Muito antes de o aquecimento global invadir a agenda de inquietações do planeta, a FAPESP já fazia investimentos de fôlego na ciência do clima. De um radar meteorológico instalado na década de 1970 no interior paulista para monitorar as chuvas e abastecer de informações os agricultores e a Defesa Civil até o Programa FAPESP de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais (PFPMCG), que investirá pelo menos R$ 100 milhões até 2018, a Fundação demonstrou uma preocupação contínua em formar recursos humanos e aumentar a quantidade e a qualidade da contribuição dos pesquisadores de São Paulo no avanço do conhecimento sobre o tema – com isso, ajudou o país a conquistar espaço no debate mundial sobre as mudanças climáticas. “Ao patrocinar projetos de cientistas do estado de São Paulo mesmo quando eles estudam fenômenos em outros estados, como é o caso da Amazônia, a FAPESP ajudou a moldar uma comunidade de pesquisadores que hoje produz ciência do clima de classe internacional”, diz Reynaldo Victoria, professor do Centro de Energia Nuclear na Agricultura (Cena), do campus Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo em Piracicaba, coordenador executivo do PFPMCG.
O primeiro grande investimento da FAPESP ocorreu em 1974, com a instalação de um radar meteorológico na cidade de Bauru, no interior paulista. Implantado no Instituto de Pesquisas Meteorológicas (Ipmet), que depois seria incorporado à Universidade Estadual Paulista (Unesp), o equipamento se tornou o ponto de partida da atual rede paulista de radares meteorológicos. Na época, os radares disponíveis em São Paulo pertenciam à Aeronáutica e eram talhados para monitorar o espaço aéreo.
Proposto no início dos anos 1970 como um projeto especial da FAPESP pelo então diretor científico Oscar Sala (1922-2010), o Radar Meteorológico de São Paulo (Radasp) tinha um duplo objetivo: criar um ambiente capaz de formar recursos humanos em meteorologia, usando técnicas avançadas para a época, e oferecer, com rapidez, previsões do tempo que permitissem à agricultura paulista se programar e à Defesa Civil monitorar os efeitos de tempestades. “O professor Sala anteviu a importância que a meteorologia teria no contexto das ciências atmosféricas e tomou a iniciativa de propor um programa piloto, que, além de fomentar a pesquisa, envolvia uma transferência direta de conhecimento para a sociedade e o setor produtivo”, diz Roberto Vicente Calheiros, professor titular da Unesp e pesquisador do Ipmet. Logo que o radar entrou em operação, a Rádio Eldorado, de São Paulo, começou a divulgar informações sobre previsões de chuva obtidas pelo equipamento.
Serviço essencial
O radar de Bauru permitiu acompanhar em tempo real a ocorrência de chuvas no estado e fornecer previsões imediatas, de alguns minutos até horas adiante. “Trata-se de um serviço essencial à sociedade, como a segurança pública e o sistema de saúde”, diz Calheiros. As pesquisas incorporaram equipes do Departamento de Águas e Energia Elétrica (Daee), da Escola Politécnica e da Escola de Engenharia de São Carlos (USP) e da Escola de Engenharia de Ilha Solteira (Unesp), com destaque para estudos sobre chuvas de verão e camadas da atmosfera. Um dado curioso: o radar instalado em 1974 foi substituído, nos anos 1990, por um equipamento mais moderno. Recentemente, a Universidade Federal de Alagoas levou-o para Maceió, onde o velho radar voltou a funcionar.
Os bons resultados do projeto levaram-no a uma segunda etapa. Em 1982 começou a ser implantado o Radasp II, sob a coordenação de Roberto Vicente Calheiros. Com a instalação de um segundo radar, na barragem do Daee, em Ponte Nova (MG), o programa permitiu aprimorar técnicas de previsões meteorológicas no estado, com benefícios principalmente para o planejamento agrícola. Calheiros desenvolveu uma técnica de quantificação de chuva com radar, apresentada em sua tese de doutorado e depois em um artigo na Journal of Climate and Applied Meteorology. Entre outros trabalhos, os experimentos de campo ajudaram a explicar a origem das chuvas intensas de verão na cidade de São Paulo, por meio de uma pesquisa coordenada por Maria Assunção Faus da Silva Dias. Mais recentemente, um destaque de pesquisa propiciada pelos radares é a contribuição da meteorologista Maria Andrea Lima no entendimento sobre o desenvolvimento de tempestades – seus estudos acompanham as tempestades até certo ponto tentando antever o volume de chuvas que ainda poderão gerar.
