A fermentação do caldo da cana-de-açúcar é ainda hoje a melhor via para obtenção de álcool combustível, produto que pode ter a oferta ampliada mesmo sem o aumento da área de plantio. Um desafio que precisa ser vencido pelo Brasil para o país atender à crescente demanda externa de etanol, possibilidade aberta de maneira mais efetiva com um estudo anunciado no início de fevereiro pela Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos (EPA, na sigla em inglês), mostrando o etanol de cana-de-açúcar como um biocombustível avançado, capaz de reduzir as emissões de gases nocivos do efeito estufa em até 61% se comparado à gasolina.Uma solução é aproveitar o açúcar contido no bagaço e na palha da cana (folhas da planta deixadas no campo na colheita), além do existente no caldo usado na produção atual, para fabricar o chamado etanol celulósico. O grande obstáculo tecnológico a ser vencido é que o açúcar da celulose do bagaço, e de outras biomassas, está organizado em grandes estruturas chamadas polissacarídeos, que as leveduras não conseguem fermentar diretamente para converter em etanol. Para facilitar a etapa de conversão química da celulose em glicose, chamada de hidrólise, dois grupos de pesquisa brasileiros, um coordenado pelos professores Rubens Maciel Filho e Aline Carvalho Costa, da Faculdade de Engenharia Química (FEQ) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e outro pelo professor Adilson Roberto Gonçalves, da Escola de Engenharia de Lorena (EEL) da Universidade de São Paulo (USP), em colaboração com a Universidade Federal de Pernambuco (Ufpe), desenvolveram diferentes processos de pré-tratamento da biomassa – um a temperatura ambiente e outro com tratamento térmico a vapor – para separar os três componentes que formam as paredes celulares das plantas – celulose, hemicelulose e lignina – que se encontram interligados e contribuem para a textura rígida dos vegetais.
No processo desenvolvido pelo grupo de pesquisa de Rubens Maciel, que conta com a participação da professora Aline Carvalho da Costa e da doutoranda Sarita Cândida Rabelo, ambas da FEQ-Unicamp, a separação dos componentes é feita com um produto químico chamado peróxido de hidrogênio, que em solução aquosa é mais conhecido como água oxigenada, a temperatura ambiente. “O peróxido de hidrogênio é colocado em contato com o bagaço, que não precisa passar por nenhuma etapa prévia de tratamento antes de ser utilizado”, diz o pesquisador. O produto consegue atacar a estrutura vegetal de tal maneira que libera na forma líquida a celulose, a hemicelulose e ainda dissolve a lignina, que posteriormente é recuperada para outros usos, que incluem desde a fabricação de produtos químicos até a geração de energia por meio da queima em caldeiras. A celulose é um polissacarídeo formado por monômeros de glicose, estruturas com seis átomos de carbono, ligados entre si. Quando passa pelo processo de hidrólise, libera esses monômeros, que podem ser fermentados facilmente pelas leveduras. A hemicelulose tem na sua estrutura monômeros de pentoses que são açúcares de cinco carbonos. Esses açúcares são mais difíceis de ser convertidos em etanol com os microrganismos atualmente disponíveis para a fermentação. Já a lignina é uma macromolécula orgânica complexa que une as fibras celulósicas, aumentando a rigidez da parede vegetal.
“A vantagem do processo que desenvolvemos é que ele é feito a temperatura ambiente, com um tempo muito rápido de operação, que gira em torno de uma hora”, diz Maciel. Além disso, ele não gera resíduos poluentes ao ambiente. “É um processo de baixo custo devido à rapidez com que o peróxido desmonta a estrutura lignocelulósica, sem nenhum gasto energético.” O pré-tratamento é uma operação auxiliar para desmontar a estrutura vegetal e, com isso, deixar o material celulósico disponível para ser hidrolisado por microrganismos capazes de extrair a glicose da celulose para produção de etanol. “É muito importante deixar o material celulósico preparado para na fase de hidrólise precisar da menor quantidade possível de enzimas, para que os custos dessa etapa sejam reduzidos e o processo possa ser comercialmente aceito”, diz Maciel. As enzimas são proteínas produzidas por fungos, bactérias e plantas capazes de produzir reações químicas específicas, sem sofrer alteração em sua composição. Uma das mais usadas atualmente para produção de etanol – escolhida para testar o processo de pré-tratamento pela sua eficiência – é a fabricada pela empresa Novozymes, multinacional dinamarquesa que produz enzimas industriais usadas em detergentes, biocombustíveis, fabricação de alimentos, entre outros produtos. A produção de enzimas para fabricação de etanol também faz parte de uma das linhas de pesquisa conduzidas na Faculdade de Engenharia Química da universidade. O objetivo é conseguir uma enzima do próprio bagaço, para eliminar a etapa de purificação, que encarece o produto final.
