Por mais que biólogos explorem o chão, as árvores e os corpos d’água, eles ainda parecem longe de estimar e explicar a diversidade biológica das florestas tropicais. Mais do que isso, falta explicar como e quando surgiram montanhas, rios e tudo o que está por baixo da mata. Projetos centrados na Amazônia e na Mata Atlântica agora buscam respostas: biólogos e geólogos vêm trabalhando juntos em busca de decifrar essa história numa disciplina batizada em 2014 como geogenômica pelo geólogo Paul Baker, da Universidade Duke, nos Estados Unidos. Um grande impulso para o campo veio da colaboração entre os programas Biota-FAPESP e Dimensions of Biodiversity, da National Science Foundation (NSF), a principal agência norte-americana de fomento à ciência. “Projetos dessa natureza precisam de uma abordagem participativa desde a elaboração das perguntas”, comenta a botânica Lúcia Lohmann, do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP), que coordena com o ornitólogo norte-americano Joel Cracraft, do Museu Americano de História Natural, o primeiro projeto a concretizar a parceria, com foco na Amazônia.
Para integrar as equipes, foi preciso inicialmente vencer barreiras básicas de comunicação. “Um geólogo apresentava uma palestra e os biólogos ficavam perdidos”, conta Lúcia. E vice-versa. “Na primeira reunião passamos duas horas explicando um único slide aos geólogos”, lembra a bióloga Cristina Miyaki, também do IB-USP e coordenadora de um projeto semelhante, porém na Mata Atlântica. Estabelecido um vocabulário em comum, as trocas começaram a tomar forma. “Agora é óbvio que projetos dessa natureza devem contar com pesquisadores de ambas as áreas desde o início, mas não era essa a visão antes de começarmos”, diz Lúcia.
Podcast: Lucia Lohmann
Outro entrave nada trivial à integração do conhecimento é a escassez de dados. “Precisamos ter todas as filogenias datadas, com bancos de dados georreferenciados para produzir mapas de distribuição antes de poder cruzar com os dados geológicos”, conta Lúcia. Ela e seus colaboradores têm uma expedição para a Amazônia planejada para este ano. “Vamos coletar dados de diferentes organismos para avaliar em que extensão os rios Negro e Branco representam barreiras para a dispersão.”
É fácil imaginar que rios caudalosos limitam a mobilidade dos organismos, mas, quando os biólogos usam o DNA para resgatar informações da história das espécies, nem sempre é o que veem. “Para as plantas, os rios não parecem ser barreiras importantes”, diz Lúcia, especialista na família Bignoniaceae. Já a circulação de primatas pode ser limitada por eles, como mostra o primatólogo brasileiro Jean Philippe Boubli, da Universidade de Salford, na Inglaterra. Ele também é pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), e por isso tem acesso a um acervo importante de amostras de primatas depositadas na instituição. “Temos uma cobertura quase completa de amostras de primatas amazônicos e, com a genômica, conseguiremos investigar o papel dos grandes rios na origem da diversidade do grupo”, planeja. Com uma nova filogenia dos sauás, ou zogue-zogues (Callicebus), publicada em março deste ano na revista Frontiers in Zoology, ele, sua aluna de doutorado Hazel Byrne e colegas indicam divergências profundas que justificam a criação de dois novos gêneros: Cheracebus, para as espécies dos rios Negro e Orinoco, e Plecturocebus, no sul do Amazonas. Callicebus ficaria reservado às espécies da Mata Atlântica. “Eles podem ser a chave de tudo”, diz o pesquisador. É um grupo muito antigo e rico em espécies, por isso é ideal para testar o papel de fatores como os rios e mudanças climáticas na diversificação das espécies. “A colaboração com os geólogos está abrindo nossos olhos para coisas que não sabíamos da Amazônia”, diz.
“O que vem ficando claro é que as hipóteses postuladas nas últimas décadas acabam sendo simplistas para a complexidade da Amazônia”, reflete a bióloga Camila Ribas, do Inpa, que integra o projeto de Lúcia e também o de Baker. “A Teoria dos Refúgios prevê que as espécies atuais teriam se originado durante os ciclos glaciais, dos quais o último aconteceu há cerca de 18 mil anos”, exemplifica. Mas as diferentes regiões da Amazônia parecem ter passado por processos distintos e as espécies respondem de forma diferente às condições locais. As aves, especialidade de Camila, são um bom exemplo de organismos muito heterogêneos na lida com o ambiente: as que conseguem voar longas distâncias, por exemplo, são menos afetadas por barreiras. No outro extremo os jacamins (gênero Psophia), aves amazônicas que quase não voam, se tornaram o exemplo por excelência de como os grandes rios funcionam como as principais barreiras entre espécies, de acordo com estudo publicado em 2012 na Proceedings of the Royal Society B por Camila e colaboradores.