Na década de 1990, o apoio da FAPESP propiciou a formação de recursos humanos e a criação de infraestrutura avançada de pesquisa, ajudando a criar lideranças nacionais no estudo das mudanças climáticas globais num momento em que o tema ganhava importância e repercussão. O climatologista Carlos Nobre, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), cita dois exemplos dessa contribuição. O primeiro foi o investimento, em 1996, no Laboratório de Instrumentação Meteorológica (LIM) do Inpe, em Cachoeira Paulista, que se tornou referência para pesquisadores das ciências ambiental e meteorológica no Brasil. O LIM especializou-se em preparar, instalar, testar e calibrar sensores e medidores ambientais utilizados em pesquisas de diversos campos do conhecimento. O segundo exemplo, em 1999, foi a criação de um sistema de dados e informações do Experimento de Grande Escala da Biosfera-Atmosfera da Amazônia (LBA), uma das maiores experiências científicas do mundo na área ambiental: soma 156 projetos de pesquisa, desenvolvidos por 281 instituições nacionais e estrangeiras. “Foi a primeira vez que foi possível reunir dados de um experimento multidisciplinar. Não tenho dúvidas de que o sucesso do programa não teria sido o mesmo sem esse sistema”, diz Carlos Nobre, que foi o primeiro coordenador executivo do PFPMCG e atualmente é secretário de Políticas e Programas de Pesquisa e Desenvolvimento do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI). “O sucesso foi tão grande que serviu de inspiração para bancos de dados de outros programas, como o Biota-FAPESP e o Programa FAPESP de Mudanças Climáticas”, afirma. A FAPESP, observa Nobre, também foi uma das principais fontes de financiamento do LBA ao patrocinar projetos de pesquisa de cientistas paulistas vinculados ao programa, que foi gerenciado pelo MCTI e coordenado pelo Inpe e pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa).
Volume e Densidade
Nos anos 2000, a pesquisa sobre mudanças climáticas no Brasil ganhou volume e densidade, gerou um conjunto de contribuições originais e alcançou visibilidade internacional. Vários grupos do estado de São Paulo se destacaram nesse esforço, com apoio da FAPESP. Avançou-se, por exemplo, na determinação do papel das queimadas como fator de perturbação do equilíbrio da atmosfera e dos ecossistemas, em projetos liderados por nomes como Paulo Artaxo, professor do Instituto de Física da USP, Alberto Setzer e Carla Longo, pesquisadores do Inpe. “Houve um enorme avanço nesse campo”, observa Carlos Nobre. A modelagem da integração entre vegetação e clima também avançou, mostrando os riscos das mudanças climáticas para a manutenção dos grandes biomas brasileiros, como a Amazônia e o cerrado, sob a liderança de pesquisadores como Carlos Nobre e Gilvan Sampaio, do Inpe, e Humberto Ribeiro da Rocha, professor do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da USP. O entendimento dos impactos ambientais nos ciclos biogeoquímicos da cana-de-açúcar, principalmente nos sistemas aquáticos, sob a liderança de Luiz Martinelli, da USP, e o balanço detalhado das emissões de carbono pelo uso de biocombustíveis, notadamente o etanol, sob a liderança de Isaias Macedo, da Unicamp, foram contribuições originais lideradas por brasileiros. No campo da oceanografia também houve progressos no entendimento da circulação de correntes oceânicas no Atlântico, em pesquisas lideradas por Paulo Nobre, do Inpe, e Edmo Campos, do Instituto Oceanográfico da USP, com destaque para a interação entre a corrente brasileira e a das Malvinas.
De caráter multidisciplinar, o tema das mudanças climáticas envolve especialistas de diversas áreas. Um livro publicado há três anos pela FAPESP compilou a contribuição da pesquisa paulista para o conhecimento das mudanças climáticas, produzida entre 1992 e 2008. A obra reuniu informações sobre 208 projetos temáticos e auxílios a pesquisa – duas modalidades de apoio da Fundação – e 437 bolsas, financiados pela FAPESP. Havia pesquisas das áreas de agrárias e veterinária, arquitetura e urbanismo, biológicas, engenharias, física, geociências, humanas e sociais, química e saúde.
