Veridiana ScarpelliNa Copa de 2050, segundo projeções demográficas divulgadas no ano passado pela ONU, os torcedores brasileiros terão de se contentar em cantar “222 milhões em ação, salve a seleção” em vez dos esperados “300 milhões em ação”. Isso pode soar como uma boa notícia para os que profetizam os perigos de uma “explosão demográfica” no país, mas a realidade é outra, e igualmente preocupante há várias décadas. A fecundidade feminina vem caindo rapidamente e se, em 1960, a taxa era de 6,3 filhos por mulher, esses números caíram para 5,6 (1970), 2,9 (1991), 2,4 (2000) e 1,9 em 2010. “A população brasileira já atingiu uma fecundidade abaixo do nível de reposição. Este declínio deu-se em todas as faixas etárias, estratos socioeconômicos e regiões do país. Outro aspecto a destacar é que a transição da fecundidade obedece a um padrão de rejuvenescimento, ou seja, a partir de 1991 são as mulheres de 20 a 24 anos que apresentam a maior taxa específica de fecundidade, o que correspondia em anos anteriores à faixa dos 25 a 29 anos. Também a participação relativa da fecundidade das jovens de 15 a 19 anos, na fecundidade total correspondente a todo período reprodutivo, passou de 9% em 1980 para 23% em 2006”, explica a demógrafa Elza Berquó, do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), onde coordena a pesquisa Reprodução na Juventude e após os Trinta Anos.
Segundo as pesquisadoras Elza Berquó e Sandra Garcia, também pesquisadora do Cebrap, o principal objetivo desse trabalho é mostrar que no Brasil a transição demográfica tem características próprias. Por um lado, o rejuvenescimento da fecundidade já apontado e de outro, um adiamento da reprodução para após os 30 anos. A convivência desses dois regimes de fecundidade moldará o futuro próximo do país. “Essa transição pode ser positiva ou não, dependendo de como a sociedade lidará com essas mudanças. Como a fecundidade caiu muito e a população está envelhecendo, além de a expectativa de vida ter se elevado, no futuro, entre 2030 e 2035, teremos uma carência séria de mão de obra jovem, como acontece nos países mais desenvolvidos, onde há décadas há mais idosos do que jovens, o que coloca cada vez mais um peso sobre a população economicamente ativa”, analisam as pesquisadoras. “Mas, no Brasil, há esse elemento novo, o rejuvenescimento da fecundidade, não verificado nos países desenvolvidos. Em 1980, o pico da fecundidade estava entre os 25 e 29 anos. Hoje, está na faixa das jovens de 20 a 24 anos. Isso mostra que há um fôlego, ainda que, logo, os jovens vão pesar cada vez menos e os idosos, mais.”
Fonte: Pesquisa Nacional de Demografia e SAúde - 2006Analisando os diversos fatores que vieram influenciando a redução do tamanho da família no país, Elza cita que, antigamente, as famílias tinham muitos filhos, porque sentiam o efeito das altas taxas de mortalidade infantil e era preciso essa compensação para que houvesse sobreviventes que cuidassem dos pais na velhice. Com a Previdência Social, o Estado assumiu, em princípio, esse papel. Ao mesmo tempo, a política de crédito ao consumidor dos anos 1970 levou as pessoas a ter maiores aspirações de consumo e a pensar em como ajustar desejos de consumo e número de filhos. A grande mudança ocorrida na área das comunicações, em especial com a televisão, que chegou a um grande número de lares e lugares, acabou por influenciar, principalmente através das telenovelas, valores e estilos de vida, via famílias pequenas. Surgia também na época a pílula anticoncepcional, que certamente deu às mulheres oportunidade de regulação da fecundidade.