Mais recentemente, um dos projetos da bióloga do Inpa investiga a fauna de aves típicas de áreas de areia branca na Amazônia, como relatou em artigo publicado este ano na Biotropica, resultado do mestrado de sua aluna Maysa Matos. “São manchas de areia branca no meio de um mar de floresta, com uma vegetação aberta, mais parecida com a da Caatinga ou do Cerrado”, explica Camila. A surpresa é que os animais encontrados em manchas distantes são mais semelhantes do que se imaginaria, mesmo que hoje não consigam atravessar a floresta. Os resultados suscitam uma série de perguntas, como há quanto tempo aquele ambiente existe e se a floresta teria sido mais permeável a esses animais no passado.
Outro dos alunos de Camila, Leandro Moraes, analisou durante o mestrado o papel dos rios Tapajós e Jamanxim, no Pará, em limitar a distribuição de anfíbios e répteis. Os resultados, que serão publicados em breve na revista Journal of Biogeography, mostram que um terço das espécies de anfíbios tem a movimentação restrita pelos rios, proporção que cai para apenas 8% nas cobras e lagartos. O trabalho busca avaliar a importância desses rios na configuração da paisagem e dos hábitats adequados a esses animais, e por isso Camila o considera um exemplo de como o projeto começa a integrar as áreas de conhecimento.
Paisagem mutante
Nos últimos anos, começou a se sedimentar uma noção de que a drenagem da bacia amazônica evoluiu sobretudo nos últimos 3 milhões de anos (e não 15 milhões, como postulavam as estimativas anteriores), uma escala temporal que parece concordar com o que indicam os dados de animais e plantas. O istmo do Panamá, outra estrutura com grande relevância para a biogeografia porque permitiu migrações entre a América do Sul e as Américas Central e do Norte, também mudou de idade. Um estudo liderado pelo geólogo Camilo Montes, da Universidad de los Andes, Colômbia, publicado na Science em abril de 2015, analisou minerais de origem panamenha encontrados na América do Sul e estimou essa formação entre 13 milhões e 15 milhões de anos atrás – 10 milhões a mais em relação ao que se pensava antes. “A nova datação muda totalmente como se vê a movimentação passada da flora e da fauna na região, nos obriga a reavaliar toda a literatura”, afirma Lúcia Lohmann.
Essa reavaliação tem se revelado muito mais produtiva com a união de especialistas. “Os evolucionistas e biogeógrafos precisam conhecer a história geológica para entender por que as espécies vivem onde vivem, e mesmo como as espécies vieram a existir”, explica Paul Baker, inventor do termo “geogenômica”. Ele tem o plano ambicioso de fazer cinco furos de sondagem próximos a grandes rios amazônicos, com profundidades que podem chegar a 2 quilômetros, para ter acesso contínuo a amostras de sedimentos de várias idades, até cerca de 65 milhões de anos atrás. Em reunião no Inpa no ano passado, ele e colegas do projeto da Amazônia chegaram a um acordo sobre que tipos de dados obtidos com a empreitada poderiam ajudar a reconstituir a história geológica, climática e biótica. Agora o desafio é conseguir o financiamento. “Nosso orçamento só para a perfuração é de US$ 7 milhões”, conta.
O projeto de Baker parte da geologia, enquanto no de Lúcia as perguntas surgem sobretudo da biologia. A geogenômica, entretanto, pretende ser uma via de mão dupla. “A ideia é que geólogos também possam usar dados biológicos para responder a perguntas geológicas”, diz ele. As datas estimadas para o surgimento das espécies dos jacamins de Camila, por exemplo, podem ajudar a estimar a idade dos grandes rios como o Amazonas, o Xingu, o Tapajós e o Madeira, segundo Baker.
“Os dados biológicos fornecem uma ordem de grandeza que permite gerar as hipóteses que podemos testar com as idades absolutas provenientes de datações geocronológicas”, concorda o sedimentólogo Renato Almeida, do Instituto de Geociências (IGc) da USP. Junto com o colega André Sawakuchi, ele investiga a formação dos depósitos sedimentares que compõem a bacia amazônica. “É uma área do tamanho de um continente com uma escassez de dados absurda”, afirma. Reduzir esse desconhecimento não é tarefa que poderá ser realizada dentro do tempo do projeto atual, e a maior parte dos dados que o grupo vem levantando ainda não está publicada. Além de começar a pintar um quadro geográfico do passado, uma missão da equipe é ajudar os biólogos a distinguir quais das hipóteses têm mais fundamento para explicar os padrões biogeográficos.
