O zika chegou ao Nordeste brasileiro um ano e meio antes de ser reconhecido como inimigo público. É o que está relatado em dois artigos de grupos distintos publicados no dia 24 de maio na revista Nature. O vírus se espalhou depressa, tirando proveito dos mosquitos Aedes aegypti e de uma população humana cujo sistema imunológico não tinha defesas contra ele, além de camuflar-se entre os sintomas de dengue e chikungunya. Pesquisadores trabalharam em paralelo, com recursos diferentes e um objetivo comum: monitorar a evolução do genoma viral, tanto para entender o que ocorreu como para prever surtos e manter os métodos diagnósticos atualizados.
Parte dos resultados vem do projeto ZiBRA (Zika no Brasil Análise em Tempo Real). A bordo de um laboratório móvel e munido com uma tecnologia de sequenciamento genético que cabe na palma da mão, um grupo internacional investiga a trajetória do vírus zika desde que ele desembarcou no Brasil e começou a se espalhar pelas Américas (ver Pesquisa FAPESP nº 239). O sequenciamento completo do genoma foi disponibilizado para outros grupos de pesquisa, ampliando o alcance do trabalho. “A combinação de dados epidemiológicos e genéticos nos permitiu perceber que houve circulação silenciosa do zika em todas as regiões das Américas pelo menos um ano antes da primeira confirmação do vírus, em maio de 2015”, diz o biomédico português Nuno Faria, da Universidade de Oxford, no Reino Unido, e primeiro autor do artigo que descreve os resultados do monitoramento realizado em 2016.
Segundo Faria, o vírus foi introduzido no Nordeste brasileiro em fevereiro de 2014. Naquele ano, é provável que tenha havido alguma transmissão pela região, mas não muito acentuada. “O grande surto aconteceu muito provavelmente em 2015, simultaneamente ao de dengue. Do Nordeste, o zika teria se espalhado para a região Sudeste do Brasil [Rio de Janeiro, inicialmente] e também para o Caribe e outros países da América do Sul e Central, chegando à Flórida”, conta.
As conclusões do Projeto ZiBRA se baseiam na análise de 254 genomas completos do patógeno – 54 dos quais sequenciados para o estudo publicado na Nature. A maior parte desses novos dados genéticos foi obtida com um sequenciador portátil conhecido como MinION, da Oxford Nanopore Technologies, que pesa menos de 100 gramas. Os protocolos que permitiram usar essa tecnologia no sequenciamento do zika foram desenvolvidos no âmbito do projeto ZiBRA e renderam um segundo artigo, publicado no mesmo dia na Nature Protocols. A adaptação do método ao vírus circulante no Brasil foi feita no Instituto de Medicina Tropical de São Paulo da Universidade de São Paulo (IMT-USP), sob coordenação da epidemiologista Ester Sabino em parceria com colaboradores da Universidade de Birmingham, no Reino Unido. “Nossa estagiária Ingra Claro testava as amostras conforme as instruções de Joshua [Quick, primeiro autor do artigo sobre o método], para obter RNA suficiente do vírus”, explica Ester.
Quanto maior é o número de sequências geradas, ela acrescenta, mais fácil se torna entender quando o vírus entrou no país, como ele se distribuiu no continente e, principalmente, de que forma está evoluindo. Essa análise é possível graças à técnica conhecida como relógio molecular, que avalia o acúmulo de alterações em certos genes. Essas modificações ocorrem a uma taxa relativamente constante e os genes funcionam como se fossem cronômetros, indicando o tempo de divergência entre isolados virais.
Laboratório na estrada
“A ideia do projeto surgiu em 2016, quando parte do grupo publicou na Science os primeiros achados epidemiológicos e genéticos do zika nas Américas. Havíamos sequenciado sete isolados virais, mas o número de amostras era insuficiente para ter uma noção ampla da diversidade do vírus no continente”, informa o geneticista Luiz Carlos Alcântara, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) na Bahia.
O projeto ZiBRA foi aprovado em uma chamada de propostas lançada em conjunto pelas agências de fomento britânicas Medical Research Council, Newton Fund e Wellcome Trust. Aos esforços se uniram pesquisadores de várias instituições: Fiocruz, Instituto Evandro Chagas, Ministério da Saúde, USP e as universidades de Birmingham e de Oxford.
