Luis Augusto Barbosa Cortez, da Faculdade de Engenharia Agrícola da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), coordenador do projeto. Iniciado há dez anos, o projeto resultou na empresa Bioware, incubada no Centro de Tecnologia da universidade com apoio da FAPESP como parte do programa Pesquisa Inovativa na Pequena e Micro Empresa (Pipe).
Para obter um elevado rendimento de bioóleo, os pesquisadores utilizam a técnica chamada de leito fluidizado borbulhante, que resulta da combinação de ar e areia e temperaturas médias em torno de 550ºC. Na porta de entrada ou leito do reator é colocado carvão vegetal para dar início ao processo de aquecimento. Quando a temperatura chega a 600ºC, a areia é colocada no reator e soprada para formar o leito fluidizado, onde a biomassa seca picada é colocada para ser degradada e transformada em produtos como o bioóleo, de coloração escura e bastante viscoso, que pode ser empregado como insumo químico, combustível em turbinas e caldeiras, substituto do fenol petroquímico em resinas e aditivo na formulação de concreto celular para construção civil. “Misturado ao pó de carvão obtido no processo apresenta características como alta resistência mecânica, com 75% de carbono, e baixo teor de vapores voláteis, no máximo 25%, necessárias para a utilização na fabricação de aço”, diz o pesquisador Rodrigo Jordan, que participa do projeto com uma bolsa de pós-doutorado.
O vapor utilizado para produção de bioóleo, depois de passar por um processo de lavagem, resulta em uma água ácida, que pode ser aplicada tanto como bioestimulante para crescimento de plantas como bioinseticida na cultura do feijão. Os gases liberados no processo de pirólise podem ser utilizados para alimentar caldeiras ou no próprio processo de combustão do reator, portanto tudo se aproveita da palha. A planta piloto tem capacidade para processar 200 quilos de palha por hora, transformados em 80 quilos de óleo e 50 quilos de carvão.
Cortez, que há mais de uma década estuda outros usos para a cana além do açúcar e álcool, coordena, entre outros projetos, uma pesquisa sobre a agroindústria canavieira do estado de São Paulo, dentro do Programa de Pesquisa em Políticas Públicas da FAPESP, em parceria com a Agência Paulista de Tecnologia dos Agronegócios (Apta). “Hoje, dentro do sistema de produção utilizado, a eficiência da cana está em torno de 28%”, diz. O cálculo é feito com base na energia contida na cana dividida em partes iguais entre açúcar, bagaço e palha, ou seja, um terço para cada uma delas. “Usando o sistema de pirólise para aproveitamento da palha, acredito que essa porcentagem poderá ficar entre 50% e 60%.”
Poder calorífico
Embora ainda não se saiba exatamente o potencial de geração da energia contida no palhiço, porque não existem pesquisas agronômicas apontando a quantidade ideal de palha que deve ser deixada no campo depois da colheita, um estudo coordenado pelo professor Nilson Augusto Villa Nova, do Departamento de Ciências Exatas da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da Universidade de São Paulo, em Piracicaba, mostra que é possível manter uma hidrelétrica igual à de Itaipu, em Foz de Iguaçu, funcionando durante o período de estiagem de maio a outubro apenas com a energia da biomassa do palhiço e do bagaço.
“O palhiço, que atualmente é um problema ambiental por causa da queima no campo, tem excelente potencial de energia elétrica devido ao seu alto poder calorífico”, diz Villa Nova. “Como não podemos tirar todo o palhiço do campo porque temos de manter a qualidade agronômica do solo, a nossa proposta é retirar cerca de 50% desse material para fins energéticos”, diz o professor Tomaz Caetano Cannavan Rípoli, do Departamento de Engenharia Rural da Esalq, que há 18 anos pesquisa esse material, suas características e como manejá-lo. Os outros 50% ficariam no campo para melhorar as propriedades físico-químicas do solo, ou seja, auxiliar na relação carbono-nitrogênio, aumentar o teor de matéria orgânica, melhorar a atividade da microbiota do solo e protegê-lo contra o impacto das gotas de chuva, que causam erosão.
O trabalho, intitulado O futuro do palhiço da cana-de-açúcar como grande fonte de energia elétrica no Brasil, apresentado em uma conferência internacional de engenharia da agricultura em 2007, indica que, devido às possíveis restrições hídricas das principais bacias hidrográficas por conta das mudanças climáticas, a utilização da biomassa deverá ser a principal fonte de energia renovável. Por esse estudo e todos os outros projetos em que esteve envolvido durante 52 anos de carreira, Villa Nova foi contemplado na categoria Vida e Obra do Prêmio Fundação Bunge 2008. Os cálculos para efeito de demonstração do potencial de geração de eletricidade pela queima do palhiço durante os 200 dias de safra foram feitos com 100 toneladas de cana por hora, mas uma usina pode moer 500, 1.000 e até 1.200 toneladas por hora.
Energia na seca
O resultado da equa-ção apontou para 76.800 megawatt/hora(MW/h) por safra. “Considerando que a produção anual de cana-de-açúcar no Brasil é da ordem de 386 milhões de toneladas por safra, a expectativa energética anual com a biomassa ficaria em torno de 122.800.000 MW/h por ano, o que daria para suprir a demanda de Itaipu no período de seca”, diz Villa Nova.