O trabalho vem mostrando que o soerguimento da cordilheira dos Andes aos poucos empurrou para leste a água de um imenso lago que havia na região e foi formando as drenagens de maior porte em direção ao oceano Atlântico. Uma das técnicas para revelar o passado dos rios é a luminescência opticamente estimulada, que depende da coleta, em tubos de alumínio, de sedimentos dos barrancos que ladeiam os rios. “De volta ao laboratório, conseguimos datar a última vez que o grão de quartzo foi exposto à luz do sol”, explica o geógrafo Fabiano Pupim, pesquisador de pós-doutorado no laboratório de Sawakuchi. O grupo também enxerga uma rica informação na configuração dos sedimentos nesses paredões junto aos rios, que chegam a ter 20 metros de altura. As estruturas internas permitem inferir a escala e o sentido do rio quando aquele sedimento foi depositado, entre outras informações.
Imagens de sonar mostram que o fundo de rios como o Amazonas, outro território desconhecido, tem dunas de até 12 metros de altura. “Precisamos entender como funciona um rio dessas dimensões para inferir como eram os grandes rios do passado”, diz Almeida. Em colaboração com o geólogo Carlos Grohmann, do Instituto de Energia e Ambiente (IEE) da USP, ele também investiga a dinâmica dos rios por meio de séries temporais de imagens de satélite.
A importância é maior do que a função dos rios como barreiras. Os cursos d’água e os sedimentos que vieram dos Andes formaram o mosaico de ambientes que caracterizam a Amazônia, com áreas secas e de alagamento periódico. Sawakuchi, Pupim e equipe (sobretudo os alunos de mestrado Dorília Cunha e Diego Souza) têm investigado a formação dos arquipélagos de Anavilhanas e do tabuleiro do Embaubal, no rio Amazonas, nos últimos 10 mil anos. O surgimento desse tipo de ambiente e dos rios propriamente ditos representa escalas de tempo distintas, cujo significado o geógrafo espera complementar com os dados biológicos.
Clima flutuante
Mas nem só de água terrestre vivem as florestas. Francisco William da Cruz Júnior, do IGc-USP e um dos coordenadores da parte geológica na geogenômica brasileira, usa espeleotemas (formações de composição carbonática de cavernas), principalmente estalagmites, para inferir o clima do passado. Os dados obtidos por seu grupo de pesquisa indicam que a Era Glacial na América do Sul não era árida como se pensava. “Parte do continente estava seca, mas outras áreas eram úmidas, o que pode ter favorecido até mesmo a expansão das florestas, como na Amazônia peruana e na parte sul da Mata Atlântica”, afirma.
Com base na análise de isótopos de oxigênio contidos no carbonato de cálcio do material das cavernas, ele observa que diferentes partes da Amazônia e regiões adjacentes passaram por processos muito distintos, como fica claro em artigo de que participou, em conjunto com biólogos da equipe, sob a coordenação do colega chinês Hai Cheng e publicado em 2013 na Nature Communications. As datações indicam que, nos últimos 250 mil anos, o clima do oeste da Amazônia se manteve mais estável do que a região a leste, no Pará, com um fortalecimento das chuvas durante os períodos glaciais – entre 100 mil e 20 mil anos atrás. O grupo interpreta essa relativa estabilidade como responsável pela alta biodiversidade encontrada hoje na região, enquanto a parte leste da Amazônia, menos rica em espécies, passou por variações climáticas drásticas que podem ter levado a extinções. “Estamos desafiando um paradigma”, diz Cruz. “A estabilidade climática pode ter sido mais importante do que os refúgios para gerar o padrão de alta diversidade encontrado hoje na floresta amazônica, principalmente junto aos Andes.”
No período glacial o oeste da Amazônia parece ter sido bem úmido, assim como o domínio da Mata Atlântica no Sul e Sudeste brasileiros. Cruz tem indícios de uma faixa climática que une essas duas regiões e tem características opostas à área que inclui o Pará, no leste da Amazônia, e a região Nordeste, que varia em ciclos de cerca de 23 mil anos. “Esse padrão está sendo testado tanto no projeto da Amazônia como no da Mata Atlântica.” Ele defende que essas correspondências possibilitaram a formação de corredores entre os dois biomas, que explicam casos de parentesco maior entre espécies da Amazônia e da Mata Atlântica, em relação a espécies de um mesmo bioma. Cruz postula que em um período no qual se supõe uma alta umidade no leste da Amazônia e no Nordeste do país, as florestas tropicais devem ter se expandido, formando uma ponte de floresta entre os dois biomas. Mais tarde, há indícios de chuvas mais abundantes na região mais próxima ao sopé dos Andes e no Sul e Sudeste brasileiros, também com possibilidade de expansão das florestas até o encontro da Amazônia com a Mata Atlântica. “Estamos atualmente testando quais seriam essas fases.”