Um laboratório montado em um ônibus visitou ao longo de 2016 os Laboratórios Centrais de Saúde Pública (Lacen) do Rio Grande do Norte, da Paraíba, de Pernambuco e de Alagoas. Além de Alcântara, Faria e Ester, também coordenaram a iniciativa os pesquisadores Nicholas Loman, da Universidade de Birmingham, Oliver Pybus, da Universidade de Oxford, e Marcio Nunes, do Instituto Evandro Chagas, do Pará. “Analisamos, em cada Lacen, entre 300 e 400 amostras de sangue de pacientes com suspeita de zika, totalizando 1.330 exames. Fazíamos o diagnóstico em tempo real e, quando dava positivo, o material genético do vírus era sequenciado”, conta Alcântara.
Com o apoio de laboratórios fixos na Fiocruz da Bahia, em Salvador, e no IMT, em São Paulo, o grupo também analisou amostras da região Sudeste e do Tocantins. Nos Estados Unidos, colaboradores sequenciaram os genomas de quatro isolados virais do México e cinco da Colômbia. “As análises mostraram que os vírus encontrados até 2016 nas diversas regiões brasileiras e nos vizinhos latino-americanos ainda não apresentam grande diversidade”, diz Alcântara.
De acordo com o pesquisador, o vírus originário da África chegou à Ásia um pouco antes de 2007, quando causou a primeira epidemia na Micronésia. Depois novos surtos foram registrados nas Filipinas (2012) e na Polinésia Francesa (2013 e 2014). Em seguida atingiu o Brasil, onde o maior número de casos foi registrado até agora (em dezembro de 2016 passavam de 200 mil). “Desde que saiu do continente africano, o vírus mudou bastante. Provavelmente, daqui a sete ou 10 anos, a diversidade aqui nas Américas vai estar bem maior. Precisamos fazer a vigilância genômica para estarmos preparados se um novo surto vier”, recomenda Alcântara.
Além de auxiliar os Lacen no diagnóstico de centenas de casos suspeitos, os pesquisadores do ZiBRA treinaram equipes para fazer a vigilância genômica com o MinION. Agora teve início uma segunda etapa do projeto na qual, além do zika, serão monitorados os vírus da dengue, chikungunya e febre amarela. “Em Manaus, montaremos um laboratório fixo para analisar amostras dos Lacen do Amapá, Acre, Amazonas, de Roraima e Rondônia. Em outubro, vamos com um laboratório móvel para a região Centro-Oeste e, em março de 2018, seguiremos para o Sudeste”, adianta Alcântara.
Monitoramento na bancada
O acompanhamento em tempo real também é o foco de outro grupo internacional, embora as análises genéticas sejam feitas em laboratórios fixos. Parte dos procedimentos foram os mesmos, usando em aparelhos mais potentes os protocolos desenvolvidos para o MinION. “Foram enfoques complementares”, avalia a geneticista Bronwyn MacInnis, do Instituto Broad, nos Estados Unidos. O trabalho coordenado por ela, em parceria com a colega Pardis Sabeti, envolveu o sequenciamento de 110 genomas do zika coletados em 10 países. As conclusões semelhantes obtidas por caminhos distintos pelas duas equipes reforçam as interpretações e validam novas técnicas de sequenciamento, abrindo possibilidades de acompanhamento de epidemias.
Uma dificuldade que desafiou ambos os grupos foi a baixa carga viral (viremia) que se revelou típica da infecção pelo vírus zika. “Quando o paciente procura ajuda, a infecção já está diminuindo”, explica Bronwyn. Em sua experiência anterior, durante o surto de ebola na África em 2015, ela encontrou entre mil e 10 mil vezes mais cópias virais nas amostras recolhidas dos doentes. Apesar da diferença, o treinamento com o ebola foi o primeiro passo para que ela e seus colaboradores pudessem mergulhar no estudo da epidemia de zika, sem nem sequer ter tempo de tomar fôlego. “Aquela foi a primeira vez que se fez monitoramento genético em tempo real de uma epidemia”, conta. Até então, era necessário recolher as amostras dos pacientes e cultivar em laboratório para se obter uma quantidade suficiente de vírus. O problema é que nem tudo o que está na amostra prolifera em cultura e nesse processo se perde muita diversidade. A novidade foi conseguir fazer as análises genéticas diretamente do sangue recolhido dos doentes, usando técnicas para “pescar” o material genético (RNA, no caso do zika) da amostra.