Oito usinas pau—listas, entre as quais estão a Equipav, a Quatá, a Cosan, a Rafard e a Santa Elisa, já estão misturando bagaço com palhiço para co-geração de energia nas caldeiras. “A tendência hoje é a colheita integral”, diz Rípoli. Em vez de colher a cana e deixar a palha no solo, para posteriormente ser transportada para a usina, tudo é levado junto para estações de pré-limpeza, onde é feita a separação do material. “É a solução mais barata para recolher o palhiço, porque trabalha com uma colheitadeira com o sistema de limpeza desligado ou em menor rotação”, ressalta. O processo está funcionando em escala comercial, mas ainda experimentalmente. Isso porque ainda não se sabe direito qual a proporção de palhiço e bagaço que deve ser usada nas caldeiras durante a safra para não interferir na eficiência do processo. “Não tenho dúvida de que daqui a 15 anos não vai ter mais usina de açúcar, e sim usina de energia”, diz Rípoli.
Uma outra perspectiva futura para o uso da palha é a produção de etanol, que ganhou um impulso recentemente com o lançamento do Programa FAPESP de Pesquisa em Bioenergia (Bioen). “Vamos usar fungos que degradam a palha e o bagaço para produzir açúcares fermentáveis a partir da parede celular”, diz o professor Marcos Buckeridge, do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP) e um dos coordenadores do programa. Parece simples, mas os mecanismos para entender como se dá essa degradação celular passam primeiro pelo conhecimento do genoma da cana. “Encontramos 469 genes relacionados ao metabolismo da parede celular da cana”, relata. Nesse amplo estudo entram até variáveis relacionadas a mudanças climáticas, com alto nível de gás carbônico na atmosfera. “Nesse cenário haverá mudanças na composição da parede celular e precisamos ficar atentos a isso porque, dependendo da enzima utilizada, poderá ocorrer alterações no processo de obtenção do etanol.”
Forragem animal
Palha picada é usada como substrato para semear grãos e produzir, em poucos dias, alimento volumoso para gado, suínos e aves
Integrar a cana-de-açúcar e a pecuária em pequenas propriedades rurais utilizando a palha que hoje é queimada durante a colheita é a proposta de José Luiz Guimarães de Souza, professor aposentado da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Botucatu, e do economista José Abílio Silveira Cosentino. Utilizando uma técnica chamada de forragem verde hidropônica, ou FVH, um processo de produção sem uso do solo, é possível colher em pouco tempo, e com baixa necessidade de água, um volume considerável de alimento de qualidade para animais a partir da palha da cana como substrato.
Em cima de uma lona preta coloca-se a palha picada, semeada com vários tipos de grãos, como milho, soja, trigo, feijão-guandu, aveia, milheto e sorgo. “A cada 18 ou 20 dias dá para colher, por exemplo, 25 quilos de FVH de milho por metro quadrado”, diz Souza. A FHV de milho ou de qualquer outro grão plantado é colhida como um tapete constituído pela palha, pelas sementes que germinaram e suas respectivas folhas e raízes, e também pelas sementes que não germinaram, para ser usada em substituição ao capim na dieta do animal. “A quantidade colhida é a mesma que um animal adulto, uma vaca ou um boi no período de engorda, necessita receber por dia, complementada por um concentrado composto de milho, farelo de soja, farelo de trigo e sal mineral”, diz o pesquisador. O objetivo da utilização da técnica é produzir grande quantidade de massa vegetal, de boa qualidade e em curto espaço de tempo.
O único cuidado é molhar o canteiro de acordo com a necessidade, como em uma horta convencional. Pelos cálculos do pesquisador, confirmados com estudos em campo, com 25 metros quadrados é possível produzir alimento para um boi o ano inteiro, bastando plantar e colher um metro quadrado por dia. Em Holambra II, no muncípio de Avaré, no interior paulista, um proprietário rural que criava gado da raça santa-gertrudes manteve 18 canteiros de 60 metros quadrados cada um, durante dois anos. “Ele colhia um canteiro por dia e tratava de 60 a 80 cabeças”, relata Souza. Todo o processo foi acompanhado com coleta de dados e pesagem de animais. O mesmo método pode ser aplicado para alimentar suínos e aves.
Para pequenas propriedades onde se planta apenas cana, a proposta é utilizar também a palha em vários tipos de produtos feitos artesanalmente, como cachepôs para vasos, revestimento de garrafas, chapéus, vasos, placas e outros. Dessa forma, a palha cumpriria uma função social, gerando renda, em vez de ser queimada no campo. Várias formulações já foram testadas pelos pesquisadores em parceria com um artesão, inclusive com tingimento do material, e resultaram em produtos que podem ser fabricados sem muita dificuldade.
Os Projetos
1. Bio-combustível obtido do óleo pirolítico da palha da cana: avaliação técnico-econômica e ambiental do seu uso (nº 06/52843-8); Modalidade Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa; Coordenador Luis Augusto Barbosa Cortez – Unicamp; Investimento R$ 35.056,65 (FAPESP)
2. Obtenção de bio-óleo via pirólise rápida de resíduos agrícolas para uso como combustível e materiais (nº 02/02166-9); Modalidade Pesquisa Inovativa na Pequena e Micro Empresa (Pipe);
Coordenador Edgardo Olivares Gomez – Bioware; Investimento R$ 67.733,61 (FAPESP)