“Nosso processo permite obtenção de etanol da biomassa com baixa carga enzimática, o que diminui consideravelmente os custos de produção”, diz Maciel. Por todas as inovações, como matéria-prima barata para desconstrução do arcabouço vegetal, o processo resultou em um depósito de patente no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) pela Agência de Inovação (Inova) da Unicamp. “O avanço do nosso processo de pré-tratamento é o uso do peróxido de hidrogênio, além das condições operacionais, como temperatura e tempo de operação, que estão protegidas pela patente”, diz. Com o processo, que até a fase atual se mostrou bastante viável para ser utilizado em grande escala, o grupo conseguiu deixar disponível todo o açúcar existente no bagaço para fermentação. “Sem os processos de pré-tratamento, apenas 9% do açúcar contido no bagaço é transformado em etanol.”
Escala semi-industrial
Por enquanto os testes foram feitos em escala de laboratório. “Mas como se trata de um processo que utiliza um reator, que é um tanque agitado, que já conhecemos muito bem de outros processos realizados dentro de indústrias químicas, petroquímicas e de biotecnologia, não vemos problemas em passar para uma escala maior.” Uma das próximas etapas será testar o processo na planta piloto em escala semi-industrial. Ela já está em construção nas instalações do Centro de Ciência e Tecnologia do Bioetanol (CTBE), vinculado ao Ministério da Ciência e Tecnologia, em Campinas, no interior paulista. As mesmas instalações serão usadas pelo grupo de pesquisa coordenado pelo professor Adilson Roberto Gonçalves, líder de pesquisa do grupo de Conversão de Biomassa Vegetal da Escola de Engenharia de Lorena (EEL), da USP, para testar em grande escala o processo desenvolvido para extrair etanol da celulose, baseado em um tratamento térmico a vapor que rompe a estrutura rígida da biomassa e deixa os polissacarídeos disponíveis para as leveduras.
O bagaço colocado dentro de um reator fechado é impregnado com vapor d’água, em temperaturas que variam de 170 a 190 graus Celsius, durante sete minutos. Esse sistema tem em uma das saídas uma válvula de abertura, que ao ser aberta rapidamente resulta em uma descompressão súbita, processo chamado de explosão a vapor. O processo é usado por uma usina da região de Ribeirão Preto, no interior paulista, para fazer ração para gado a partir do bagaço de cana. “A desestruturação do bagaço, nesse caso, é feita para auxiliar a digestão do animal”, diz Gonçalves. Mas não havia ainda sido utilizado para produção de etanol. A professora Ana Maria Souto Maior, da Universidade Federal de Pernambuco, colabora no projeto testando algumas condições do processo adaptado para o etanol em um reator utilizado para pesquisas do projeto Bioetanol, financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e Financiadora de Estudos e Projetos (Finep). Uma das alunas de doutorado de Gonçalves, Priscila Maziero, fará estágio na Universidade de Lund, na Suécia, para estudar processos de hidrólise para resíduos agrícolas. Recentemente, ela passou duas semanas na Ufpe acompanhando os testes.
O que sobra do pré-tratamento térmico é uma mistura sólida, a lignocelulose composta por celulose e lignina, com líquido (solução aquosa de componentes da hemicelulose). Em seguida, a lignocelulose é submetida a uma etapa de extração química para remover a lignina, restando somente a celulose. Estudos feitos pelo grupo com uso de microscopia eletrônica e de refração de luz realizado no Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), em Campinas, com a colaboração do professor Igor Polikarpov, do Instituto de Física da USP, em São Carlos, mostraram – ainda dependente de análises finais – que a hidrólise direta do material lignocelulósico compromete o trabalho das enzimas. “Decidimos então incorporar uma etapa de deslignificação alcalina, que resulta na remoção da lignina, semelhante à utilizada nos processos para obtenção de polpa celulósica para fabricação de papel”, diz Gonçalves. Para isso é usada uma base, que em laboratório consiste no uso do hidróxido de sódio, mas na indústria pode ser substituído por cal ou óxido de sódio, dependendo dos custos. “Mas a nossa condição de deslignificação alcalina é suave, com soluções contendo cerca de 1% de hidróxido de sódio, enquanto no processo de polpação celulósica as cargas chegam a 20%”, relata Gonçalves, que contou com a colaboração do professor George Jackson Rocha, também da EEL. Com a remoção da lignina, a celulose está pronta para ser submetida à hidrólise enzimática. As enzimas utilizadas por eles também são da Novozymes. “A origem da celulose a ser degradada não faz muita diferença para o resultado final, mas a enzima usada sim”, diz o pesquisador.
O foco inicial de ambos os projetos foi o bagaço proveniente da moagem da cana. Embora uma parte seja queimada atualmente dentro das usinas, os cálculos apontam que ainda há um excedente de 30% dessa biomassa. Mas nada impede que os dois processos de pré-tratamento sejam utilizados também para processamento de palha da cana deixada no solo durante a colheita. “A tendência com a proibição da queima é que a palha também seja adicionada ao bagaço e essa biomassa seja usada para complementar a produção de combustíveis líquidos”, diz Maciel. Por enquanto, não há ainda um esquema para recolhimento da palha no campo. Uma parte é jogada picada como cobertura na terra e a outra não tem serventia. “Há um desafio tecnológico a ser vencido para que a palha não fique apodrecendo no campo”, diz Gonçalves.
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