Bônus
“Até meados do século XXI teremos uma população envelhecida. Mas, no caso brasileiro, ainda há tempo de se aproveitar isso como um ‘bônus demográfico’, não mais viável no caso europeu. Na educação, por exemplo, a redução do ritmo de crescimento da população ao lado do envelhecimento podem ser um bônus, já que há chances de melhorar a cobertura e a qualidade do ensino. Diminui-
-se a pressão também sobre os recursos naturais e o meio ambiente”, observa a demógrafa. “Mas é uma janela que se fechará rapidamente, por volta de 2030, permitindo uma arrancada no desenvolvimento e um aumento na qualidade de vida, desde que esse bônus seja inteligentemente aproveitado”, avisa o demógrafo José Eustáquio Diniz, coordenador da pós-graduação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). “Se perdermos essa chance ficaremos apenas com as desvantagens de uma população envelhecida, que pode significar a queda no crescimento econômico face à crise no mercado de trabalho e o peso dos velhos sobre os mais jovens”.
Veridiana ScarpelliMas não há apenas a velhice a moldar a transição demográfica. “A pesquisa confirmou o início cada vez mais precoce da vida sexual, fruto de um mundo mais liberal em que a virgindade não é mais um valor. Mas isso não foi acompanhado por um maior conhecimento e utilização dos métodos contraceptivos”, fala Elza. Ainda que o conhecimento desses métodos seja universal entre as jovens menores de 20 anos, apenas 60% das sexualmente ativas usavam algum método para prevenir gravidez. Das não usuárias, 40% não sabiam onde obtê-los e uma em cada cinco engravidaram na primeira relação sexual, situação que chega a 68% para as jovens das classes D e E e 70% para as menos escolarizadas. Das jovens que engravidaram antes dos 20 anos, 78% dentre elas desconheciam noções básicas sobre fisiologia da reprodução e do período fértil no ciclo ovulatório”, conta a pesquisadora. O estudo sugere que os comportamentos sexual e reprodutivo são moldados pelas possibilidades estruturais e pelas normas culturais. Assim, as mais pobres e menos escolarizadas apresentaram menor percentual do uso de contraceptivos, o que realiza uma ponte direta entre gravidez antes dos 20 anos e pobreza com pouca escolaridade.
“Há também uma percepção altamente positiva das jovens sobre as implicações da gravidez em sua vida amorosa e em sua autoestima, espantosos 96,2%. Isso está na contramão de quem vê na gravidez adolescente uma falta de projeto de vida. Os dados parecem indicar que, na ausência de uma melhor educação, de melhores condições de vida e de oportunidades, essa gravidez, embora não prevista, se configura como projeto de vida e não a ausência dele”, diz Sandra. “Para boa parte da sociedade, a gravidez na adolescência é um mal de grandes proporções, uma irresponsabilidade, quase uma tragédia nacional, já que o que se espera dos jovens é que estudem e se preparem para o mercado. Essa visão ideal não leva em conta que as oportunidades não são oferecidas de maneira igual para todos na sociedade brasileira”, observa Maria Luiza Heilborn, professora do Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (IMS/UERJ). “É o mesmo equívoco de achar que as populações pobres estão prestes a criar uma explosão demográfica. Em geral, nos segmentos mais pobres, a maternidade é vista como um status social face à falta de perspectivas profissionais, uma forma de entrar no mundo adulto. Nas classes médias, a maternidade só é bem aceita mais tarde, quando as questões profissionais e financeiras estão resolvidas. Daí, a recorrência ao aborto nesses estratos”, analisa.