Essa massa crítica serviu de alicerce para um grande esforço multidisciplinar na compreensão dos fenômenos climáticos. Foi lançado em agosto de 2008 o Programa FAPESP de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais (PFPMCG), que prevê investimentos de R$ 100 milhões em 10 anos – ou cerca de R$ 10 milhões anuais – na articulação de estudos básicos e aplicados sobre as causas do aquecimento global e de seus impactos sobre a vida das pessoas. É provável que o valor seja maior – só nos três primeiros anos, mais de R$ 40 milhões já foram desembolsados. Os projetos de pesquisa estão vinculados a seis temas distintos. O primeiro é o funcionamento de ecossistemas, com ênfase na biodiversidade e nos ciclos de carbono e de nitrogênio. O segundo é o balanço da radiação atmosférica, em especial estudos sobre os aerossóis, e a mudança no uso da terra. O terceiro trata dos efeitos das mudanças climáticas sobre a agricultura e a pecuária. O quarto, da energia e do ciclo de gases de efeito estufa. O quinto aborda os impactos na saúde e o sexto, as dimensões humanas da mudança ambiental global. “Todos nós que tivemos financiamento pelo LBA sentimos a necessidade de conversar mais de perto e somarmos experiências”, afirma Reynaldo Victoria, que além de coordenar o programa lidera um grupo que vai analisar o papel dos rios nos ciclos regionais de carbono. O PFPMCG já dispõe de 18 projetos de pesquisa e almeja chegar a mais de uma centena. Em breve deverão incorporar-se ao programa pelo menos duas dezenas de projetos do âmbito de convênios estabelecidos entre a FAPESP e as fundações de Amparo à Pesquisa do Rio de Janeiro (Faperj) e de Pernambuco (Facepe). A compra de um navio oceanográfico pela USP foi incorporada ao programa – a embarcação, que deve estar pronta para uso em 2012, cumprirá um papel fundamental no programa. “Permitirá que saibamos muito mais sobre o papel do Atlântico Sul no clima”, diz Victoria.
Modelo climático
Uma grande ambição do programa é criar o primeiro modelo climático brasileiro, um software capaz de fazer simulações sofisticadas sobre fenômenos do clima. Hoje, para projetar os efeitos das mudanças climáticas, utilizam-se ferramentas computacionais inespecíficas. Para utilizar tal programa de modelagem, foi comprado por R$ 50 milhões (R$ 15 milhões da FAPESP e R$ 35 milhões do MCTI) um supercomputador capaz de realizar 224 trilhões de operações por segundo. Batizado de Tupã, foi instalado no Centro de Previsão do Tempo e Estudos Climáticos (CPTEC) do Inpe e até o início de 2012 deverá estar em pleno funcionamento. “A criação do CPTEC na década de 1980 colocou a meteorologia brasileira no mesmo patamar dos países desenvolvidos e a aquisição do Tupã é um esforço para que nos mantenhamos competitivos em termos de previsão de tempo e clima”, diz Osvaldo de Moraes, coordenador-geral do CPTEC. “Será utilizado para o trabalho do CPTEC em previsões climáticas, mas também estará disponível a todos os grupos de pesquisa do programa FAPESP.” Hoje o computador é o 29º da lista dos 500 mais potentes do planeta. “A aquisição da nova máquina não garante automaticamente uma melhora nas previsões. Temos de aperfeiçoar nossos modelos para que as previsões fiquem mais apuradas”, afirma Moraes, que destaca também o apoio da Fundação no financiamento de bolsas e projetos de pesquisa no CPTEC.
Uma dessas iniciativas, com recursos no valor de R$ 1,4 milhão concedidos pela FAPESP, é um projeto temático batizado de Projeto Chuva, que começou em 2009, liderado por Luiz Augusto Machado, pesquisador do CPTEC. Um dos objetivos é incorporar aos modelos de previsão meteorológica fenômenos que hoje não são detectados, porque têm escala de tempo e espaço muito pequenas. “Um exemplo são as tempestades de 30 minutos que causam grandes alagamentos, mas não são detectadas pelos modelos, por serem rápidas demais”, diz Osvaldo de Moraes. “À medida que os modelos aumentam as resoluções espaciais, precisam começar a descrever os processos que ocorrem no interior das nuvens, tais como tamanhos das gotas de chuva, ou descrever os inúmeros tipos de cristais de gelo que existem em uma nuvem de tempestade”, afirma Luiz Augusto Machado. Para estudar tais fenômenos, os pesquisadores estão utilizando radares e outros equipamentos trazidos do exterior, que são instalados por um período determinado em áreas onde os fenômenos ocorrem. Os experimentos já ocorreram em Alcântara (MA), Fortaleza (CE) e Belém (PA), e em novembro e dezembro serão realizados no Vale do Paraíba. Machado explica que a pesquisa no Vale do Paraíba vai cobrir dois eventos meteorológicos típicos na região nessa época do ano. O primeiro deles é a tempestade severa, acompanhada de chuvas intensas e granizo. O segundo tipo de chuva é aquela contínua, que permanece por dias seguidos. Essas chuvas costumam provocar inundações e deslizamentos de terra, como as que atingiram São Luís do Paraitinga, no Vale do Paraíba, e Teresópolis (RJ), nos últimos tempos.
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