Diante da emergência da epidemia no Brasil e em outros países da América do Sul e do Caribe, Bronwyn buscou parceiros aqui para somar conhecimentos. Com Fernando Bozza, Thiago Souza e Patricia Bozza, da Fiocruz do Rio, ela estabeleceu o que qualifica como uma rica colaboração. “Eles trouxeram o entendimento de como a doença estava progredindo e como interagia com os vírus causadores da dengue e da chikungunya”, conta.
O grupo carioca já tinha construído um conhecimento epidemiológico da dengue, trabalhando com hospitais e fazendo uma vigilância sistemática da doença. “A zika nos deu muito trabalho no início por causa da viremia baixa”, lembra Fernando Bozza. Depois de conseguir um teste rápido para diagnóstico, seu grupo passou a recolher amostras e buscar melhorar o sucesso de extração do RNA, o que envolve refinar o rigor com que se coleta e armazena o material.
A demora na identificação da zika depois da entrada do vírus no Brasil ressalta, para Bozza, a importância do monitoramento genético de doenças relevantes já conhecidas em outros continentes. “Quando identificamos o problema, já havia uma epidemia.” Conhecer a evolução do vírus e ter as técnicas para vigilância pode permitir aos pesquisadores desenvolver estratégias para detectar doenças com maior rapidez.
Os dados genéticos indicam que em Porto Rico, Honduras, Colômbia e na área que inclui o Caribe e os Estados Unidos também se passaram meses entre a entrada do vírus e a detecção dos primeiros casos. A circulação discreta permitiu ao zika chegar aos Estados Unidos a partir do Caribe, conforme mostra um quarto artigo publicado na Nature no mesmo dia. Naquele país, porém, apenas a Flórida tem as condições adequadas para a permanência do Aedes aegypti o ano todo, permitindo a disseminação do vírus. Por isso a doença ficou restrita a esse estado, sobretudo à região de Miami, destino de uma grande quantidade de visitantes de outros países. “O vírus foi introduzido muitas vezes, não foi um evento isolado”, assegura Bronwyn, coautora do trabalho. “Perceber como isso aconteceu é importante para coordenarmos esforços para o controle do vetor e protegermos as rotas de entrada.”
Ela sabe que, mesmo que o momento seja de trégua antes do início do verão na Flórida, outras epidemias virão. Por enquanto, o vírus zika ainda reserva uma dose de mistério e sua circulação no Brasil no último verão foi menor do que se esperava. “Vamos continuar monitorando para tentar entender como o vírus avança”, afirma Ester, cujo grupo tem feito um acompanhamento em amostras de sangue doado em quatro grandes hemocentros de São Paulo. “Estamos aprendendo formas de criar grupos de pesquisa capazes de dar respostas rápidas em uma emergência.” Com o aprendizado que permite a vigilância genética e as redes de colaboração estabelecidas, diminuem os riscos de os pesquisadores serem pegos de surpresa. As publicações concomitantes ressaltam que esse trabalho em parceria, reunindo especialistas de diversas áreas, é essencial para fazer frente às epidemias. Por isso os dois grupos trabalhando em paralelo – e sabendo disso – não se fecharam. “Ao longo do processo nos mantivemos em contato, comparando os resultados”, conta Bronwyn.
Projeto
Caracterização do vírus da dengue pela análise do genoma completo viral em amostras de doadores e receptores de sangue nos estados de Pernambuco e Rio de Janeiro (nº 12/03417-7); Modalidade Bolsa de Doutorado; Pesquisadora responsável Ester Cerdeira Sabino (USP); Bolsista Antonio Charlys da Costa; Investimento R$ 145.246,14.
Artigos científicos
FARIA, N. R. et al. Establishment and cryptic transmission of Zika virus in Brazil and the Americas. Nature. 24 mai. 2017.
GRUBAUGH, N. D. et al. Genomic epidemiology reveals multiple introductions of Zika virus into the United States. Nature. 24 mai. 2017.
METSKY, H. C. et al. Zika virus evolution and spread in the Americas. Nature. 24 mai. 2017.
QUICK, J. et al. Multiplex PCR method for MinION and Illumina sequencing of Zika and other virus genomes directly from clinical samples. Nature Protocols. v. 12, 6, p. 1261-76. 24 mai. 2017.