Fonte: Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde - 2006
Para a pesquisadora, ao mesmo tempo em que a gravidez jovem é indesejada, um indicador de “subdesenvolvimento”, a sociedade fechas as portas de acesso a métodos contraceptivos e criminaliza o aborto e a pílula do dia seguinte. “Há uma censura contra a gravidez na adolescência, mas não há o mesmo consenso em permitir o uso de certos métodos de interromper a gravidez”, avalia Maria Luiza. “As escolhas contraceptivas e reprodutivas estão sendo feitas em um contexto de ilegalidade do aborto e de pouca informação e provisão inadequada da contracepção de emergência no Brasil. Vale lembrar ainda o reduzido nível de implementação dos programas de educação em sexualidade nas escolas públicas. Qual seria a trajetória dessas jovens se as instituições melhorassem sua ação e o país tivesse oportunidade mais igualitárias?”, pergunta-se Sandra. Afinal, estar informado sobre métodos contraceptivos durante a relação sexual não garante seu uso adequado. “Nessa idade, há uma grande imprevisibilidade dos encontros sexuais e, logo, não há incorporação da contracepção ao cotidiano juvenil. Existe vergonha em falar com a família ou ir a uma farmácia para comprar preservativos. Já a pílula, com seus efeitos colaterais sobre o corpo das jovens que vivem numa sociedade que cobra formas perfeitas, a tendência ecológica dos jovens de não ingerir produtos químicos, e o esquecimento de tomar a pílula, determinam a gravidez indesejada”, avalia Eliane Brandão, do IMS/Universidade Federal do Rio de Janeiro. A tudo isso se reúnem as falhas no uso dos contraceptivos e o despreparo dos profissionais de saúde em atender jovens e explicar os métodos.
“No fundo, o sexo entre adolescentes é um tabu, algo não assumido e que não é contemplado com a atenção necessária pelas autoridades, pela escola e pela família. Por que as campanhas do uso da camisinha contra o HIV, que tiveram grande repercussão, não atrelaram ao problema das doenças sexualmente transmissíveis a questão da gravidez? Foi uma falta terrível de visão”, nota Elza. A pesquisadora não é tão otimista sobre o entusiasmo das jovens que engravidam na adolescência. “Em geral, essa visão positiva é post facto, ou seja, uma forma de aceitar algo já posto”, diz.
A demógrafa também não concorda totalmente com a tese de que boa parte das jovens que deixou a escola ao se verem grávidas teria saído de qualquer forma ou já estavam fora dela antes da gravidez. “É pertinente perguntar por que isso ainda acontece numa sociedade em que as melhores oportunidades de emprego estão associadas a maiores níveis educacionais. Não há programas especiais para mães jovens nas nossas escolas e, ainda que não tenhamos dados concretos, temos que considerar que ser mãe quando já há tão poucas chances para pessoas com baixa educação terá consequências sérias nas vidas dessas adolescentes”, acredita a demógrafa. Uma jovem sem filhos tem 60 vezes mais chances de continuar na escola do que uma mãe da mesma idade e estrato social e econômico.
“No Brasil, a falta de educação e oportunidades está induzindo muitas adolescentes a começar uma família como projeto de vida. Num sistema educacional e econômico melhor, isso, com certeza não ocorreria, como se vê nos países avançados em que também há queda na fecundidade geral, mas sem concentração em faixas etárias baixas”, pondera Elza. Quem efetivamente planejaria ser mãe tão jovem num país sem creches ou apoio à maternidade adolescente, obrigando-as a contar com a solidariedade familiar e de vizinhos para sobreviver e entrar no mercado. “Isso explica as grandes filas para esterilização, que expõem as mulheres a DSTs. Exercer a sexualidade não é fácil. É um direito natural, mas há riscos.” Ao mesmo tempo, nas classes mais abastadas, a pesquisa revelou um fenômeno curioso: 44% das jovens entre 15 e 20 nunca tiveram relações sexuais. “Esse número nos impressionou. Elas afirmam ter outras coisas para fazer e ocupar o tempo e querem casar virgens: não se trata apenas de não engravidar ou não iniciar a vida sexual. É um conservadorismo crescente que pode estar associado ao aumento dos evangélicos”, observa Elza.
Mais recentemente, a Medida Provisória 577 do governo federal que instituiu um cadastro nacional de gestantes e puérperas, cuja intenção seria a de diminuir a mortalidade materna, pode ter como consequência a identificação de ocorrência de abortos, “o que seria uma invasão direta da intimidade das mulheres e a possibilidade de pressão de grupos conservadores para propostas e medidas que viessem a retroceder os avanços já obtidos nesse campo, como congelamento de embriões e experimentos com célula-tronco”, fala Elza.