Um testemunho dessa dinâmica são as folhas fossilizadas coletadas por Cruz no vale do rio São Francisco, região hoje recoberta por Caatinga. “Elas indicam que a região foi rapidamente coberta por vegetação úmida entre 18 e 15 mil anos atrás”, afirma. Mesmo na atualidade, há uma conexão climática direta entre os dois biomas: no verão, a umidade que viaja desde a Amazônia determina o que acontece na Mata Atlântica, por exemplo. “Não dá para restringir o estudo a um quadro local, nem é interessante”, diz Cruz.
Iniciado um ano depois do projeto da Amazônia, o da Mata Atlântica, coordenado pelas biólogas Cristina Miyaki, da USP, e Ana Carolina Carnaval, da Universidade da Cidade de Nova York, está em um estágio mais inicial da integração das especialidades. “Vários artigos em que estamos trabalhando neste terceiro ano incluem o ângulo ou a hipótese que o time de paleoclimatólogos (ou o de sensoriamento remoto) trouxe para nossa equipe”, diz Ana. Um trabalho com dados genômicos testando hipóteses formuladas por Cruz e outros integrantes da equipe geológica, como a palinologista Marie-Pierre Ledru, do Instituto de Ciências da Evolução em Montpellier, França, está sendo finalizado para publicação. “É legal demais porque a paleoclimatologia indica um caminho que a genômica testa e vê o que confere, o que não confere”, conta. “Depois trazemos a discussão de novo para os paleoclimatólogos, para refinar as ideias.”
Os resultados estão surgindo e prometem render muitos frutos nos próximos anos, quando o financiamento atual já tiver sido substituído por outros projetos. Firmar a parceria é, parece, a maior conquista. “Estamos começando a delimitar o que ainda não está entendido”, diz Cristina. Seu trabalho sempre envolveu suposições do campo da geologia para entender a diversificação de aves na Mata Atlântica. Mas agora, com o novo aprendizado, vem a sensação de que as análises eram muito superficiais e as interpretações, apesar de serem as melhores possíveis na época, ingênuas.
A geogenômica é um exemplo da melhor ciência moderna. “De certa maneira voltamos à história natural antiga, em que os pesquisadores tinham conhecimento de biologia e de geologia”, brinca Cristina. Mas, com técnicas cada vez mais especializadas, bancos de dados mais e mais gigantescos e um nível crescente de detalhes, a única maneira de se reunir esse conhecimento é a congregação de grandes grupos. Passados os primeiros anos em que cada especialidade continuou a produzir trabalhos semelhantes aos que já faziam antes, de agora em diante devem começar a aparecer os resultados realmente integrados.
Projetos
1. Estruturação e evolução da biota amazônica e seu ambiente: uma abordagem integrativa (nº 2012/50260-6); Modalidade Programa Biota/Dimensions-NSF; Pesquisadores responsáveis Lúcia Lohmann (IB-USP) e Joel Cracraft (AMNH); Investimento R$ 3.752.671,77.
2. Dimensions US-Biota São Paulo: integrando disciplinas para a predição da biodiversidade da Floresta Atlântica no Brasil (nº 2013/50297-0); Modalidade Programa Biota/Dimensions-NSF; Pesquisadoras responsáveis Cristina Miyaki (IB-USP) e Ana Carolina Carnaval (CUNY); Investimento R$ 3.781.927,16.
Artigos científicos
BAKER, P. A. et al. The emerging field of Geogenomics: Constraining geological problems with genetic data. Earth-Science Reviews. v. 135, p. 38-47. ago. 2014.
BYRNE, H. et al. Phylogenetic relationships of the New World titi monkeys (Callicebus): First appraisal of taxonomy based on molecular evidence. Frontiers in Zoology. v. 13, n. 10. 1º mar. 2016.
CHENG, H. et al. Climate change patterns in Amazonia and biodiversity. Nature Communications. v. 4, n. 1.411. 29 jan. 2013.
MATOS, M. V. et al. Comparative phylogeography of two bird species, Tachyphonus phoenicius (Thraupidae) and Polytmus theresiae (Trochilidae), specialized in Amazonian White Sand Vegetation. Biotropica. v. 48, n. 1, p. 110-20. jan. 2016.
MORAES, L. J. C. L. et al. The combined influence of riverine barriers and flooding gradients on biogeographical patterns for amphibians and squamates in south-eastern Amazonia. Journal of Biogeography. No prelo.
RIBAS, C. C. et al. A palaeobiogeographical model for biotic diversification within Amazonia over the past three million years. Proceedings of the Royal Society B. v. 279, n. 1.729, p. 681-9. 11 jan. 2012.