VERIDIANA SCARPELLIPara complementar o novo quadro demográfico que se desenha, há o fenômeno da gravidez após os 30 anos. A pesquisa mostra que “são as mulheres de estratos sociais e educacionais privilegiados que optam por não ter filhos e se concentrar na realização pessoal e profissional. Mas chama a atenção que, dentre elas, 45% nunca se casaram ou se uniram. Entre 1996 e 2006, a proporção de mulheres que não tiveram filhos antes dos 30 anos cresceu de 5,3% para 9,2% e a daquelas que os tiveram com 30 anos ou mais cresceu de 4,8% para 6,7%”, fala Elza. A percepção que essas mulheres têm de sua vida é que fizeram a escolha certa e que serão melhores mães com mais de 30 anos. Quando, porém, o adiamento da maternidade passa limites biológicos, acarretando problemas de fertilidade, entra em cena o mais novo componente da transição demográfica em curso: a reprodução assistida. “Trinta e sete por cento das mulheres em idade fértil declaram não poder ter filhos, por serem estéreis ou terem sido esterilizadas. O número cresce para 57% na faixa dos 35 aos 49 anos. Já das férteis dessa idade 7% afirmaram que querem ter filhos. Se levarmos em conta ainda o arrependimento das esterilizações, a reprodução após os 30 anos, teremos um porcentual grande de mulheres que querem usar os serviços de reprodução assistida”, explica Sandra Garcia, do Cebrap, e autora da pesquisa Reprodução assistida no Brasil, que tem apoio da FAPESP na categoria Jovens Pesquisadores.
Um fenômeno presente em vários países europeus e nos EUA, a reprodução assistida tem uma crescente demanda no Brasil, mas, na grande maioria, os tratamentos são feitos em clínicas privadas com um alto custo. “Hoje não são apenas os casais mais abastados, mas a população mais pobre que quer ter o direito ao processo, que está garantido pela Constituição na questão do direito à reprodução. É do Estado a responsabilidade de disponibilizar os tratamentos para a população em geral”, conta Sandra. Lésbicas e homossexuais masculinos, ao lado de pessoas solteiras, também reivindicam esse direito. Em 2005 foi instituída a Política Nacional de Atenção Integral em Reprodução Humana Assistida, ligada ao SUS, mas logo em seguida foi suspensa. “É um desrespeito ao direito de cidadania, bem como deixa a prática sem qualquer regulação, vulnerabilizando as mulheres. Não é incomum, quando uma nova tecnologia em reprodução assistida é divulgada na midia, haver uma corrida às clínicas que a realizam, na busca de soluções tecnológicas que ainda estão sendo apropriadas pelo mercado e necessitando de maior tempo para sua validação.” conta a pesquisadora. Para Sandra, a reprodução assistida não vai impedir a queda da fecundidade, mas pode trazer realização a muitas pessoas. “Falta, porém, uma movimentação maior das mulheres por esse direito. Isso pode ser devido ao fato de que os movimentos de mulheres lutam há muito tempo pelo direito de acesso ao aborto e aos métodos contraceptivos, demandas prioritárias ainda não plenamente atendidas”, diz Sandra. “Por outro lado, o trabalho de desconstrução da maternidade como destino feminino, pelos movimentos feministas, levou a que parte desse movimento exercesse fortes críticas e resistência às tecnologias reprodutivas”, acrescenta.
A pesquisadora Elza Berquó afirma que “homens e mulheres devem ter o direito de decidir tanto sobre sexualidade quanto orientação sexual e reprodução, cabendo ao Estado informar e dar condições para que o sexo seja seguro e, portanto, prazeroso”. É na intimidade que se desenha o novo mapa demográfico do país. Conhecê-lo e compreendê-lo pode vir a contribuir para a garantia e a ampliação dos direitos sexuais e reprodutivos.
O Projeto
Reprodução assistida no Brasil: aspectos sociodemográficos e desafios para as políticas públicas (nº 2010/14827-6); Modalidade Jovem Pesquisador; Coordenadora Sandra Garcia – Cebrap; Investimento R$ 142.680,00